sexta-feira, 23 de março de 2018

O nascimento do purgatório de Jacques Le Goff

Le Goff inicia sua obra aludindo às controvérsias surgidas no tempo da Reforma a respeito do purgatório, e introduz as palavras de Lutero que chama o purgatório de o terceiro lugar, o que seria, como mostra Le Goff, o lugar “inventado” [com aspas no original]. Prestemos atenção: o historiador usa de ênfase para falar da suposta invenção do purgatório.

Para começar, o historiador faz sua pesquisa desde as raízes: “Proponho-me seguir a formação desse terceiro lugar desde a antiga fé judaico-cristã, (...)”. (p. 15) Essas raízes, portanto, estão na fé de Israel e na fé da Igreja. Lá começa a formação da doutrina.

Muitos querem vê-la brotar do paganismo, da imaginação, da criação tardia. Mas não. Está radicada na fé judaico-cristã. E o lugar que essa doutrina tem com as culturas do paganismo não tem a ver com sua substância, mas antes, através apenas de matizes pálidas e acidentais. Isso significa que há semelhanças, podendo haver até pontos de contato, mas não está enraizada no paganismo, não nasceu de doutrina pagã.

É importante saber que Le Goff mostra o aparecimento do purgatório na Igreja oficial, afirmando que essa doutrina foi negada pelos hereges do seu tempo: “Tentarei por fim explicar por que razão ele está intimamente ligado a esse grande momento da história da cristandade e como contribuiu de maneira decisiva para ser aceite - ou, entre os hereges, recusado - no seio da nova sociedade saída do desenvolvimento prodigioso dos dois séculos e meio que se seguiram ao ano mil.” E a recusa de aceitar o purgatório é uma constante entre as heresias. Alguns dirão que os cristãos que estavam à margem da Igreja oficial é que seriam os cristãos “bíblicos”, e que negando o purgatório estariam certos em sua posição. Essa tese não é respaldada pela história, e Le Goff não entra nesse âmbito para tratar do pensamento herético sobre a questão. Porém, vemos as heresias serem o lugar onde o purgatório foi negado. Isso é importante frisar.

A obra trata da estrutura mental do espaço e do tempo com relação à formação da doutrina do purgatório durante séculos, até sua expressão definitiva, a qual chama o “nascimento”, que dá-se entre 1150 a 1200. Ali teria acontecido “o aparecimento de uma tal crença” (p.16) Escreve Jacques Le Goff: “Foi como «terceiro lugar» que o Purgatório se impôs.”

Depois, Le Goff afirma que o Cristianismo escolheu o modelo dualista para entender o mundo do além. E entre os que temiam o inferno estão também os judeus: “Apesar das belas aspirações ao Céu, os Antigos - Babilônios e Egípcios, Judeus e Gregos, Romanos e Bárbaros pagãos - haviam temido as profundezas da terra mais do que ansiado pelos infinitos celestes, aliás muitas vezes habitados por deuses coléricos.”

O Cristianismo “elevou a sociedade em direção ao céu” e privilegiou o pensamento do sistema “alto-baixo” para simbolizar e apresentar o céu e o inferno. (p. 17)

“Na Idade Média, este sistema irá orientar, através da «espacialização: do pensamento, a dialéctica essencial dos valores cristãos.”

Parece que Le Goff está afirmando o seguinte: aquilo que a Igreja ensinava no primeiro momento de sua existência será expresso sob uma forma diversa, a de um espaço, no período medieval. É uma maneira diferente de expor o que já estava sendo apresentado no início, sob moldes diversos.

Entre o “segundo e o quarto séculos” houve a elaboração mental dessa doutrina. Tem-se assim que os elementos bíblicos foram formulados e deram maior entendimento ao fato da purgação pós-morte: “Quando, entre o segundo e o quarto séculos, o cristianismo, menos fascinado pelos horizontes escatológicos, se pôs a reflectir na situação das almas entre a morte individual e o Julgamento Final e quando os cristãos pensaram - é, com os cambiantes que se verão, a opinião dos grandes Padres da Igreja do século IV, Ambrósio, Jerónimo e Agostinho - que as almas de certos pecadores poderiam talvez ser salvas durante esse período, sofrendo provavelmente uma provação, a crença que assim surgia e faria aparecer o Purgatório no século XII não conseguiu localizar com precisão essa situação e essa provação.”

A ênfase então é que nesse momento da história da Igreja não aparece o “lugar” para essa possível purificação da alma individual antes do juízo final, não localizando essa situação nem essa provação. A crença surgiu aí, entre os séculos segundo e quarto, elaborada pelos cristãos a partir de elementos bíblicos, pois Le Goff afirma que nesse tempo o cristianismo estava menos interessado nos acontecimentos escatológicos. É preciso essa compreensão para entender o empreendimento de Jacques Le Goff, pois o mesmo vê a fé no purgatório já nos primórdios do Cristianismo, ainda que proponha a maior exatidão dessa crença no século 12. Então afirma: “Até ao fim do século XII, a palavra purgatorium não existe como substantivo. O Purgatório não existe".”  Está tratando do termo purgatório, e não da doutrina.

A crença no purgatório foi um fenômeno lento, que durou séculos para em um determinado momento, “repentinamente ou quase”, emergir e efetuar sua expressão: “para emergir e para dar testemunho.” (p. 17) É o estudo sobre o aparecimento do substantivo, tratando do “processo de espacialização do pensamento”.

Ao falar do “espaço” ele afirma sobre sua noção: “É sobretudo no plano simbólico que ela manifesta a sua eficácia.” (p. 18) E sobre a organização do espaço, no sentido de compreensão e maior exatidão desse dogma, feito pela Igreja Católica, afirma: “Organizar o espaço do seu além foi uma operação de grande alcance para a sociedade cristã.”

Acima, eu aludi aos elementos bíblicos, sobretudo da era apostólica, que formam a doutrina do purgatório, e foram utilizados nas reflexões teológicas imediatamente no período sub-apostólico, a começar do século seguinte, o segundo século. Estamos em um tempo não muito distante, ou em outras palavras, um tempo bastante próximo do período apostólico, e é possível conversar com pessoas que tiveram contato pessoal com os apóstolos do Senhor.

Como já notei em outro lugar, a partir das minhas pesquisas e reflexões bíblicas, e com a ajuda do pensamento de notáveis teólogos, o mesmo Le Goff diz: “A crença no Purgatório implica antes de mais a crença na imortalidade e na ressurreição, em que algo de novo para um ser humano pode acontecer entre a sua morte e a sua ressurreição.”
 
continua...

quarta-feira, 21 de março de 2018

A primazia do bispo romano através dos séculos



Nessa parte o livro tenta provar que Pedro não tem sucessores. Tenta-se provar que “os bispos romanos não exerciam um primado universal sobre todos os demais bispos da Igreja” (p. 213) Há mesmo um sinal de que haverá livro próprio para tratar da questão. Então, o foco atual é a pessoa do apóstolo.

O Dr. Samuele Bacchiocchi, estudando a história do papado, aprendeu que: “O processo (da supremacia do papado) começou já no segundo século quando a primazia do bispo de Roma foi amplamente reconhecida e aceita.” (Samuele Bacchiocchi, The Role of EGW´s writings in Biblical Interpretation, p. 12) Obviamente isso já é encontrado nas páginas da Bíblia, e é realidade no primeiro século. Mas, o Dr. Bacchiocchi, que devotou grande parte de seus estudos sobre esse assunto particular, e divergiu mesmo de Ellen White que colocava o estabelecimento do papado em 538, no século sexto, portanto, é digno de nota frisar, que ele reconheceu tamanha evidência história “já no segundo século”.

Obviamente, ele não cria na Primazia do Papado, por negar igualmente a teoria petrina e a sucessão apostólica. Porém, chegou bastante próximo da verdade, e quase reconheceu a fonte dessa doutrina, a Bíblia.

A primeira citação da Epístola aos Magnésios, de Inácio, mostra a organização hierárquica de bispos, presbíteros e diáconos. Fala-se do bispo como representante de Deus, “que ocupa o lugar de Deus”. Mais adiante, o livro tenta lançar um sentido maléfico nas Palavras dos papas quando referem-se a essa realidade, quando dizem que estão representado Deus na Terra. É justamente isso que Santo Inácio mostra que os bispos realizam. E o Catecismo da Igreja, como já provado, ensina o mesmo, até os dias atuais, sem mudança alguma, de que os bispos são vigários de Jesus Cristo.

É o que escreve aos Tralianos: “Quando vos submeteis ao bispo como a Jesus Cristo”. (p. 214) Assim também fala em relação aos presbíteros e aos diáconos.

Adiante, mostra que a Igreja tem autoridade para ensinar a Palavra de Deus: “aquele que age sem o bispo, sem o presbítero e os diáconos, esse não tem consciência pura”. [ênfases acrescentadas] Se alguém pensa em ensinar algo que, ao seu livre exame da Escritura, não estiver de acordo com essa norma objetiva, de unidade com o bispo, o presbítero, e os diáconos, esse não está na doutrina verdadeira, e está fora do santuário, como afirma Santo Inácio. Essas palavras são importantes para provar que o livre exame inexistia na Igreja antes da Reforma Protestante. Esses registros são da Igreja na Idade Antiga. Ser submisso ao bispo e ao presbítero é estar bem com Jesus Cristo! Essa norma é bastante cristã católica.

“Atendei ao bispo, para que Deus vos atenda.” Com absoluta certeza, nesse caso, não há espaço para heresia. O bispo deve estar em união com os demais bispos, e presbíteros, e diáconos. Assim, as autoridades, em comum acordo, na doutrina, impedem que as heresias se imponham. Note que Santo Inácio inculca a santa obediência nos cristãos. Essa linguagem, essa doutrina, dificilmente se poderá ler e ouvir no Protestantismo.

Ainda, Santo Inácio escreve: “submetidos ao bispo e ao presbítero, sejais santificados em todas as coisas”. Essa submissão do cristão está incluída na santificação sua.

Os textos de Santo Inácio foram apresentados no livro com outro objetivo, mas usados aqui para lançar um olhar de perto no que ensinam sobre a autoridade da Igreja. Fez bem em citá-los a obra analisada.

O fato que o livro aponta é a curiosa ausência de menção ao papa, quando Santo Inácio cita o bispo, o presbítero, e o diácono. Assim, conclui o livro que não havia papa! Desse silêncio específico com relação ao chefe da Igreja, diz-se que esse não existe.

Então, ao frisar na ausência da menção ao papa na Epístola aos Romanos, escreve: “É claro que não! O fato de Inácio nem sequer citar o bispo de Roma é somente uma consequência do fato de que tal bispo não era nem nunca foi superior a todos os demais bispos.” (p. 214)

Pode-se afirmar que, então, o bispo de Roma ou não existia, ou seria o menor, já que nem foi citado? Não, obviamente. Contudo, por que a falta de menção, por parte de Santo Inácio? Esse ponto diferencia a Igreja em Roma das comunidades nas diversas localidades. Se em todas as outras cartas os bispos são mencionados, e diversas vezes, como afirma o livro, e na Carta aos Romanos não há tal coisa, deve existir algo diferente que coloca a Igreja em Roma em destaque.

E a explicação do livro para o fato de Santo Inácio sempre citar outros bispos e nunca o bispo de Roma é essa: “A resposta é óbvia: o bispo de Roma não era Sumo Pontífice coisa nenhuma!” (p. 218) Essa resposta não procede. Logicamente, poderia indicar que Roma não tinha bispo na época, o que não é verdade. Há quem conclui assim. Outra conclusão seria que Roma tem o menor dos bispos, já que nem menção mereceu, algo certamente ainda menos verdadeiro. Existe quem afirma que a Igreja era regida pelo corpo de presbíteros. Mas, Santo Inácio também não se refere a tal grupo de presbíteros! E do silêncio se prova que não havia bispo? Que dizer de tamanha “prova”? Felizmente o livro não traz esse argumento. Voltando ao caso. Sendo assim, há destaque para Roma, e o livro perdeu-se em suas elucubrações, não fornecendo resposta correta.

Quando Santo Inácio escreve que a Igreja de Roma preside na “região dos romanos”, o livro coloca como “prova” de que não presidia em outros lugares, ou seja, não tinha governo universal, mas apenas regional. Deve-se saber que ainda hoje a diocese de Roma preside na região dos romanos, mas nem por isso deixa de ter presidência universal. Ainda, o texto está referindo-se ao local da Igreja que preside, isto é, na região dos romanos. Assim, não se refere à região que a mesma preside, mas à localidade da mesma. Às outras igrejas se diz: “a Igreja que está em Éfeso”; “a Igreja que está em Magnésia”; “a santa Igreja que está na Trália”; “a Igreja de Deus o Pai, e nosso Senhor Jesus Cristo, que está em Filadélfia”; “a Igreja que está em Esmirna”. Quanto à Igreja de Roma, diz: “a Igreja... que preside na região dos romanos”. É clara a diferença. Em nenhuma outra igreja é dito que “preside” em sua região, ou em qualquer outro lugar, somente à Igreja de Roma é isso referido. A presidência de Roma é evidente. [cf. Mark Bonocore]

Sobre os elogios que Santo Inácio dirige à Igreja de Roma, o livro aponta que o mesmo santo elogiou ainda mais os efésios. De fato, ele fala da Igreja “grandemente abençoada com a plenitude de Deus Pai”, predestinada, inabalavelmente unida, feliz etc. [Um ponto digno de nota, diga-se de passagem, é que Santo Inácio escreve: “reanimados pelo sangue de Deus”, mostrando a fé na Divindade de Jesus Cristo.] Voltando ao tema do elogio, não parecem iguais em sentido os elogios a Roma. Mas, esse caso não dirime a questão, e pode passar sem um comentário aprofundado. Pode-se apenas indicar que Roma é dita ser digna de Deus, digna de honra, digna de ser chamada feliz, digna de louvor, e que porta a Lei de Jesus Cristo, e o Nome do Pai. Veja-se a diferença.

Uma análise mais detida revela algumas verdades. Veja-se que Santo Inácio usa um tom diferente ao escrever aos romanos, em comparação com suas outras epístolas. Em nenhum lugar urge os cristãos de Roma a obedecer o bispo, o presbítero e o diácono, como normalmente faz em outras ocasiões. Pede, no entanto, que orem por ele.

Nessa época, havia três centros expoentes do Catolicismo: Roma, Antioquia e Alexandria. E a razão disso se dá por terem sido esses três centros do Cristianismo fundados por São Pedro. Bryan Cross, em comentário, formidavelmente esclarece, a partir da eclesiologia de Santo Inácio, que enfoca fortemente a autoridade episcopal, como visto, para a unidade de fé, que a Pedra visível, a Rocha que é Pedro, é uma conclusão óbvia nesse cenário. [http://www.calledtocommunion.com/2010/10/st-ignatius-of-antioch-on-the-church/]. Está implícito em seus escritos.

Da afirmação que Santo Inácio acreditava na fundação da Igreja na Síria, isso é apenas um erro de leitura. Santo Inácio refere-se ao local onde a profecia a respeito do nome cristão realizou-se: Antioquia. Não está dizendo que a Igreja foi fundada lá, mas que o nome santo dos cristãos ali surgiu. Paulo e Pedro estabeleciam as bases da Igreja em muitos outros lugares, e certamente é a isso que se refere o texto, ao estabelecimento geral da Igreja, não à sua fundação na Síria.

Na avaliação das citações de São Clemente, São Policarpo e Santo Ireneu com relação à doutrina do primado de São Pedro, seguem-se os resultados.

Negando o direito jurisdicional de Clemente noutra diocese, explica o livro de forma geral: “visto que era muito comum os bispos daquela época exortarem os de outras comunidades cristãs”. (p. 220) Isso seria como apenas exemplo do costume antigo de exortação a outras comunidades, não do direito do papa nas igrejas fora de Roma.

E, de forma categórica, esse ponto é negado: “Se exortar outras comunidades cristãs fosse sinal de autoridade sobre elas, então Paulo era papa, porque ele escreveu à Igreja de Roma, e o mesmo deveria ser concedido igualmente a todos os outros que uma vez fizeram o mesmo a outras comunidades cristãs que não eram de sua jurisdição.” (p. 220)

No pensar protestante todas as igrejas eram de certa forma “independentes”, ou mesmo absolutamente “independentes”. Que valor teria essa independência se outros bispos escreviam-lhes cartas com exortações? Por que motivos? Na verdade, as igrejas antigas funcionavam como hoje são as comunidades locais, constituindo paróquias e formando dioceses, podendo ser agrupadas em regionais, resultando de todas essas as igrejas nacionais, chegando às continentais e, enfim, à Igreja católica [universal] unida com a Sé Apostólica de Roma. É verdade que cada igreja particular tem sua autonomia, relativa é claro, pois rege os seus assuntos de acordo com a realidade local, vivendo em cultura específica, enfrentando problemas diversos e etc., mas possuem doutrina, moral e culto idêntico à da Igreja em toda a parte da terra. Assim era a Igreja nos tempos apostólicos, sub-apostólicos, medievais, modernos e atuais. Una, santa, católica e apostólica.

Ainda, os exemplos de São Paulo passando mandamentos não é fato de que era o único apóstolo a fazê-lo, mas meramente fatos que mostram a autoridade apostólica.

Sobre São Clemente, é óbvio que o mesmo sendo papa cria na Soberania, na autoridade Suprema de Jesus Cristo na Igreja. Todos os papas crêem. Apontar esse fato como contra-argumento ao papado é puerilidade crassa.

A citação do Dr. Bacchiocchi sobre a controvérsia da páscoa mostra bastante claro o poder do papa, no direito de excomungar outras dioceses, não somente um poder localizado na sua própria igreja local.

Se os bispos pediram ao papa maior compreensão e tolerância, ou mesmo o criticaram por sua dura medida em excomungar as igrejas asiáticas, isso não depõe contra a doutrina do primado, mas a indica. Mostra apenas que outros não ficaram satisfeitos com a ação papal daquela forma.

Parece que o assunto do poder do papa continua sem entendimento no livro. Aliás, é bastante patente isso. Afirma-se que o papa deveria ter excomungado todos os bispos que não estivessem de acordo com suas medidas, e somente assim seria realmente um papa, e não ser um homem que admitisse repreensões de seus companheiros no episcopado. Por esse princípio seria como se o papa pudesse lançar excomunhões a bel-prazer, por motivos mesmo pessoais, e fosse capaz de evitar até as incompreensões e opiniões contrárias em quaisquer assuntos, cortando da comunhão eclesiástica aqueles que não pensassem como ele. Pura fantasia. O papa não age assim, e nem o pode. As questões que admitem excomunhão são aquelas que orbitam no domínio doutrinal, que levam ao cisma, que negam a fé, apostatam, e repulsam à autoridade do pontífice, causando enorme prejuízo para a unidade da Igreja e à vida espiritual dos crentes. Não se limitam às questões de cunho privado e de meros caprichos do ego, como o livro permite compreender.

Desse modo, a seguinte afirmação está fadada ao fracasso total em sua argumentação: “Essa é a prova mais forte de que o bispo de Roma estava no mesmo patamar de autoridade de todos os outros bispos, pois se ele fosse superior aos outros não seria repreendido por eles; ao contrário, teria a sua decisão aceita, pois seria o primaz, o maior de todos os bispos, cuja autoridade deveria ser obedecida em qualquer discussão.” (p. 222) Se essa é a prova “mais forte”, então acabaram-se as provas. Todos ao descanso na sólida doutrina.

Na citação da desavença entre Policarpo e o bispo de Roma, vê-se a autoridade do papa quando se diz: “evidentemente por deferência,”, ou em outra tradução: “por respeito”. O papa cede o direito de consagrar a Policarpo por respeito, não porque não tivesse autoridade superior à dele, e fosse obrigado por isso.

Sendo assim, eles comungaram um com o outro e, na igreja, Aniceto cedeu a Policarpo, sem dúvida por respeito, o ofício de consagrar...” [ênfase acrescentada] Nota-se que não cedeu por pura submissão ou falta de autoridade, mas por ter ambos suas razões legítimas, e não intrinsecamente incompatíveis com a unidade, o papa cede por respeito ao santo irmão e amigo no sacerdócio. (Eusebio de Cesaréia, História Eclesiástica, Livro 5, XXIV) Assim, o bispo de Roma não se sujeitou ao de Esmirna, como quis o livro. De fato, conceder o direito de consagrar, ou seja, de celebrar a eucaristia, em outras palavras, de celebrar a missa, foi dado pelo papa Aniceto ao bispo Policarpo. É preciso notar que Policarpo recebeu do papa essa confirmação em seu direito de exercer o sacerdócio em plena comunhão com a Igreja.

O que ensina a citação da Encíclica “Como amar o Papa” [Pio X, 18/11/1912] está em contraste com o escrito na reposta acima. Será, então, que o livro estava correto ao entender que a vontade e opinião do papa superam todas as opiniões e vontades dos fieis em toda e qualquer discussão? Na verdade, não se trata disso, mas do princípio do amor, no qual a pessoa que ama tenta conformar-se com aquela amada. Jesus disse para amarmos a Ele, o que equivale à obediência. Esse exemplo o papa usa, pois como representante de Deus na Igreja, como chefe da mesma, é seu dever ensinar o Evangelho, e estando na verdade deve ter obediência. Esse é o sentido da alocução feita por São Pio X.

O livro mostra Tertuliano como não tendo noção da primazia de Roma e acusando o papa de heresia, em Contra Práxeas 1. Para contextualização histórica geral desse tema, é necessário alongar-se um pouco nesse particular, para compreender as palavras de Tertuliano e sua ligação com o primado da Sé de Roma.

São Calisto, bispo de Roma, papa de 219 a 224, condena as heresias da época, como bispo dos bispos. Nesse tempo, Tertuliano havia abraçado a heresia montanista, contrária ao perdão, conferido pela Igreja Católica, de cristãos que cometeram adultérios e fornicações. Ele critica o papa Calisto, e em suas críticas é claro o papel do bispo de Roma na época. Tertuliano usa de sarcasmo e o chama ‘Pontifex Maximus’, comparando-o ao imperador de Roma, e de ‘bispo dos bispos’, referindo-se ao seu poder sobre toda a Igreja. Refere-se ainda ao Evangelho, no texto de Mateus 16,18-19 como base para o primado, reconhecido pelo papa, e negado pelo próprio Tertuliano. [cf. Mark Bonocore: The title Pontifex Maximus] Assim, o testemunho de Tertuliano é assaz apropriado para compreender a autoridade do papa, e infeliz por mostrar um homem de sua envergadura negar o primado do papa e a sucessão apostólica, dando as mãos a um rigorismo heterodoxo.

Fato interessante, também, é que São Tiago Menor, parente de Jesus, foi sucedido no episcopado de Jerusalém por São Simão, seu irmão, também primo de Jesus. Isso ocorreu numa reunião de toda a Igreja, conforme a História Eclesiástica.

São Cipriano, na Epístola 59, n. 14, refere-se a Roma como a igreja principal, origem do sacerdócio, e que não pode errar em questões de fé.

No Canon 28 do Concílio de Cartago há a recomendação de resolver toda questão em sua própria província, proibindo apelar para outras sedes, numa proibição de apelação a Roma. Esse tempo foi de controvérsia, e não pode ser usado como inexistência da primazia de Roma, mas, pelo contrário, de mais um exemplo desse fato.

O caso de São Cipriano na questão contra o papa Estêvão revela um exemplo em momento de controvérsia. A fé de São Cipriano, como vista, estava de acordo com o primado, e não contra. O livro afirma que o fato de São Cipriano reconhecer o bispo de Roma como sucessor de Pedro seria, por assim dizer, algo semelhante ao natural, pois todas as dioceses eram vistas como de origem apostólica. Não é bem assim. Que outras dioceses, exceto Antioquia, Alexandria e Roma, são ditas serem seus bispos sucessores, não dos apóstolos, mas de Pedro em especial? O livro não provou sua asserção, e nesse salvatério inútil não logrou o intuito almejado.

Assim, o argumento da sé romana ter raiz em Pedro não foi para o lixo, mas está de pé, divinamente estabelecido, pela Bíblia, pela História, e pelo bom senso. Da submissão do cristão ao bispo local infere-se a submissão ao papa, pois todo bispo deve estar nessa comunhão. Certamente, esse é o sentido da unidade da Igreja em São Cipriano.

Se são falsas as citações, e todas manipuladas, como as de que São Cipriano cria que Roma não erra na fé, e que é a sede da Igreja, que provas o livro apresenta para tal acusação? Para essa controvérsia o livro aponta artigos do autor, em indicações no rodapé, e afirma: “tradução mal feita do original (...) [referindo-se à obra Da Unidade da Igreja] interpolação que é fruto de uma adulteração vergonhosa no texto de Cipriano [frases de São Cipriano: “os romanos não podem errar na fé” e “Roma é a matriz e trono da Igreja Católica”]”.

E, conferindo o artigo citado, há grande energia contra essas citações de São Cipriano: ““Atrevem-se estes a dirigir-se à cátedra de Pedro, a esta igreja principal de onde se origina o sacerdócio… esquecidos de que os romanos não podem errar na fé (Epist. 59,n.14, Hartel, 683) Essa adulteração é tão vergonhosa que qualquer um que tenha um mínimo de decência poderia ir conferir na “Epístola 59” de Cipriano e verá que não existe absolutamente nada que sequer seja parecido com isso nessa epístola 59 de Cipriano...” [ênfase no original. Artigo de 4/12/2012]

Realmente, não está na Epístola 59 segundo a edição pesquisada pelo autor. No entanto, esse deveria publicamente, por justiça, emendar-se dessa acusação de fraude, já que não houve Adulterações católicas nos escritos de Cipriano, como é o título do artigo, pois, quem tiver a mínima decência encontrará a citação noutra epístola.

De fato, o que está na Epístola 54,14, de São Cipriano, assim ensina: “Depois de coisas como essas, ademais, eles ainda ousam – um falso bispo ter sido consagrado para eles pelos hereges – a sair e levar cartas dos cismáticos e pessoas profanas ao trono de Pedro, e à principal igreja de onde a unidade sacerdotal tem sua fonte, e não considerar que esses foram os romanos cuja fé foi louvada na pregação do apóstolo, aos quais falta de fé não tem acesso.” [tradução minha. Site newadvent.org] Os hereges ousavam levar cartas a Roma, e São Cipriano mostra que os romanos têm a indefectibilidade, em sua Igreja, e o erro da fé não pode ter lugar entre eles. Importa pouco o que farão dessas palavras agora, que interpretação ao gosto individual, muitas vezes, será dada, mas o fato das palavras serem verdadeiras.

O assunto é o cisma, a negação da autoridade do papa. São Cipriano, então, cita a cátedra de Pedro, o seu TRONO, fala da origem do sacerdócio em Roma, como fonte de unidade da Igreja inteira, e refere-se à Igreja de Roma como a ”principal Igreja”. Todos os elementos da verdadeira doutrina. Mais uma refutação. Graças sejam dadas a Deus por meio de Jesus Cristo Nosso Senhor.

Se o texto não foi encontrado na Ep 59, o foi na Ep 54, no número 14. Dessa forma, o texto é verdadeiro, não houve adulteração, nem invenção, nem falsificação. O autor deve suas desculpas.

Recorrer a São Cipriano é de grande ajuda para a causa protestante, até que as fontes sejam realmente consultadas. A partir daí, renova-se o desapontamento protestantista. Em primeiro lugar é preciso saber que São Cipriano errou, e no momento de controvérsia contra o papa Estêvão perdeu as rédeas e afastou-se, momentaneamente, daquilo que era próprio da sua fé pessoal. Afastou demais de sua vigorosa ortodoxia sobre a cátedra papal, contradiz-se, como nota Harnack,

Não é necessário transcorrer por outros textos, pois para São Cipriano estar na Igreja significa segurança na fé, união com Cristo, e unir-se aos hereges equivale à perdição. (cf. Da Unidade da Igreja 6)

Com São Jerônimo não é diferente: o livro reconhece que o mesmo concede honra ao papa, mas nega que tenha classificado o papa como superior aos demais, como bispo dos bispos. E qual é a prova? Vejamos: "Como podemos ter certeza disso? Simplesmente porque Jerônimo considerava os outros bispos também como “papas”, e vai além e diz ao bispo de Alexandria que ele era “o mais abençoado papa” da Igreja: ”Jerônimo para o mais abençoado papa Teófilo [Alexandria]”" (p. 230) Pelo que São Jerônimo escreve entende que o papa, como eram chamados todos os bispos da época, Teófilo teve importante papel na defesa da fé contra uma heresia, auxiliando mesmo a cidade de Roma com seus escritos. O santo convida o bispo a escrever mais vezes, a não hesitar em ajudar os irmãos no Ocidente. Quando escreve que o bispo era "de uma autoridade tão grande", essas palavras soam como elogio devido ao fato circunstancial. (Cartas 63 e 88)

Dessas palavras o livro questiona sobre a primazia do bispo romano, que estaria ofuscada pela posição do bispo Teófilo, se fosse o caso, sendo que o argumento tenta refutar o lugar primeiro do papa de Roma.

Quando pede que uma carta seja enviada a ele e ao bispo de Constantinopla e refere-se ao consenso universal, o livro conclui que o papa não foi mencionado, e sendo o consenso universal contrário aos poderes plenos do papa, sua posição estaria estabelecida. Nada mais errado. O consenso universal da Igreja é ensinado pelo papa. Não há contraste em ambos os conceitos, mas perfeita unidade. A ideia de que o papa "teria autoridade para resolver tudo sozinho", segundo parecer católico, é na verdade um parecer protestante lançado como sendo de origem católica. É um espantalho.

A citação da Epístola 146 é usada para colocar Roma fora de cogitação como lugar de importância central na Igreja no pensar de São Jerônimo. Certamente, o santo refere-se ao erro do costume ali surgido, e impõe a regra geral da Igreja, sem por isso negar o lugar de Roma como sede da fé.

Na verdade, na Epístola 146 São Jerônimo mostra que o episcopado é idêntico em dignidade onde quer que se encontre, seja em Roma ou em outra diocese. Essa verdade continua em voga, para os desavisados. Os bispos estão numa mesma hierarquia, e são no poder da ordem iguais no seu sacerdócio. O papa e outro bispo de qualquer igreja local da terra estão no mesmo grau de ordem recebida. O que o papa possui como distinção está no seu poder jurisdicional.

São Jerônimo ensina que o primado de Pedro servia para a unidade eclesial, para afastar ocasiões cismáticas. (Ad. Jov. I, 26) Não será difícil entender, por essas palavras, a importância da unidade de fé e prática para a Igreja em todos os seus tempos, e assim ter estabelecida a doutrina da sucessão episcopal.

E sendo Policarpo o bispo de toda a Ásia, segundo São Jerônimo, então o papa não seria líder na Ásia. Essa e a lição que o livro ensina. Mas, se cada Igreja local tem o seu bispo, que a governa, então o mesmo é chefe daquela igreja. Significa isso que o papa não tem nenhuma influência sobre ela, e que não possua o primado? Esse argumento não funcionou, e mais uma vez o livro deixou essa falha para corrigi-la, se Deus quiser.

Quando Eusébio fala de Jesus como o único Sumo Sacerdote do universo, conclui o livro que ele não cria no papel do papa como líder de toda a Igreja. Além disso, afirma que o título de papa foi ambicionado pelo bispo de Roma, que o tomou dos demais. Nada histórico, apenas força retórica. O fato do papa ter ficado com título exclusivo é realmente um desenvolvimento histórico compreensível e são, em nada lembrando o que foi dito no livro.

E os elogios a Antioquia, por São João Crisóstomo, devem ser entendido não no sentido de jurisdição, de centro da fé, mas noutro sentido. Aí temos, sim, um exemplo de preeminência de honra.

As 'provas' que o livro tenta inculcar tornam-se cada vez mais problemáticas, ao passo que o tempo corre. Em pleno século 6, pelos arrazoados convictos do livro, não deveria haver papa, pois crê-se que São Gregório Magno, que era papa, teria rejeitado o título de bispo universal.

Vê-se que São Gregório cita "as ordenanças evangélicas" e "os decretosdos cânones", o que impõe uma leitura contextualidada doutrinal e historicamente. Aquele fato não era conhecido, poranto, não tradicional da Igreja. Tratava-se somente do uso do título "bispo universal' pelo patriarca de Constantinopla, como sendo um erro no uso do título em si?

Na verdade, há um sentido inaudito que o papa reprova. Chama de "nome de blasfêmia", e que o mesmo tira "a honra de todos os sacerdotes". (p. 234) Seria o papado tendo tal ataque no século 6, pelo grande papa São Gregório?

O livro considera um argumento, talvez apresentado em algum site apologético: "Os católicos afirmam que Gregório Magno não condenou o título de “papa universal” para si próprio, mas condenou este título somente quando aplicado a João, bispo de Constantinopla, quando este queria se tornar o único “bispo dos bispos”. Porém, isso não é verdade. " (p. 235)

Então, o título é sinal do precursor do anticristo, uma condenação para todo aquele que quiser usar do mesmo. É interessante que o título significa um desprezo aos outros bispos, negar o caráter de bispo que os outros bispos possuem. (Ep 48)

O que o papa está reprovando é a ideia de que há apenas um único bispo, e que somente esse tem o caráter, tal que toda a doutrina depende de si, e toda autoridade está em si, e que os demais bispos na verdade não o são. Se assim fosse, uma vez caindo esse bispo a Igreja estaria fadada ao fracasso. Portanto, esse entendimento do título não é católico.

A afirmação de que a Igreja da época em questão não era "apostólica romana" como hoje, é tão gratuita como aquelas afirmações já batidas aqui.
Aliás, Gregório Magno foi papa, e é santo canonizado na Igreja. Viveu numa época em que a ideia do papado já estava bastante desenvolvida, e se nos primeiros tempos não havia dúvida, muito menos naqueles de São Gregório. A Bíblia já é patente quanto à doutirna do primado, e a história vai recebendo maiores luzes conforme a Igreja debruça-se sobre a Palavra de Deus. Seja louvado Nosso Senhor Jesus Cristo.

Outra informação invertida é a de que o bispo de Roma tinha a primazia de honra por ser bispo de uma cidade da importância da capital imperial. Pelo visto, na História ocorre o contrário: Roma é preeminente por ter sido sede do apóstolo que Cristo escolheu como caput de Sua Igreja.

O Cânon 28 de Calcedônia é apresentado com ideia contrária. (p. 245)

O papado retamente compreendido, com espírito sincero e orientado pela correta doutrina é um serviço santo a Deus pelo serviço aos irmãos, e nunca um orgulho.
(o texto acima refuta o capítulo 19)
 
Gledson Meireles.

quinta-feira, 8 de março de 2018

Sobre divisões do Cristianismo

No artigo Entenda as divisões do Cristianismo e descubra a Igreja verdadeira! é explicado substancialmente a história da Igreja.

Na verdade, esse esquema encaixa-se na tese do autor, de que a Igreja Católica Apostólica Romana surgiu em 1054 com o cisma do Oriente, e que da mesma forma a Igreja Ortodoxa surgiu ali também. É como se usasse o ponto de vista respectivo de católicos e ortodoxos para explicar o surgimento de ambas a partes da Igreja (Ocidental e Oriental) e, ao mesmo tempo, justificar a posição do Protestantismo surgindo no século XVI.

O que posso afirmar que é que o gráfico não está correto pelas seguintes razões, bastante bíblicas por sinal:

1.       A linha da Igreja Católica antiga é quebrada no século XI, de forma a pensar que ainda que o Nestorianismo e o Catolicismo Oriental tenham surgido após o tempo apostólico mas eles não quebraram essa unidade de única Igreja. Veja que a linha continua com a existência da Igreja Católica Antiga a partir do Nestorianismo e do Catolicismo oriental, fazendo dos mesmos (aliás, corretamente) heresias.

2.       Outro sinal que refuta o próprio gráfico é o que está no princípio bíblico de que os que deixam a Igreja não são dos nossos. Assim foram os nestorianos, os católicos orientais (como no gráfico) e os movimentos reformistas, a Igreja Ortodoxa e o Protestantismo.

3.       É evidente que todos os outros surgem a partir da Igreja Católica Apostólica Romana, e que nenhum movimento de reforma como conhecemos surge no Oriente. Por que Deus fez surgir movimentos de reforma às origens do Cristianismo justamente na Igreja Católica Apostólica Romana?

4.       Isso mostra que o Catolicismo continua com a sucessão apostólica, tanto na doutrina como na sucessão histórica de fato.
Gledson Meireles.