quinta-feira, 17 de março de 2016

Comentário: São Jerônimo os deuterocanônicos e o uso do “está escrito”

O que vem a seguir é um comentário baseado nos artigos encontrados nos links as seguir: link 1, link 2 e  link 3.

O apologista católico argumentou que São Jerônimo empregou a expressão “ESTÁ ESCRITO” aos livros bíblicos, somente a eles, tanto aos protocanônicos quanto aos deuterocanônicos. Para isso, mostrou a diferença das citações que o próprio autor faz em relação a outras obras, e comparou com as citações que o apóstolo São Paulo utilizou dos escritores pagãos. A exposição do apologista foi bastante clara, pois provou que nem a expressão (que de certa forma já havia ganhado um sentido técnico) foi usada para outros livros, nem os escritos profanos foram citados juntos ou entremeados de citações bíblicas. Essa realidade é muito convincente.

Mas, o apologista protestante entendeu, e continuará entendendo, certamente, que São Jerônimo, apenas estava dizendo, nesse caso em relação aos deuterocanônicos, que o “está escrito” refere-se a estar escrito em algum lugar, a algo que foi posto por escrito, nada mais nada menos: “estas citações estavam "escritas", nada mais e nada menos”.

São Jerônimo tratou diretamente da questão da inspiração dos deuterocanônicos diversas vezes, e mostrou suas dúvidas e opiniões pessoais quanto a esses livros, categorizando-os segundo o que tinha aprendido do seu contato com os judeus, mas nunca desaprovou esses livros em suas obras, na sua prática, nem entrou em conflito com as decisões eclesiásticas, quando teve conhecimento delas. Certamente, São Jerônimo relutou em aceitar a canonicidade dos deuterocanônicos depois que adotou a veritas hebraica, onde a argumentação girava em torno da inspiração do Antigo Testamento somente através da língua hebraica, um princípio que estava em voga nos círculos judaicos, e que agradou e convenceu São Jerônimo por muito tempo, pelo menos.

Para quem usa o princípio de que as afirmações diretas de São Jerônimo sobre os livros deuterocanônicos é que devem substanciar sua posição quanto a esses livros, como fazem os protestantes, então dirão, não importa qual seja o uso que fez o santo padre desses escritos durante sua vida, dirão que apenas usou-os quando foi necessário em seus debates, e lia-os apenas para edificação, e não para provar alguma doutrina cristã, etc.

Não adianta argumentar mais nada para quem favorece essa linha de intepretação para entender a posição de são Jerônimo, pois não há contextualização a ser feita, a fim de negar isso, nem observações nas obras segundo o aspecto cronológico, etc., pois basta saber o que São Jerônimo escreveu diretamente sobre o caso. E se nessas passagens ele adotou os 22 ou 24 livros do cânon judaico, então está pronto, caso encerrado. Esse é o resultado que vemos no link 2.

Agora, se quisermos olhar os escritos de São Jerônimo em sua totalidade, acompanhar o desenvolvimento de seu pensamento, a influências que o autor sofreu, as afirmações que fez, as circunstâncias em que foram feitas, o que dizem cada uma das afirmações em si mesmas, e dentro do contexto em que aparecerem, quais os sinais de mudança existem em relação ao avanço do tempo, que afirmações diretas são feitas a respeito da posição dos judeus e da Igreja em geral quanto aos escritos, como foram usados os livros bíblicos  - protos e deuteros – em relação à doutrina, à argumentação cristã, e etc., enfim, numa verdadeira exegese textual  de São Jerônimo, então deveremos notar coisas que estão de acordo com a realidade: 1) São Jerônimo nos primeiros anos usou os livros bíblicos, os 73, de forma igual, sem qualificações. 2) Após seu contato com os judeus e o texto massorético as suas críticas ao texto grego, e diretamente aos deuterocanônicos, tornam-se explícitas e aparecerem em várias obras num período de alguns anos. 3) Depois das decisões conciliares, que clareavam muito na questão do cânon, no mínimo, São Jerônimo foi deixando de considerar os deuterocanônicos de forma depreciativa. Sua prática mostra que os deuterocanônicos foram usados como os protocanônicos. Talvez as dúvidas e reservas de São Jerônimo não foram nunca capazes de fazê-lo abandonar o cânon usado na Igreja, e que no final da sua vida essas dúvidas já haviam sido sanadas, os 73 livros foram formalmente aceitos por ele, como mostra sua prática constante.

O erudito protestante J. N. D. Kelly afirma que São Jerônimo disputava com judeus usando os livros deuterocanônicos, o que gerava certo desconforto, já que os judeus NÃO ACEITAVAM a canonicidade desses escritos, e os reputavam, pelo menos quanto a certas passagens, pelo que podemos notar da afirmação de Kelly, os reputavam como ridículos. Desse modo, o uso de São Jerônimo é ainda mais notório de que o mesmo tinha os deuterocanônicos como realmente Palavra de Deus. Antes, vejamos o que diz J. N. D. Kelly: “De novo o que o moveu foi principalmente o embaraço que sentia ao ter que argumentar com Judeus com base em livros que eles rejeitaram, ou mesmo (por exemplo, as histórias de Susana, ou de Bel e o Dragão) que achava francamente ridículos.”

Foi explicado pelo apologista católico esse fato mencionado por Kelly, da forma usual de São Jerônimo em tratar os deuterocanônicos como Escritura. Mas, um apologista protestante fez a seguinte elucidação:Se eu estiver a discutir com um católico romano, eu posso citar um livro apócrifo como se fosse Escritura contra ele, porque sei que ele aceita estes livros como Escritura fortalecendo assim o meu argumento, mas isso não significa que eu reconheço tal livro como Escritura. Ora, é isto que Jerónimo faz “na prática”. Quando o seu oponente tinha estes livros como Escritura então “na prática” ele cita-os como se fossem Escritura por uma razão táctica mas isso não implica que os reconhecesse como Escritura.

O apologista pensou rápido, lançou seu argumento supostamente acertado, e que funcionaria para devastar com a argumentação da apologética católica, se não fosse por um motivo óbvio: São Jerônimo usou os deuterocanônicos para argumentar não com quem “tinha este livros como Escritura”, mas, no sentido OPOSTO, pois aplicou-os no debate com quem NÃO os tinha como Escritura: “ao ter que argumentar com Judeus com base em livros que eles rejeitaram” (grifo acrescentado), o que causava embaraço na exposição.

É o mesmo que citar o livro de 2 Macabeus aos protestantes para provar o purgatório, quando os protestantes não aceitam a autoridade canônica, a inspiração, do livro de 2 Macabeus. Isso causa embaraço para nós, como acontecia com São Jerônimo. Deve o protestante encontrar outro argumento, pois esse caiu.

Gledson Meireles.