domingo, 23 de janeiro de 2022

John Owen: estudo do cap. 24, livro III

Estudo do livro de John Owen, Livro III, capítulo 24


Capítulo 24


Serão tratados agora alguns dos argumentos que estariam a favor da tese de Owen. São tirados de passagens que falam da morte de Cristo pela Igreja e os salvos em particular, e são lidos por Owen como implicando a exclusão de quaisquer outras pessoas como objetos da morte de Cristo. Pode-se já de antemão afirmar que esses textos sagrados não depoem contra a redenção universal, que já está provada, mas são sempre nessa doutrina fundamentados.

O primeiro texto levantado para a discussão é o protoevangelium, Gênesis 3, 15, onde são contrastados a semente da mulher, o inteiro corpo dos eleitos, e a multidão inteira dos reprovados, que são a semente do Demônio.

A profecia não necessariamente deve ser lida a partir da suposição dos decretos eternos de Deus que teriam separados os eleitos dos reprovados por sua própria vontade. Trata-se de separar, em termos espirituais, os que serão filhos da mulher, Maria, que seguirão Jesus, Aquele que esmagou a cabeça da serpente, assim como sua mãe, pela Sua graça, e os demais, que não irão seguir os passos de Cristo e se colocarão contra Ele, sendo descendência do maligno. É uma profecia que mais descreve a realidade do que virá do que algo que indica o motivo da mesma realidade.

Essa profecia demostra o motivo da salvação e condenação trazida nos divinos decretos do que os resultados dos mesmos, o que é bem diferente.

Iniciemos, portanto, a análise das passagens. Quando Cristo chama os fariseus de filhos do Diabo, isso não significa que fossem destinados a serem filhos do Diabo como consequência dos decretos de Deus, mas que assim eram por sua própria culpa e escolha. Por negarem a verdade que estava sendo anunciada a eles. Quem comete pecado é filho do Diabo (cf. 1 J João 3, 8) não como imutável condição, mas como aquele que se entrega ao serviço do pecado torna-se escravo dele, torna-se assim filho do Diabo, por implicação. Essa é a verdade bíblica ensinada em Romanos 8, por exemplo, e em outras passagens já estudadas. Os salvos podem cair nesse estado caso não perseverem.

Por isso, 1 João 3, 10 afirma que aquele que não pratica a justiça    e não ama seu irmão não é de Deus. A ênfase agora está na prática do evangelho. É uma indicação do motivo de ser filho de Deus ou ser filho do Diabo. O que pratica a justiça é filho de Deus, o que pratica o pecado é filho do Diabo. Por isso, as exortações à conversão. A linguagem bíblica nos convida a entender o mistério da justificação e regeneração, como instantâneo para a prática do amor. É como se o amor nos leva da morte para a vida, e é razão da vida, pois quem não ama seu irmão permanece na morte. Assim, na justificação pela fé temos a forma do amor imediatamente, como diz o contexto de Romanos 5, 1-5. Portanto, como fruto da redenção universal todos podem ser justificados e adotados como filhos de Deus.

É assim que os filhos da ira (cf. Ef 2, 3), filhos como os outros também, que ainda estão no reino das trevas, podem ser transferidos para o reino de Deus. Dessa forma, há a adoção divina, que dos filhos do Diabo podem fazer filhos de Deus, o que destrói a argumentação de uma distinção eterna como resultado da vontade de Deus.

Dessa forma, Cristo morreu por todos, pelos pecadores, pelos inimigos, pelos filhos da ira, pelos que não tinham Deus neste mundo, pelos escravos do pecado. Por tudo isso, morreu pelos filhos da Serpente para que se tornem filhos da Mulher. Nem todos se tornarão, é óbvio, visto escolherem caminhos opostos, por seu próprio livre-arbítrio, por escolhas apegadas ao espírito do mundo e não a Deus. Assim, Cristo morreu por todos.

O próximo texto é Mateus 7, 23, onde Jesus diz que nunca conheceu aqueles falsos cristãos. Em comparação com João 10, 14-17, Jesus conhece suas ovelhas. Isso é compreensível, já que o contexto de Mateus fala dos desobedientes, dos que praticam iniquidade, e não dos que seguem a Cristo, dos que conhecem a Ele, como é o caso do texto específico de João 10. Portanto, não diz respeito ao decreto que os determinou assim, mas revela o motivo do decreto que assim os reputou e reconheceu eternamente.

Conhecer aqui significa de modo especial essa relação espiritual onde os salvos conhecem a Cristo pela fé e o seguem na vida de obediência e santidade, onde quer que Ele vá, e Cristo conhece dando sua graça e protegendo Seu rebanho. Os demais que Cristo não conhece estão nessa condição por terem negado o Salvador.

A morte de Cristo não salva automaticamente sem que a condição exigida seja cumprida. Se os réprobos questionassem sobre a morte de Cristo por eles, sobre o poder de Seu sangue para salvar e santificar, seria o mesmo que diz em substância Mateus 7, 23, onde aqueles realizam obras em nome de Cristo e apresentam isso como razão para sua salvação, mas agem na iniquidade, motivo pelo qual Cristo não os conhece.

Esse conhecimento é de relação espiritual na amizade da graça. A morte de Cristo não irá aplicar eficazmente os dons da salvação em quem rejeita a cruz, pela fé ou pelas obras, e as perguntas levantadas por Owen estão fundamentadas na suposição de que a cruz é para somente os eleitos e de que garante a aplicação futura pelo fato mesmo do evento da cruz. Por isso, essas questões não fluem da doutrina da redenção universal, que biblicamente assenta-se nas condições impostas por Deus para a participação da Sua graça.

Em Mateus 11, 25-26 Jesus afirma que o evangelho foi escondido dos sábios e prudentes e revelado aos pequeninos. E Cristo agradece a Deus por isso, por esse propósito de Deus.

Se o evangelho da salvação foi escondido de muitos, em sua manifestação externa e revelação interna do mesmo, significaria que Cristo não morreu por esses. Na verdade, tal implicação não existe, pois serviria para afirmar que os sábios não foram salvos por Cristo, uma leitura bastante imprudente.

Nem que aqueles sábios em questão não foram resgatados por Cristo, o que também não pode ser deduzido da passagem. O que o texto ensina é que a rejeição daqueles homens é o motivo para que o Senhor Deus esconda deles tais tesouros da fé e salvação, como está em Mateus 13, 11.15, onde Cristo fala da dureza de coração daqueles, e logo após afirma que é para que Ele os cure. A graça de Deus ainda fará ressoar seu convite nos corações mais empedernidos. Isso prova que a redenção é universal.

Portanto, não se pode tirar daí que sábios e entendidos não são escolhidos, ou que aqueles sábios e entendidos que conversaram com Cristo não fossem escolhidos. De fato, outra forma de apresentar a salvação é vista Mateus 11, 27, onde Cristo é quem revela o Pai, somente a quem quer. Sabemos que somente vai a Cristo aquele que o Pai entrega, e somente é levado a Cristo pela ação do Espírito Santo que converte o pecador. Portanto, trata-se de uma ação da Santíssima Trindade na conversão do pecador, tudo em consideração ao livre-arbítrio do mesmo. Os que não ouvem a Deus não irão a Cristo, que por Sua vez não revelará o Pai pela ação do Santo Espírito.

Para provar que a salvação é para todos, Cristo no verso seguinte convida a todos a irem a Ele: “Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei” (cf. Mateus 11, 28). É a grande suficiente, quem não for a Cristo é por livre escolha.

De fato, Deus não esconde o evangelho de ninguém, a menos que esses sejam contrários ao evangelho a ponto de rechaçar quaisquer insinuações da graça que pudessem levar a ele, e agissem contrariamente às leis de Deus, como escolha voluntária de vida contrária aos valores divinos.

São os que não possuem a fé em Deus e não se importam com a retribuição que o Senhor pode dar, e não ouvem do Pai e, portanto, não serão atraídos ao Filho. Por culpa própria não querem conhecer a Deus.

Outros podem ir ao Filho e depois deixá-Lo. As heresias condicionam essas coisas, e muitos tornam-se apóstatas e perdem a fé inteiramente. Ainda assim, esses foram resgatados por Cristo.

A respeito de João 10, 11.15.16.27-28, é verdade que nem todos são ovelhas. Mas, igualmente é verdade que Cristo não morreu somente por quem se tornaria ovelha. Cristo dá a vida por Suas ovelhas, não somente por elas, mas por todos. No contexto se dirige às ovelhas, aos eleitos, pois está mostrando que são elas que O ouvem e O seguem, e não os lobos ou cabritos ou réprobos que não obedecem a Deus.

Por isso, como Pastor a sua proteção constante é pelas ovelhas, dando a vida por elas. O contexto explica por si a distinção que se está aplicando, não negando a redenção universal, mas mostrando como Cristo trata os salvos na vida da graça. Cristo dá a vida no sentido de cuidado e proteção apenas pelas ovelhas, na sua graça eficaz, e não pelos lobos, o que é compreensível pelo contexto, mas que não é referente à redenção universal onde Cristo dá a vida por todos.

Os que se tornam lobos são aqueles que se colocam contra Deus e o Seu Cristo e estão em oposição à Igreja, pela recusa voluntária da graça. A Escritura afirma que esses poderão ser salvos se aceitarem o amor de Deus.

Portanto, João 10, 26.29; 17, 6; 6, 37; 10, 28, Mateus 20, 28 e João 11, 52, são todos os que primeiro ouvem a Deus por Sua Palavra para conhecer o Messias. Os que ouvem a Deus são de Deus e Ele os levará a Cristo. Há, portanto, uma condição, que é negada por Owen em sua correta acepção de condição, que é a fé e a obediência, que antecedem e são exigidos para a aplicação dos benefícios da redenção.

Em relação a Romanos 8, 32-34 pode dizer que Deus de fato manifestou Seu grande ato de amor por todos, mas somente os que forem fieis, e que Deus conheceu de antemão quais seriam, esses são beneficiados por Sua graça. Conquanto estejam unidos a Cristo ninguém poderá acusá-los e nada os tirará do amor de Deus, como o capítulo inteiro ensina.

As boas coisas que Deus dá pela cruz, somente são comunicadas àqueles que aceitam o benefício da cruz pela graça da fé em Cristo.

A fé, a graça e a glória são todos frutos da cruz. Uma vez que se considera o livre-arbítrio, como Deus o considera nos Seus decretos, o pecador deve estar aberto ao chamado da graça para que seja atraído a Cristo. Essa graça é universal pela cruz, necessária para todos irem a Deus, suficiente para todos e cada um conforme a liberalidade de Deus, distribuindo Seus dons conforme Lhe apraz, pois quer que todos sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade (cf. 1 Tm 2, 4).

Os frutos da morte de Cristo não pertencem apenas aos eleitos, mas são apropriados livremente por eles, pois receberam de bom grado a graça, alcançando a graça eficaz. São particularmente os eleitos mostrando em Romanos 8, 32-34, o que não significa que a redenção não seja universal. Os frutos e benefícios foram alcançados para todos, serão usufruídos por quem crer, e eficazmente aplicados nos eleitos.

Em Efésios 1, 7 é dito que em Cristo “temos a redenção”. Owen argumenta que todos não têm a redenção, e por isso Cristo não teria morrido por todos. De fato, os que são bem-aventurados e o serão para sempre, são os filhos da promessa. No entanto, Owen não prova que toda a graça da cruz é somente para alguns, e que toda a graça será em todos eles aplicada, uma vez que a condição relativa para a aplicação dos frutos e benefícios da cruz são claramente estabelecidos, e deve-se considerar sempre o livre-arbítrio do pecador que deve ser auxiliado pela graça. Essa dificuldade não pode ser resolvida na teologia reformada. Todo o estudo trata dessa questão e a apresenta como patente em toda a Escritura, mesmo diante das argumentações interessantes de Owen.

Em relação a 2 Coríntios 5, 21, o argumento baseia-se na maior grandeza da morte de Cristo que da sua intercessão. Se Cristo morreu por todos, por que não intercede por todos? A reposta já foi dada inúmeras vezes, é está baseada no motivo de que apenas os que se apresentam a Deus por meio de Cristo podem usufruir de Sua intercessão (cf. Hb 7, 25) e não o fato de Cristo ter morrido na cruz sem a participação voluntária dos salvos, pelo livre-arbítrio iluminado pela graça.

Por isso, a existência do livre-arbítrio é de enorme importância para entender essa economia da graça, onde os frutos e benefícios da cruz não serão aplicados a todos sem a verdadeira participação deles. Assim, como todos não participam da graça, pela natural consequência que existe pela ação de seres livres, e pela apresentação que a Escritura faz da forma que a graça leva o pecador à salvação, a intercessão somente é feita por aqueles que se aproximam de Deus. Por esse motivo, tantas passagens bíblicas que são muralhas contra interpretações da fé reformada.

Cristo foi feito pecado na cruz, o que significa que foi feito sacrifício pelo pecado. Por Ele podemos receber, e de fato recebemos a graça da justificação quando nEle estamos. Resta provar que todos pelos quais Cristo morreu serão justificados, o que não é em nenhuma passagem manifesta ou ensinada tal noção, que são negadas pela própria existência das condições já apresentadas.

Ainda, ao citar João 15, 13, onde Jesus usa da comparação de que há maior amor a quem dá a vida pelos amigos, entendendo com isso os eleitos, lembremo-nos de que Judas Iscariotes, escolhido por Deus e Cristo para o apostolado, servindo a Jesus em Seu ministério até o dia da última ceia, foi chamado por Jesus de amigo, ainda que fosse traidor. Assim, Cristo morreu por Judas Iscariotes também. Portanto, é mais uma prova de que Cristo morreu por todos, e está estabelecida a doutrina da expiação ilimitada.

A morte da cruz é fundamento para a intercessão. E a condição para receber os benefícios da cruz e ter a intercessão de Cristo é a aceitação da graça, operada pela Palavra de Deus.

Em João 17, 9 Jesus ora apenas pelos apóstolos, não pelo mundo que é oposto à sua graça, mas ao mesmo tempo roga por todos os que crerão, o que não só está e acordo com a visão reformada, mas igualmente harmonioso com a doutrina católica de que o Senhor conhece todas as coisas e ora pelos que irão crer, usando do seu livre-arbítrio. No entanto, nem todos os que irão crer perseverarão. Essa é outra característica que devemos considerar, e que somente está de acordo com a redenção universal, que trata da verdadeira fé professada verdadeiramente por muitos e depois negada pelos mesmos.

Outra passagem é aquela que ensina que Cristo amou a Igreja e se entregou por ela (cf. Ef 5, 25). Owen também cita Atos 20, 28. O objeto de amor é a noiva de Cristo. Isso não significa que Cristo não amou mais ninguém, mas que o especial amor aplicado é somente pela Igreja, e por isso todos são chamados a fazerem parte dessa união com o Senhor. Ao invés de provar a expiação limitada, o entendimento geral prova a expiação ilimitada.

Portanto, se não se pode dessa metáfora afirmar dois amores, como se houvesse um amor pela Igreja e outro amor por outros, fora da Igreja. Entretanto, o amor a todos é que forma a Igreja.

Na verdade, os eleitos foram também filhos da ira, como os reformados reconhecem, para depois da justificação e regeneração se tornarem filhos de Deus, amados por Deus, e terem o amor de Deus em seus corações (cf. Ef 2, 3; Rm 5, 5). Aqueles que ainda não fazem parte da Igreja não usufruem do amor de Cristo aplicado neles, que é o amor que forma a Igreja. Portanto, Cristo morreu por todos e Seu amor é manifestado e comunicado somente naqueles que estão em Sua Igreja. Isso está conforme a redenção universal.

Assim, a entrega de Cristo pela Igreja não é prova da expiação limitada, mas antes supõe, como é aparente, a expiação ilimitada, que chama a todos ao amor de Deus em Cristo Jesus.

Esses argumentos que Owen propôs não puderam refutar a redenção universal, mas são apenas exemplos que muitas vezes retratam a vida da graça dos eleitos, e nos convida a participar dela, como objetos do amor de Deus em Cristo. Como afirma Owen, os obstinados não serão satisfeitos com mais argumentos. Espero que esses sejam suficientes para a fé na redenção universal operada pelo Senhor Jesus Cristo na cruz.

Gledson Meireles.

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