quarta-feira, 29 de março de 2017

Dr. Samuele Bacchiocchi e a autoridade insuperável do papa no 2º século

À pergunta:
DR. SAMUELE BACCHIOCCHI defendeu primado de Roma? ou os apologistas tão mentindo?
foi dada a seguinte resposta pelo apologista protestante:
Não, ele nunca defendeu isso. Inclusive eu o cito no meu livro sobre Pedro, na parte referente ao primado dos bispos romanos, quando ele mostra a divergência pascoal que prova que o bispo romano não exercia uma primazia sobre os demais bispos. (…)”. O Dr. Bacchiocchi cita a divergência, mas não como prova de que o papa não tinha a autoridade citada, pelo contrário. (ênfase acrescentada) (Nos comentários do artigo: Paulo leitão refuta completamente o mortalismo de forma totalmente irrefutável (eu me rendo))
De fato, o Dr. Bacchiocchi não defendeu o primado de Roma, não era católico, não reconhecia a autoridade do papa, mas uma coisa é certa: admitiu que a primazia de Roma é antiquíssima, datando do século segundo sem sombra de dúvida.
No livro “A história não contada de Pedro” foi afirmado o seguinte: “Um dos mais respeitados teólogos protestantes que crê que Pedro é a pedra é o Dr. Samuele Bacchiocchi, que não deixa de se opor fortemente à tese do primado de Pedro e do papado por causa disso.”
E mencionando a questão da controvérsia da Páscoa: “O próprio Irineu não aceitava a ideia de uma jurisdição universal do bispo de Roma, o que pode ser comprovado facilmente através da controvérsia da páscoa, em que Irineu rejeita a tradição do bispo romano. Nas palavras de Samuelle Bacchiocchi...”.
Assim, a interpretação é feita pelas palavras de Santo Ireneu, e não é a conclusão do Dr. Bacchiocchi, como ficará provado aqui.
Eu já havia refutado essa afirmação na minha resposta ao livro citado: “O Dr. Samuele Bacchiocchi, estudando a história do papado, aprendeu que: “O processo (da supremacia do papado) começou já no segundo século quando a primazia do bispo de Roma foi amplamente reconhecida e aceita.” (Samuele Bacchiocchi, The Role of EGW´s writings in Biblical Interpretation, p. 12)”
E afirmei ainda: “Obviamente, ele não cria na Primazia do Papado, por negar igualmente a teoria petrina e a sucessão apostólica. Porém, chegou bastante próximo da verdade, e quase reconheceu a fonte dessa doutrina, a Bíblia.
O Dr. Bacchiocchi afirmou que “o desenvolvimento da primazia papal começou já no segundo século, quando o papa exercia sua autoridade ecumênica por impor às igrejas cristãs em geral o domingo de páscoa.” (ênfase acrescentada)
Afirmou ainda: “O desenvolvimento da supremacia do papado é um processo gradual que dificilmente pode ser datado de 583. O processo começou já no segundo século quando o primado do bispo de Roma foi amplamente reconhecido e aceito”. Como já havia citado na resposta acima mencionada.
Ele afirma que a autoridade do papa já no século segundo é inegável. A Igreja de Roma possuía tal autoridade através do seu bispo. E muitas indicações são mostradas:
1) A excomunhão do monarquiano Teódoto pelo papa Vítor.
2) A afirmação de Tertuliano que a Igreja de Roma transmite a doutrina dos apóstolos.
3) A excomunhão do herege Sabélio pelo papa Calisto.
4) A reabilitação de Basílides pelo papa Estêvão.
5) O pedido de Cipriano ao papa Estêvão para depor Marcião de Arles.
 
Com isso, cita ainda outros indícios:
 
a) A Igreja de Roma como cátedra de Pedro,
b) O papel do papa no caso dos que havia negado a fé nos tempos de perseguição e do batismo dos hereges,
c)  A data de 25 de dezembro para celebração do natal.
A posição da papa era de preeminência já no segundo século, afirma o Dr. Bacchiocchi, repetidas vezes.
Portanto, a afirmação de que “ele mostra a divergência pascoal que prova que o bispo romano não exercia uma primazia sobre os demais bispos” não é tirada do pensamento do Dr. Samuele. Pelo contrário, é a tese do apologista Lucas Banzoli.
O Dr. Samuele não estava tratando da natureza da autoridade do papa naquele século, nem da extensão dessa autoridade, mas estava mostrando “o status quo da situação”. Citou o autor que afirma que “o papado nasceu, e bem nascido” naquele século, e considera que tudo isso era a realidade em funcionamento, “ainda que algumas igrejas rejeitavam suas instruções” (do papa). Ou seja, a desobediência de algumas igrejas não é nada contrário à autoridade que o papa possuía.
Leia os artigos:
Gledson Meireles.

segunda-feira, 27 de março de 2017

Proibição da leitura da Bíblia em Tolosa, 1229

Se os analfabetos não liam a Bíblia, se as Bíblias em vernáculos estavam cheias de erros de tradução que favoreciam erros teológicos, se todos os letrados sabiam latim, se a autorização versava apenas sobre o texto em latim, então quem sabia ler podia ler a Bíblia, pois o objetivo era evitar as heresias que vinham nas traduções na língua do povo. E esta era  a situação nos momentos mais críticos, durante esses quase quatro anos.

 
Gledson Meireles.
 

domingo, 26 de março de 2017

As críticas contra o livre exame

A citação do artigo, indicado no final, traz o seguinte: “Nada de Papa ou de palavra definitiva do Magistério”. Isso significa que a interpretação particular não tem nada a prestar contas ao papa ou à palavra definitiva do Magistério. Nesse caso, não é concedida liberdade para fazer isso. Se a interpretação foi diferente, mas não contradiz o oficial, negando algum ponto, então não é nociva, e pode auxiliar no entendimento da Palavra de Deus.

Há quem pregue algo assim: “Nada de Papa ou de palavra definitiva do Magistério”. A Igreja sempre pensou com a cabeça do papa, afirma o artigo. Mas isso quer dizer que o papa não tem interpretação pessoal que possa impor a outros, mas é o legítimo defensor da verdade, conforme a tradição apostólica, de forma a não deixar que algo contradiga o bom depósito.

Adiante, o artigo afirma: “não como uma forma de simples aceitação”. O magistério é composto pelo papa e demais bispos unidos a ele, o que não permite interpretação particular, exigindo um consenso e que não negue o que foi posto antes.

E, ao final, afirma: “A Sagrada Escritura deve ser lida e interpretada”, entenda-se, pelos teólogos, biblistas, estudiosos e cristãos católicos em geral, mas sob a guia do Magistério, seguindo critérios estabelecidos. Como a Igreja atualmente disponibiliza Bíblias e diversas traduções, aconselha a leitura, o estudo, a leitura devocional, etc., e portanto não há como não permitir o livre exame no sentido que indiquei.

Podemos livremente ler, interpretar, tirar conclusões de passagens, sob iluminação do Espírito Santo, que é o principal, e desde que estejamos seguindo os verdadeiros critérios, guiados pelo magistério. Se chegarmos a algo diferente, contrário à verdade, devemos estar abertos para ouvir a Igreja e obedecê-la, e, se necessário, abandonar e interpretação desviante. A simples leitura e interpretação livre parece não ser o problema.

A afirmação: “Nós, católicos, pelo menos temos a coerência de confessarmos a infalibilidade no nosso meio e, por isso, podemos contestar ensinamentos divergentes dos nossos. Mas vocês, que se confessam falíveis – ou não confessam, pelo menos da boca para fora? – como quererão corrigir quem quer que seja? Que autoridade vocês têm para tanto?”

E o que indiquei no artigo anterior, é dito em outras palavras, questionando os protestantes, como segue: “Ou será que o “livre” exame das Escrituras é válido desde que as interpretações sejam “obrigatoriamente” do jeito que eles pensam?”. Ou seja, que não contrarie os dogmas fundamentais do protestantismo? Nesse sentido, torna-se válido, tanto para católicos, quanto para protestantes, ainda que em seus respectivos círculos, mas o intuito é que todos cheguem à unidade.


Pela pergunta fica evidente que o problema é entendido como sendo a livre interpretação, onde cada um poderia ensinar o que encontrou nas Escrituras, sem que alguma autoridade tivesse a incumbência de verificar se está certa ou não a interpretação.

Escreve o autor: “Teria instituído uma Escritura Sagrada para que cada um, a seu bel prazer, livremente interpretasse o significado da sua mensagem (correndo sério risco, inclusive, de ir para os “quintos dos infernos”) e produzindo as mais disparatadas conclusões…”.

Vejamos mais essa: “De todo jeito: o fato é que a Bíblia somente não basta! Noutras palavras: a “Sola Scriptura” é completamente uma furada”. O autor está tratando da questão da interpretação, e afirma que a Bíblia não basta para resolver quando alguém a interpreta de um jeito errado, sem que haja outra instância que mostre que sua interpretação não faz jus à verdade.

O apologista Jimmy Akin afirma que, a primeira razão pela qual o livre exame não funciona, é que apesar do direito teórico de cada um interpretar a Bíblia por si mesmo não significa que todo o façam: “a vasta maioria deles não faz”. Isso acontece em todas as denominações. O livre exame é apenas hipotético. Jimmy Akin afirma: “Sola Scriptura termina significando que o cristão médio tem o direito de interpretar a Bíblia por si mesmo, mas um direito somente exercido em qualquer tipo de maneira consistente por raros indivíduos.”

O segundo motivo termina mostrando que um intérprete que divirja da doutrina da sua denominação e confronte seu pastor, será cedo ou tarde desmembrado, e logo entrará em outra denominação que seja adequada à sua visão.

Portanto, quando os apologistas católicos atacam o livre exame estão frisando um subjetivismo, um relativismo, uma autoridade individual de crer no que bem entender, mesmo contra o magistério.
Gledson Meireles.

Fontes:


Livre exame e interpretação errada

Sai mais um artigo contrário ao magistério da Igreja Católica:


O autor afirma: “Ou seja, ninguém é realmente livre para ler e interpretar as Escrituras, o único livre de fato é o papa, e o resto que se lasque, vai ter que concordar com a interpretação do papa querendo ou não, sendo ela boa ou não.

Nada mais falso. O papa Francisco não pode interpretar a Bíblia particularmente, no sentido de que possa chegar a qualquer intepretação que ache correta e que entre em conflito com um interpretação do magistério, ou melhor, de forma contrária à interpretação consagrada há séculos na Igreja. Ninguém admite isso que isso tenha a legitimidade concedida para acontecer.

Nem o católico, que sabe ter de obedecer às interpretações tradicionais, nem o protestante, que deve obedecer às interpretações pertencentes à sua tradição específica, e à tradição geral que caracteriza o Protestantismo.

Se há diversos níveis de “liberdade” de acordo com a denominação, ou na comparação entre o Catolicismo e o Protestantismo, isso fica no rol das marcas triviais respectivas, não contradizendo o essencial.

Assim, o artigo sobre Barnabé não traz novidade para um católico, de modo algum “enterra” o magistério infalível, mas ensina algo para o protestante que pensa ser o livre exame, conforme entende o Catolicismo, a simples leitura e interpretação pessoal do leitor, e não aquela que tira conclusões heréticas.

E o autor escreve: “Ou seja, a liberdade de interpretar a Bíblia nunca esteve em xeque, em momento nenhum. O problema sempre foi a interpretação errada que culminasse em heresias, que é o mesmo rejeitado por protestantes como o autor deste blog. Uma coisa é poder interpretar a Bíblia, outra coisa é essa interpretação estar certa. Protestantes não creem que qualquer interpretação esteja certa, da mesma forma que a Igreja antiga não cria, mas também não proíbem a livre interpretação, da mesma forma que a Igreja antiga não proibia.”

A distinção entre “livre exame” e “interpretação errada” ajuda a compreender o ponto que quero frisar: o livre exame é entendido na Igreja Católica como dando liberdade total para interpretar a Bíblia, incluindo a “interpretação errada”. Por isso é combatido. Doutro modo, no interior do Catolicismo, há livre exame também, como fazia São Barnabé.

Gledson Meireles.

sábado, 25 de março de 2017

Igreja Católica Apostólica Romana e seus primórdios

Desenvolvimento e liderança no primeiro século

Nos primórdios a Igreja Católica tinha sua sede em Jerusalém. Os apóstolos formavam o corpo de liderança, conforme Jesus havia instituído, e seguiam a mesma forma de ação que foi ensinada durante os 3 anos de ministério público de Jesus, onde os 12 receberam tudo o que era necessário para anunciar a salvação, e dentre eles três eram considerados os expoentes, a saber: Tiago, Pedro e João, seu irmão.

São Paulo afirma que esses eram como “colunas da Igreja”. (Gálatas 2, 9) A sede de Jerusalém foi governada por Tiago, conhecido como irmão do Senhor, era filho de Alfeu (provavelmente, conforme os dados dos evangelhos, é o mesmo que Cleófas).

O líder máximo era o apóstolo Pedro, que foi o primeiro a proferir o sermão no dia da descida do Espírito Santo, quando era comemorado o domingo de Pentecostes em Jerusalém.

Antes disso, os apóstolos tinham sido ensinados e reconfortados durante quarenta dias pelo próprio Senhor ressuscitado (Atos 1,3), e ficaram à espera, durante nove dias de oração, do “batismo com o Espírito Santo” em Jerusalém, conforme a promessa. (cf. Atos 1,5). A Igreja era composta pelos apóstolos e mais 120 irmãos, pelo menos, conforme Atos 1,15. Certamente eram algumas centenas o total de discípulos.

Mas, nesse dia, após o inflamado sermão de São Pedro, 3.000 pessoas abraçaram a fé em Jesus e foram batizadas. (At 2,41) Eles “acolheram a palavra de Pedro e receberam o batismo”. Essa era a porta de entrada na Igreja: “E nesse dia uniram-se a eles”.

A Igreja de Jerusalém crescia, e logo a Palavra de Deus seria levada a todos os cantos do mundo, conforme At 1,8. Não havia discípulos que não fossem ensinados pelos apóstolos e discípulos. Pois a fé vem pelo ouvido (Rm 10,17), e esse era o começo da pregação da fé. Todos os outros que iriam crer em Cristo nesse tempo foram iniciados na fé em Cristo pelos apóstolos, diáconos ou outros discípulos já convertidos por sua pregação. Essa era a Igreja.

Os fieis perseveravam no ensinamento dos apóstolos, vendiam suas propriedades e entregavam aos apóstolos. Esse costume cresceu de forma que, logo a Igreja espalhava-se e possuía bens pelos quais podia manter-se em atividade missionária e auxiliar os cristãos que passavam por necessidades materiais. (At 2,42-47)

Ainda frequentavam o Templo, conforme At 2,46, e “nas casas” celebravam a ceia comum e a ceia eucarística com os apóstolos. A ceia era chamada de “fração do pão”. Não consideravam o judaísmo outra religião, mas consideravam as promessas cumpridas em Cristo e continuavam a venerar as antigas tradições judaicas.

Aos poucos, porém, certas restrições foram abandonadas, pois eram empecilho para a propagação da fé. Assim, São Pedro recebeu a revelação de que Deus não faz acepção de pessoas, e por seu ministério os pagãos foram recebidos na Igreja, em Atos 10, com a descida do Espírito Santo, e o batismo logo em seguida.

Multidões convertiam-se ao evangelho, juntavam-se aos apóstolos, “aderiam ao Senhor, pela fé”. (At 5,14) Reconheciam em Pedro o chefe da Igreja, e assim os convertidos levavam doentes para serem curados: “Chegaram ao ponto de transportar doentes para as praças, em esteiras e camas, para que Pedro, ao passar, pelo menos a sua sombra cobrisse alguns deles”. (At 5,15) Assim, veneravam os apóstolos como servos do Senhor.

Em Atos 12 Pedro teve de deixar Jerusalém por causa da perseguição, após ter sido libertado milagrosamente pelo anjo de Deus. Então, “Pedro saiu e se pôs a caminho para outro lugar”. (At 12,17) A história mostra que foi para Roma, onde havia uma numerosa colônia de judeus convertidos. O livro de Atos evitou revelar o lugar para onde Pedro se dirigiu por prudência, pois as autoridades queriam matá-lo.

O judeu fariseu Saulo de Tarso perseguia a Igreja, até que o Senhor o converteu a caminho de Damasco, e ele tornou-se o décimo terceiro apóstolo. (cf. Atos 9)

Em suas quatro viagens missionárias, relatadas em Atos 13, 14, 15, 18 e 21, disseminou o Cristianismo em muitas localidades. Todas as igrejas locais estavam sob o governo de um apóstolo ou de bispos (epíscopos) e presbíteros por eles ordenados: “Os apóstolos designaram anciãos para cada comunidade; rezavam jejuavam e os confiavam ao Senhor, no qual haviam acreditado” (At 14,23), mantendo a comunhão com a sede da Igreja em Jerusalém.

Ao final do seu ministério apostólico, São Paulo, que havia testemunhado de Cristo em Jerusalém, vai a Roma, por vontade de Jesus: “Tenha confiança. Assim como você deu testemunho de mim em Jerusalém, é preciso que também dê testemunho em Roma.

A Igreja era chamada durante esse tempo de “Caminho”, e muitos a consideravam uma “seita”. (Atos 24,14.22) Havia quem pensasse que os discípulos formavam apenas mais uma seita judaica.


Doutrina

A doutrina ensinada por Jesus foi anunciada pelos apóstolos, e desenvolveu-se segundo as exigências de cada situação que surgia. Dentre as doutrinas, estão: a ceia (Atos 2,42), o arrependimento, o batismo, a fé, e as boas obras (cf. At 2,38; 3,19; Atos 26, 20, Rm 3,28; Tg 2,22-24), a unção dos enfermos (Tg 5,16), a crisma (Atos 8,14), a ordem (2 Tm 4,24), o matrimônio e o celibato (Mt 19; 1 Cor 7), a ressurreição (At 24,21), o juízo (Mt 25), o novo céu e a nova terra (2 Pd 3; Ap 21-22) e etc., que compõem o corpo de doutrina que rege a vida cristã.

 

Heresias

Nas primeiras pregações apostólicas o número de cristãos alcançou mais de 8.000 convertidos, com crescimento rápido e constante. (At 3; 4)

Para tomadas de decisões, os apóstolos reuniam-se com os demais discípulos. Assim foi em Atos 2, quando 120 irmãos estavam reunidos, e Pedro falou da necessidade de escolher um substituto para o apóstolo Judas Iscariotes, e quando convocaram assembleia geral (At 6, 2), onde foram instituídos os diáconos.

Do mesmo modo, mas de forma mais ampla, apóstolos e anciãos reuniram-se em concílio, por volta de 49 e 50 d. C., para enfrentar a primeira heresia que perturbou a Igreja Católica. (cf. Atos 15)

Essa consistia de que era exigida a circuncisão para a salvação: “Se não forem circuncidados, como ordena a Lei de Moisés, vocês não poderão salvar-se”. (At 15,2)

O Concílio foi composto pelos apóstolos e anciãos em Jerusalém, embora a disseminação da heresia tinha sido feita em Antioquia, causando a primeira perturbação por questões de doutrina na Igreja.

Eram homens da Judeia que pregavam a necessidade da circuncisão para a salvação, conforme Atos 15,1. O Monselhor Cristiani, em sua Breve História das Heresias, afirma que a heresia judaizante negava o dogma da catolicidade da Igreja. Queriam limitar a todos os cristãos provenientes do gentilismo às observâncias próprias da Antiga Aliança.

São Paulo e São Barnabé discutiram com esses cristãos judaizantes, e decidiram ir a Jerusalém para resolver a questão. Essa é mais uma evidência escriturística de que a Igreja era única.

Como em Atos 14, os apóstolos sabendo da conversão da Samaria, enviaram os apóstolos Pedro e João para lá, que impuseram as mãos para que recebessem o Espírito Santo todos os que haviam sido batizados pelo diácono Filipe. Os diáconos e presbíteros não impunham as mãos. Esse costume foi seguido sempre, onde somente o bispo impõe as mãos. (cf. Atos 8,14-15) A imposição é mencionada ao lado de mais quatro doutrinas elementares em Hebreus 6,1-2. Mais tarde recebeu o nome de crisma. A Samaria, assim que aceita a Palavra de Deus, por meio de um diácono, foi logo reconhecida pelos apóstolos em Jerusalém.

Por tanto, ainda que em Antioquia estivessem dois grandes líderes cristãos, eles não tentaram a resolução particular como se fosse a Igreja de Antioquia fosse “autônoma" ou “independente”, e ligada apenas por laços do exercício da fé e da caridade. Nada disso.

A discussão de Paulo e Barnabé com os judaizantes não foram suficientes. Assim, no Concílio a heresia judaizante foi condenada, e uma carta conciliar foi enviada através de Judas e Silas a Antioquia.

A decisão foi autoritativa para toda a Igreja, tanto em Jerusalém, como em Antioquia, como em qualquer outra parte do mundo, de forma que um cristão não poderia crer e ensinar contrariamente ao que foi decidido no concílio.

Dessa forma, em Gl 5,2.4 São Paulo afirma que quem circuncidar-se não terá o benefício dado por Cristo e será separado da graça. Portanto, não é uma questão de escolha, de interpretação particular, de um estudo das Escrituras por grupos de cristãos que divergem da decisão oficial da Igreja.

De fato, os judaizantes foram obrigados a aceitar a definição de Jerusalém ou enfrentar a ser a partir daí separados da Igreja e considerados hereges.

Porém, é necessário perguntar: Aquilo que os judaizantes pregavam era heresia desde o início ou foi considerada como tal apenas depois da definição conciliar?

A resposta é: desde o início. E o que mudou com a definição? A resposta é: A clareza da doutrina, a compreensão da mesma que aumentou consideravelmente.

São Paulo já ensinava a liberdade dos cristãos em relação à Lei, e não mais impunha a circuncisão. Assim, todos os demais apóstolos.

No entanto, a pregação daqueles cristãos foi feita de forma a causar não somente a querela, mas a tornar necessária uma discussão geral e exigir uma definição oficial.

Mesmo dentro do grupo de Jerusalém havia quem pensasse conforme os judaizantes que moravam em outras partes da Judeia. Isso é o que mostra Atos 15, 5: “Alguns daqueles que tinham pertencido ao partido dos fariseus e que haviam abraçado a fé intervieram, declarando que era preciso circuncidar os pagãos e mandar que eles observassem a Lei de Moisés.

A dúvida pairava entre alguns, e ainda não entendiam o evangelho como pregado pelos apóstolos. Tiveram a ocasião para aprender a doutrina, e conformar-se com a decisão. Doutra maneira, formariam um partido oposto, tornariam uma seita.

Nenhum evangelho diferente era aceito. (Gl 1,8) Sempre que uma heresia surgia entre os cristãos, o bispo ou o presbítero era encarregado de lidar com a dissensão e proteger o rebanho fiel, denunciando o erro e tomando posição contra os hereges, sejam eles provenientes da igreja local ou vindos de fora. Esse foi o funcionamento da Igreja em todas ocasiões de heresia, como mostra a situação das igrejas da Ásia Menor por volta de 95 d. C., ou seja, do fim do século primeiro.[1]

Assim, não existiam cristãos que não estivessem unidos com os apóstolos, bispos, presbíteros, diáconos, e comunidade de Jerusalém, de forma que não existiam “denominações”, mas uma única Igreja, uma única denominação, sendo uma Igreja espalhada em inúmeras localidades. Não existiam seitas legítimas, ou seja, não havia igreja autônoma, divergente em termos de doutrina, e ao mesmo tempo aceita pelo colégio apostólico, pois as heresias que surgiam, todas foram anatematizadas pelos apóstolos.

·       A heresia judaizante foi condenada em Atos 15.

·       Qualquer outro evangelho foi anatematizado em Gálatas 1.

·       Quem ensina doutrina diferente é condenado em 1 Timóteo 6,3-4; 1 Pedro 2,1-3.

·       As heresias estão entre as obras da carne em Gálatas 5,20.

Dessa forma, quem persistia na doutrina da obrigatoriedade da circuncisão e da Lei para a salvação estava dissociado da Igreja Católica, da mesma forma que estavam fora os gnósticos cristãos, que negavam a real encarnação de Jesus Cristo, a Sua Messianidade. (1 Jo 2,22)

Em suma, não havia no século primeiro em qualquer parte do mundo uma igreja que não fosse fundada e organizada por um apóstolo ou por alguém por ele apontado para tal missão, ou que estivesse desligada da comunhão com os apóstolos e não submetida à sua autoridade. Não existia igreja fora da unidade com a sede de Jerusalém, com os apóstolos, e que funcionasse à deriva, de forma absolutamente autônoma, e ainda tivesse o reconhecimento de verdadeira igreja cristã. Os apóstolos nunca reconheceram qualquer grupo cristão que ensinasse doutrina contrária à que eles mesmos ensinavam. E todos os que ensinavam a mensagem apostólica estavam sob seu governo.

Por tudo isso, é impossível que alguém encontre uma situação semelhante à da tese de que as igrejas antigas pareciam com as denominações protestantes modernas. Onde alguém viu uma decisão luterana obrigar um presbiteriano? Ou um sínodo presbiteriano ter autoridade sobre uma igreja batista? Ou uma decisão batista conferir autoridade sobre uma igreja assembleia de Deus? Ou um pastor assembleiano ter autoridade para punir um membro da Congregação Cristã no Brasil por motive de heresia? E assim por diante.

Enquanto que, na Igreja primitiva, um cristão de Antioquia obedecia ordens de um apóstolo que morava em Jerusalém, como Pedro. Estava submissa às decisões do Concílio de Jerusalém, como mostrado. A Samaria foi iniciada na fé por Filipe, mas recebeu a imposição das mãos de Pedro e João, vindos de Jerusalém. Isso só ocorre dentro de uma mesma igreja. Não há nada semelhante com as denominações protestantes.
Assim, fica mais fácil identificar a Igreja: ela está com os apóstolos, e presbíteros por eles ordenados, funcionando por meio de concílio, etc. Não deve alguém procurar a igreja no meio dos que ensinavam a doutrina judaizante, nem a doutrina gnóstica, nem a doutrina pregada por Himeneu e Fileto (2 Tm 2 17,18) que ensinava ter a ressurreição já ocorrido. Talvez, pensassem em um tipo de “ressurreição” espiritual, ensinando que não haveria uma ressurreição corporal futura. Dessa forma, está identificada a Igreja.


Reflexão: Alguém poderá pensar, após estar persuadido do fato, que foi acima provado, que essa unidade foi apenas no primeiro século. Dessa forma, imagina, supõe, especula, que após a morte dos apóstolos foram surgindo denominações, e foram sendo estabelecidas igrejas independentes, com sedes independentes, com doutrinas mais ou menos puras, mas de alguma forma compatível com a pureza mínima exigida, aquilo que costumou-se falar após a Reforma Protestante de doutrinas fundamentais e inegociáveis que caracterizariam uma igreja cristã, uma doutrina bíblica.

Entretanto, o que ocorreu na história foi o surgimento de grupos heréticos (basta analisar esses do primeiro século), nunca aceitos pela Igreja Católica, e que em maior ou menor grau afastavam-se do ensino da Igreja, sendo sempre condenados em sínodos locais e concílios ecumênicos, de forma que não é possível encontrar igrejas legítimas que estão separadas umas das outras alegando estarem unidades nos pontos fundamentais apenas, divergindo em sistema de governo, de culto e de doutrina.

Esses foram os cristãos judaizantes, exigindo a observância da Lei antiga como meio de salvação, e que formaram a Igreja dos Pobres conhecidos também como Ebionitas, os gnósticos pagãos que introduziram em seu credo doutrinas de inspiração cristã, e dividiam-se em vários grupos com doutrinas estranhas ao cristianismo, ou seja, à fé cristã, e que não concordavam com o credo apostólico, os nicolaítas, que propunham um desprezo pela carne, que pode levar a um ascetismo como à libertinagem, como afirma Pierre Prigent, em O Apocalipse. Nenhum desses grupos constituía a Igreja.

Desde At 11,26, em Antioquia, os discípulos passaram a ser chamados de cristãos. Esse nome começou a ser usado, mais tarde, pelos hereges também. A Igreja foi chamada de Católica, porque era única e em toda parte, com abertura a todos, o que significa universal. Esse sobrenome dos cristãos também foi querido pelos hereges, que desejavam também ser chamados cristãos católicos.

No ano 375, São Paciano de Barcelona, escreveu o seguinte: “Cristão é meu nome, e Católico meu sobrenome. O primeiro designa a mim, enquanto o outro me faz específico. Assim, sou atestado e separado.” E ao explicar o sentido do termo “católico”, São Paciano diz que significa “em toda parte um”, ou “obediência em tudo”, ou seja, a todas as ordens de Deus. (Carta a Symproniano)
Gledson Meireles.




[1] Ler os artigos Identificando a Igreja, onde é tratada essa questão em cada uma das sete igrejas do Apocalipse.

 

sexta-feira, 24 de março de 2017

Estudo sobre as imagens

Sobre o uso de imagens na Igreja,  respondendo os principais argumentos contrários.

















 
Gledson Meireles.

Bem-aventurado: o mais importante

“Bem-aventurado o ventre que te trouxe e os peitos em que mamaste!” (Lucas 11,27)

Aquela mulher da multidão achava que Maria era especial e mais importante que todas as outras por ter dado à luz a Jesus – este é exatamente o mesmo argumento católico! –, mas Jesus a contradiz e coloca qualquer pessoa que guarda a palavra de Deus acima.

É importante notar como os lampejos da verdade notavelmente aparecem quando debatemos. Nas palavras de Santa Isabel (Lucas 1,42), e do anjo Gabriel, quando a virgem Maria é chamada de “bendita entre as mulheres”, a interpretação mais comum e literal é que nesse ponto as palavras colocam Maria em destaque na eleição em comparação com todas as mulheres por ser a escolhida para Mãe do Salvador, o Senhor.

Diante disso, é comum alguém retrucar algo semelhante ao que a simples bem-aventurança é apenas um “feliz” e que não está afirmando nada mais que Maria era feliz por aquela graça recebida, como todos são felizes por outras graças.

Mas, agora, no verso acima, do evangelho de Lucas capítulo 11, o autor ao tentar refutar uma afirmação da apologética católica, interpreta o “bem-aventurado ventre” de Maria como expressando a opinião daquela mulher de que Maria era “especial e mais importante que todas as outras” (ênfase acrescentada), a partir de um simples bem-aventurado ventre.

E acertou. A possível inferir isso do contexto em que as palavras foram ditas, e da reflexão sobre o que contorna a cena.

Talvez a contragosto, e de forma imperceptível, o autor acertou, e concordou com a doutrina católica.

A mulher certamente pensou em Maria como tão bem aventurada por tão grande Filho, que a colocou em destaque em relação às mulheres em geral.

Jesus não negaria essa consideração, como não negou, pois o mesmo está dito desde antes do Seu nascimento. O que ocorreu, porém, foi que naquela ocasião o Senhor Jesus Cristo tomou o momento para ensinar o mais essencial, que é ouvir e obedecer a Palavra de Deus. E Jesus fazia isso com frequência, aproveitando as oportunidades para ensinar a Palavra de Deus.

E como sabemos que a Palavra de Deus era a vida de Maria, esse posto também foi ocupado por ela em primeiro lugar, quando a mesma soube de forma direta que o Messias estava vindo, e que a sede primeira que habitaria na terra seria o seu próprio ventre. Foi aí que o: “Eis a serva do Senhor” foi pronunciado demonstrando sua fé, e o “faça-se em mim segundo a Tua palavra”, mostrando toda a obediência. (cf. Lucas 1, 38)

Maria bendita, bem-aventurada, feliz, por ser a mãe do Salvador é bendita entre todas as mulheres.

O mesmo é tirado do texto de Marcos 3, 32-35.

A doutrina cristã católica é de que Maria foi elogiada por aquelas palavras de Jesus em Lucas 11,28, já que ela é bendita e obediente a Deus, e assim somos elevados com ela à dignidade de servos do Senhor. Permanece, porém, o entendimento de que Maria teve privilégios por causa de sua maternidade, que não tem o sentido de nos diminuir, mas é mais uma glória que recebeu do Senhor. Sabemos compreender sua posição como membro da Igreja, mas mãe do Senhor, o que significa muito.

Quanto à argumentação sobre o “qualquer” geralmente expresso pelos apologistas católicos, foi bastante proveitosa para pensar. A menção a“Ísis” foi infeliz.

Gledson Meireles.

sábado, 18 de março de 2017

Justificação como imputação: afirmações de John Piper


Em consideração à “base exegética convincente” para a visão tradicional do Protestantismo fornecida por John Piper. Respondendo à tese de Robert Gundry, temos uma análise exegética repleta de informações que auxiliarão a posição defendida e se a mesma concorda com a doutrina da Bíblia.

Para Gundry a fé de Abraão consistiu em sua justiça, mesmo não sendo obra. Dessa forma, explica Piper, a imputação não é creditar algo externo, como defende a doutrina protestante, “mas contar algo que ele tem, a saber fé, para ser sua justiça.” (Piper, p. 56)

Piper percebe que há algo “externo” na estrutura apresentada por São Paulo, enquanto que na proposição de Gundry o que está afirmado é que a própria fé é contada como justiça, o que configura uma interpretação de uma coisa interna que o próprio Abraão possuía.

O verso 4 afirma: “Ora, o salário não é gratificação, mas uma dívida ao trabalhador.” O salário é algo externo que o trabalhador recebe por uma obra realizada com esse fim. Portanto, quando a obra é feita ela é do que a realizou, e o salário é creditado a ele por parte do patrão. Nessa comparação, quando Abraão apenas teve fé, acreditando na promessa de Deus, o Senhor deu-lhe o salário como se a sua fé fosse algo realizado, embora ele não tivesse obra alguma. Dessa forma, a fé foi imputada como se fosse sua justiça, passando como se uma obra tivesse sido feita e ele merecesse agora a retribuição, ou seja, o salário. Mas, agora, na realidade um dom, já que ele não mereceu.

O vero 5 afirma: “Mas aquele que sem obra alguma crê naquele que justifica o ímpio, a sua fé lhe é imputada em conta de justiça”. O homem não tendo obra nenhuma para apresentar a Deus, crendo que Ele justifica o ímpio, “a sua fé” é reputada como justiça.

“O salário não é gratificação”, diz a Escritura, “mas uma dívida”. Portanto, não havendo obra, apenas crendo, na promessa, contra toda esperança (v. 18), como conclui o verso 22: “Eis por que sua fé lhe foi contada como justiça”. Está oferecendo a razão pela qual Abraão teve a fé considerada como justiça.

Essa parece ter sido a conclusão de Gundry, a qual Piper refuta como sendo a apreciação que Gundry pensou ter encontrado em Paulo. Então, adiante questiona: “Would not the wording of verse 4 rather tell us that in Paul’s mind “faith being credited for righteousness” is shorthand for faith being the way an external righteousness is received as credited to us by God—namely, not by working but by trusting him who justifies the ungodly?” (Piper, p. 57)

Piper responde que Deus não credita algo que temos como justiça, mas credita uma justiça que não temos “para ser nossa pela graça através da fé.”

Santo Tomás afirma que Abraão não recebeu a justificação pelas obras da Lei, mas pela fé. As obras do homem não produzem o hábito da justiça que Deus requer, “(...)  pelo contrário, o coração do homem precisa primeiro ser justificado interiormente por Deus, para que ele possa realizar obras proporcionais à divina glória.” (S. Tomás de Aquino, Comentário de Romanos)

Santo Tomás cita 1 Macabeus 2,52. E a magnífica exposição da doutrina: “Then (v. 5) he shows how the eternal award is related to faith, saying, but to one who does not work outward works, for example, because he does not have time to work, as in the case of one who dies immediately after baptism, but believes in him who justifies the ungodly, namely, in God, of whom he says below (8:33): "It is God who justifies," his faith is reckoned, i.e., faith alone without outward works, as righteousness, so that in virtue of it he is called just and receives the reward of justice, just as if he had done the works of justice, as he says below (10:10): "Man believes with his heart and so is justified," according the purpose of the grace of God, i.e., accordingly as God proposes to save men gratuitously: "Who are called according to his purpose (Rom 8:28); "He accomplishes all things according to the counsel of his will" (Eph 1:11).”. Adiante, Santo Tomás esclarece ainda que “not that he merits justice through faith”, e que o ato de crer e o primeiro ato de justiça que Deus realiza nele.

Na incrível exegese do texto de Romanos 4, 5 e 6, Piper afirma que a justificação é a imputação positiva da justiça sem as obras. Com isso, ele tenta refutar a ideia de que a fé estaria sendo tratada com justiça e afirma, pelo contrário, que a justiça externa está sendo imputada pela fé.

Tal consideração é estranha ao texto bíblico lido correntemente, mas fica interessante após a análise de Piper, e não introduz, em linhas gerais, um erro, já que a justiça de Deus é externa ao homem, e essa justiça é aplicada no homem, conforme será visto mais adiante. Então, nessa perspectiva as energias gastas por Piper em sua obra não serão eficazes para fazê-la resistir em seu ponto fulcral, e, pelo que está posto, ela será abalada.

A justiça de Deus

No primeiro capítulo de Romanos, no verso 17, está escrito: “Porque nele se revela a justiça de Deus, que se obtém pela fé e conduz à fé.” Por essas palavras, a Escritura está mostrando que há a justiça de Deus extrínseca ao homem, e que é comunicada ao homem por meio da fé. Por essa visão, a fé é um instrumento para receber a justiça de Deus, e que a mesma justiça divina conduzirá o homem à fé.

Posto assim, é correto o que Piper defende, que a fé é “o instrumento pelo qual alguém é justificado: Romanos 3,28.30; 4,11; 5,1.2; 9,30”. Ao mesmo tempo, porém, o que é afirmado por Santo Tomás é de extrema importância: a fé não merece a justiça, mas que o ato de crer é o primeiro ato de justiça que Deus realiza nele, ou seja, no interior do homem.

Dessa forma, está harmonizada a fé como justiça imputada por Deus para o recebimento da justiça de Deus, que não está no homem, mas que vem de Deus, sendo a fé um instrumento apenas e não uma obra que mereça pagamento, ao mesmo tempo em que essa fé é um ato de Deus que pela justiça conduz à fé para que o homem vida da fé.

Em Romanos 5,15 está escrito que “o dom de Deus e o benefício da graça” é concedido a todos. O verso 16 fala do “juízo de justificação” que é atraído pela graça, e o verso 17 afirma que “receberam a abundância da graça e o dom da justiça”. Essa recepção por parte do justificado é uma realidade. Ele é contado como justo porque a graça atraiu o juízo de justificação para ele, que por sua vez recebeu a graça e a justiça de Deus.

Assim como o pecado é uma realidade no homem, e não somente uma imputação, e que reina para a morte, assim também a graça reina pela justiça de Deus que está no homem. A graça no homem reina através da justiça para a vida eterna (Romanos 5,21)

Que a justiça vem de Deus, e não está no homem, fica mais claro no capítulo 10, versículo 10: “É crendo de coração que se obtém a justiça...”. Algo que é obtido não pode já estar de posse daquele que o obtém. Assim, a justiça vem de Deus ao homem justificado.

A ideia de que a fé é a justiça dentro de nós sendo essa imputada por Deus é o primeiro erro. Da mesma forma, é um erro pensar que pelo instrumento da fé Deus imputa uma justiça exterior que não nos é comunicada. Ambos os erros devem ser combatidos.

Gundry parece estacionado na primeira asserção, e Piper na segunda. Para o último, a justiça recebida pelo homem seria por meio da imputação apenas, a justiça de Cristo somente contada como sendo do homem. Essa é a posição energicamente posta em relevo por John Piper.[1]

No entanto, a justiça de Deus é comunicada ao homem por meio da fé, pela Palavra da fé que é pregada. (Romanos 10, 5-6.8) Como também está em Gálatas 5,5: “Quanto a nós, é espiritualmente, da fé, que aguardamos a justiça esperada.”

 

A justificação e as boas obras na salvação

São Paulo inicia e termina sua exposição inspirada falando da “obediência da fé” (Rm 5,5; 16,26) Como o assunto da justificação pela fé transpassa toda a epístola, o tema da obediência é ponto central da doutrina. Cabe perguntar qual é a relação dessa acepção da vida cristã com a salvação.

O evangelho é a salvação de todo aquele que crê. (Rm 1,16) Ao mesmo tempo, a bondade de Deus convida ao arrependimento: “a bondade de Deus te convida ao arrependimento”. (Rm 2,4) É necessário crer e arrepender-se.

Por sua vez, o arrependimento está associado às obras, pois deve-se arrepender-se dos pecados cometidos, das más obras praticadas. Aliás, o juízo terá em conta as obras: “que retribuirá a cada um segundo as suas obras.” (Rm 2,16)

A base da justificação é o sangue de Jesus: “estamos justificados pelo seu sangue, seremos por ele salvos da ira.” (Rm 5,9) Esse foi o ato de justiça único pelo qual fomos salvos: “assim, por um único ato de justiça recebem todos os homens a justificação que dá a vida”. Por esse motivo, “pela obediência de um só todos se tornarão justos”. (Rm 5,18-19)

A obediência exigida do cristão é fundamentada na base de sua justificação, que é o sangue de Jesus Cristo, por Seu ato de justiça, Sua obediência na cruz.

Assim como o pecado reinou para a morte, assim também a graça reinaria pela justiça para a vida eterna, por meio de Jesus Cristo, nosso Senhor.” (Rm 5,21)

O paralelo pecado > morte  x graça > justiça > vida eterna por Jesus Cristo é revelador. O pecado reina para a morte, enquanto que a graça reina para a vida eterna. Agora, é o momento de perguntar como é o reinado do pecado para que conduza à morte, e como se dá o império da graça para que se obtenha a vida eterna.

Esse é o assunto do capítulo 6, com a resposta cristalina da Palavra de Deus. Inicia-se com pergunta retórica do verso 1 e a resposta no verso 2: “Então, que diremos¿ Permaneceremos no pecado, para que haja abundância de graça¿ De modo algum.

O pecado não deve mais reinar no corpo do homem salvo por Cristo, e não se pode mais obedecer aos seus apetites. (Rm 6,12) O reinado do pecado e a obediência de homem são aí mostrados. A exortação vem para afastar o homem salvo da queda no domínio do pecado.

A libertação da Lei e a intromissão sob o domínio da graça levou muitos a pensar que os cristãos podiam viver livres da Lei, e praticar o que fosse do seu agrado. A isso responde o verso 15, mostrando que devemos oferecer como servos a quem nos apresentamos para obedecer, se ao pecado ou à obediência. Ao pecado teremos como fruto a morte, à obediência receberemos a justiça.

Nesse desenvolvimento, os versos 21 e 22 são suficientes para mostrar a relação da obediência e das obras na salvação: “Que frutos produzíeis então¿ Frutos dos quais agora vos envergonhais. O fim deles é a morte. Mas agora, libertados do pecado e feitos servos de Deus, tendes por fruto a santidade; e o termo é a vida eterna.” Os frutos de antes levavam à morte, enquanto que o fruto da santidade tem como fim a vida eterna, ou seja, a salvação.

A doutrina bíblica é uma harmoniosa associação entre a fé e as obras, entre a fé e a obediência, entre as boas obras e a salvação.

2 Coríntios 5,21 e a imputação

Piper faz um paralelo de 2 Coríntios 5,21 entre Cristo sendo tornado pecado por nós e a justificação em termos de imputação apenas. Ele afirma que: “Ele foi contado como tendo nosso pecado; nós somos contados como tendo a justiça de Deus.”

É verdade que Cristo não pode pecar jamais, nem ter o pecado realmente nEle, em Sua Pessoa, como sendo dEle mesmo, pois não pode moralmente ser um pecador como o homem. Dessa forma, Jesus padeceu por nós levando sobre Si os pecados do mundo inteiro sobre o madeiro, o pecado de outros, suportando a punição do pecador enquanto Ele é Santo e Justo.

Com relação ao homem, ele pode ser moralmente justo, mas não com a justiça de Deus, que não pode produzir, e por isso a justiça de Cristo é imputada a nós, e nós a recebemos para ofertarmos em Cristo e produzirmos a justiça para Deus. Não é somente uma imputação.

Portanto, essa passagem não prova a imputação somente. Outra passagem de Romanos pode esclarecer isso. São Paulo ensina que como Adão pecou todos pecaram, assim como pela obediência de Jesus Cristo todos são feitos justos: “Assim como pela desobediência de um só homem foram todos constituídos pecadores, assim pela obediência de um só todos se tornarão justos”. A palavra todos significa justamente todos, sem qualquer exceção.

Não foram todos os homens que comeram do fruto do paraíso, desobedecendo a Deus. Mas em Adão, como chefe e cabeça da humanidade, todos pecaram, pois herdam a culpa original, perdida pelos primeiros pais. Não se trata de mera imputação, pois há uma real afetação da natureza do homem pelo pecado original.

Assim, também, em Cristo todos se tornarão justos, não somente por simples imputação, mas tendo o próprio ser atingido pela graça e pela justiça de Deus em Jesus Cristo, pelo poder renovador do Espírito Santo.

Justificação e santificação

Piper afirma que a justificação no pensamento de Paulo nunca refere-se à santificação. Pode até usar palavras semelhantes, mas não é interpretada a justificação nesse sentido.
Do Livro: Counted Righteous in Christ. John Piper.
 
Gledson Meireles.



[1] Na perspectiva protestante tradicional, como essa defendida por John Piper, a imputação da justiça poderia ser dita como “recebida” pelo homem, certamente, mas não comunicada, aplicada, derramada no coração do homem, já que tal afirmação doutrinal do Protestantismo tem o caráter apenas extrínseco, declarativo, em Cristo e não no homem. A linguagem poderia ser que a justiça é “do” homem, mas, nos moldes protestantes é entendida por “imputada como se fosse do homem”. Essa doutrina não é encontrada nas Escrituras.