sexta-feira, 31 de março de 2023

Livro: A lenda da imortalidade da alma, sobre Deus de vivos e não de mortos

Refutação do tópico: Deus de vivos, não de mortos

 

Esse texto é muito usado para provar a imortalidade da alma em debates. De fato, se Deus é Deus dos vivos, todos vivem para Ele, isso parece implicar em que os mortos não caíram na inexistência.

 

É compreensível que o contexto é dirigido a provar a ressurreição, ou seja, Deus é Deus dos vivos e fará todos reviverem. Isso é pacífico. O que não se pode, porém, é tomar o texto e usá-lo contra a imortalidade da alma. No mínimo seria um dos argumentos neutros nesse sentido.

 

Preste atenção no argumento do Senhor Jesus, onde no texto “Deus de Abraão, Deus de Isaque e Deus de Jacó” Ele prova a ressurreição. Certamente os textos bíblicos usados assim pela Igreja Católica não são aceitos como argumentos pelos protestantes. Diriam que o texto não fala de alma, não fala de ressurreição em lugar nenhum, nem mesmo aparece ressurreição no pentateuco. E Jesus usou um texto do Pentateuco para provar a ressurreição contra os saduceus, pois eles criam somente nesses cinco livros. Entretanto, o texto é usado como indiretamente afirmando a ressureição quando Deus é chamado de Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó.

 

Quanto ao fato das almas estarem no céu, é preciso compreender que naqueles tempos os saduceus não teriam como argumentar dessa forma. Uma vez que não criam na sobrevivência da alma, e também por conhecer a doutrina dos fariseus, de que as almas estão no mundo dos mortos, nas sombras da morte, o que não faria sentido tratar de coisas tão elaboradas como o caso de quem seria esposa aquela que em  vida casou-se sete vezes. De fato, no sheol não era concebida uma vida como a que se tem na terra, embora já acreditassem na felicidade experimentada antes da ressurreição.

 

Um argumento da mesma natureza que o autor mortalista usou em outro lugar pode ser empregado aqui para refutá-lo. Para defender o aniquilamento dos ímpios, ele escreve que uma vez que os ímpios são eliminados diante de Deus, e Deus é onipresente, então os ímpios deixam de existir.

 

Aqui, podemos usar argumentos dessa forma, sem usar o contexto, a exegese, como o autor não usou ao empregar tal raciocínio. Podemos afirmar que uma vez que Deus não considera existir o que não existe, e se para Ele todos estão vivos, mesmo os que estão mortos fisicamente vivem para Deus, existindo no mundo espiritual, o que é uma prova da imortalidade da alma partindo da afirmação da Bíblia. É um raciocínio válido.

 

Assim como a afirmação bíblica de ser eliminado diante de Deus não leva à inexistência dos mortos, pois não é assunto metafísico que está sendo tratado no contexto, que é eliminar da terra, do meio do povo, o mesmo se dá quando é dito que para Deus todos vivem, o que não necessariamente está afirmando algo sobre a imortalidade da alma, já que o contexto é para provar a ressurreição. Refuta-se novamente mais um argumento do livro por outras vias. Se trata da ressurreição, não tem nenhuma implicação no que diz respeito ao estado das almas.

 

E na doutrina católica a ressureição é necessária, o que está provado no estudo presente. A ideia mortalista de que a vida da alma é idêntica à vida da pessoa viva na terra é que se transforma em empecilho para que entenda o ponto de vista da imortalidade da alma e da ressurreição como duas coisas harmoniosas.

 

O autor escreve que as almas estão vivas “da mesma forma que vivia antes da ressurreição”, quando não é exatamente o que a doutrina da imortalidade da alma ensina, já que não sendo a natureza humana somente alma, então a pessoa está de fato morta, e a alma perde muito da sua capacidade de vida completa como Deus criou, necessitando da ressurreição do corpo.

 

De fato, é verdadeira a interpretação que o livro traz quando afirma: “Uma onde o «Deus de vivos» não implica que os mortos estão vivos em algum lugar, mas que eles ressuscitarão um dia.” O que foi analisado acima.

 

O autor entende bem que Jesus usou o Pentateuco porque era a única Escritura reconhecida pelos saduceus. É como o católico que não pode usar o livro da Sabedoria para provar a imortalidade da alma porque o protestante não o reconhece como inspirado. Por isso, o cristão católico utiliza outros livros que o cristão protestante também aceita.

 

A passagem não é prova contra a imortalidade da alma, já que trata da vida eterna na ressurreição, o que é necessário para que a pessoa esteja viva e não morta. A imortalidade da alma não é o mesmo que afirmar que a pessoa está viva. O argumento que não tenha isso em consideração é usado contra algo que não existe.


Gledson Meireles. 

 

domingo, 26 de março de 2023

Interpretação de Mt 10, 28 e Lc 12, 4-5 pelo mortalismo

O mortalismo e Mateus 10, 28

A doutrina mortalista está convencida de que não existe alma espiritual imortal. A alma seria apenas um aspecto do corpo, e sendo material como o corpo perece na morte pois não é separável da máteria.

Tentativas de explicar passagens bíblicas que contrariam essa versão são muitas. O Dr. Samuele Bacchiocchi fez esforço imenso para adequar o sentido de alma, como concebe a doutrina mortalista, em textos como Mateus 10, 28 e Lucas 12, 4-5.

Em seu estudo sobre o termo alma, o mesmo afirma que o sentido de alma foi ampliado, e passou a significar também a “vida eterna”, a vida de obediência, enquanto que, contrastando com isso, o corpo seria a vida de desobediência.

Entretanto, se o texto afirma que Deus pode destruir a alma e o corpo no inferno, a alma seria mortal. Em sua concepção a alma teria agora o sentido de “vida eterna recebida por aqueles que estão dispostos a assumir um compromisso sacrifical com Ele”. Com isso, ele tenta introduzir esse sentido em Mateus 10, 28.

O problema é que, ao fazer isso, o texto ensinaria que Deus pode destruir corpo e vida eterna. O corpo seria a existência terrena e a alma a vida eterna. Antes, segundo o autor, o corpo teria o sentido de vida de desobediência e alma o de vida eterna.

Mas ao ler o pretendido novo sentido de alma no texto, os significados se misturam, onde corpo mantem o sentido mortalista, ontológico, e a alma o novo sentido que o autor indicou.

Ainda, na segunda parte do texto o mesmo teria o sentido de “ser integral”, quando na primeira parte do versículo teria adotado outro sentido. Vê-se assim que o significado sugerido não explicou o texto e causou confusão.

 

O mortalismo e Lucas 12, 4-5

Os homens podem infligir a morte, mas Deus pode ressuscitar. Esse seria o sentido para o mortalismo. A citação de Fudge afirma que Deus pode matar corpo e alma, aqui e no além.

Isso é interessante, mas uma vez que a morte seria inexistência, não havendo ressurreição, os mortos não existiriam. A mesma morte que Deus poderia fazer. Essa noção já contraria o texto.

Depois, o dr. Bacchiocchi refere-se à não menção de alma no texto de Lucas, afirmando que o mesmo fala da destruição do ser integral no inferno. Mas o texto afirma que “depois de matar” é que Deus lança no inferno.

Essa referência ao ato de matar é para indicar que o que Deus pode fazer ultrapassa o que os homens podem. Os homens matam e nada mais, Deus pode, além de matar, lançar no inferno.

Lendo essa passagem com Mt 10, 28 essa ação seria a mesma que destruir alma e corpo no inferno. Dessa forma, a alma que não pode ser atingida pelo homem, mas pode agora, com o corpo, ser atingida no inferno. Assim, a alma é parte do ser humano, e não vida eterna ou obediência.

Na morte física não sobre nada, segundo o mortalismo, e na destruição divina, com diz o autor, “nada sobrevive”, o que é o mesmo. Esse problema não condiz com as passagens estudadas. É uma incoerência interna, visto que a morte física e extinção do ser até a nova criação da ressurreição, e a segunda morte é a extinção do ser novamente, sem promessa de ressurreição. Em ambos os casos a morte é idêntica.

A citação de Lucas 9, 25 corrobora que alma é a pessoa, é o ser. Uma vez que perder a alma é perder-se. Não há, de qualquer forma, nada contra a doutrina da imortalidade da alma.

Eis que o autor, para diferenciar uma morte da outra, a primeira seria “pôr uma pessoa a dormir”, e a segunda seria a destruição final. Essa seria o inferno.

Outra vez, não há resolução do problema, a menos que o autor ensinasse que a alma continua existindo, que há dualidade corpo e alma, que a alma se separa do corpo, e que a mesma dorme, inconsciente, e que, segundo o mortalismo, só irá desaparecer na segunda morte. Não sendo assim, é apenas uma metáfora que não resolve o problema. As duas mortes, no pensamento mortalista, são iguais.

Com isso, a leitura seria que os mortos não estão mortos, mas dormindo, visto que serão ressuscitados.

Contudo, a exegese confusa, por causa da doutrina mortalista, procura utilizar os mesmos termos. O autor fala da morte eterna como destruição eterna do corpo e da alma, o que não faz sentido, visto que os desobedientes não possuem vida eterna, que seria o sentido que o autor sugeriu para o termo.

Sendo assim, a destruição deveria ser apenas do corpo, como pessoa integral, ou como vida de desobediência, como explicou. Essa leitura não é admitida no texto bíblico.

O autor tentou ir além, mostrando que o sentido expandido de alma teria a ver com “o caráter e personalidade de um crente”. A alma teria o sentido de vida eterna, o que relaciona-se com esse caráter do salvo.

Assim, na leitura do texto bíblico introduzindo tal sentido, os homens podem matar o corpo, que seria a pessoa inteira, mas não podem matar seu caráter ou personalidade. O problema é que a ameaça divina, para serve para os ímpios, Deus destruirá alma e corpo, o que seria destruir a vida eterna, o caráter ou personalidade, que seria somente dos crentes. Essa leitura por isso não é suportada pela passagem bíblica.

Diante disso, a alma é de fato parte da natureza humana nessas passagens, e nenhuma tentativa mortalista conseguiu explicá-la convincentemente, gerando vários problemas.    

Quando Cristo afirmou que Ele é a ressurreição e a vida, mostrando que o que nEle crê não morrerá jamais, isso estava no contexto em que a ressurreição dos mortos no último dia foi mencionada. Assim, a fé em Cristo já garante a vida antes da ressurreição, o que é possível relacionar-se com a imortalidade da alma.

Em Lucas 9, 24-25 a vida é a vida física, que se for perdida por Cristo garante sua retomada para viver para sempre. Não há na passagem psiquê no sentido de vida eterna, nem de alma imortal. De fato, não se fala de psique eterna, para parafrasear o argumento mortalista que diz não encontrar alma imortal na Bíblia.

Gledson Meireles.

sábado, 25 de março de 2023

Livro: A lenda da imortalidade da alma, sobre John Stott

 John Stott

 

Quando Jesus em Mateus 10,28 afirma que Deus pode lançar corpo e alma no inferno, é porque os homens podem matar o corpo, mas não condenar. Atingem o corpo, e o salvo ainda fica bem na graça e glória. A morte não separa o salvo de Deus.

Assim, o corpo é privação da vida, da vida física, mas o salvo continua salvo. Então, a alma não foi atingida, e pode experimentar essa salvação. Por isso, conforme as palavras do evangelho de Lucas, os homens matam e não fazem mais nada. Quanto a Deus, Ele pode lançar no inferno.

Em outras palavras, os homens atingem o corpo, tirando a vida física, mas o salvo mantem a felicidade da glória. Contudo, quanto aos maus, especialmente, esses devem temer, pois Deus atinge o ser inteiro ao lançar no inferno, como resultado da recusa da graça.

É como afirmar que a morte física é um sofrimento que não atinge o ser total, enquanto ser lançado no inferno envolve o ser total, por isso o inferno é chamado segunda morte.

Portanto, a ideia de que matar é privar o corpo da vida, e o inferno parece ser a privação da vida física e espiritual não é a leitura correta. Quando a morte física é sofrida pelo ser humano, a alma permanece, por isso o inferno se torna tão terrível.

Novamente, em Mateus 10, 28 matar é fazer o mal ao homem, destruindo-o, privando-o da vida física, mas não atingindo a alma.

Desse modo, o inferno é o mal ao ser humano condenado, no ser inteiro, privando-o da vida física glorificada para a eterna felicidade, e espiritual, da comunhão com Deus.

É uma privação da vida, mas não extinção, pois o conceito de morte para o lago de fogo é de tormento dia e noite, pelos séculos dos séculos, o que demonstra existência, como está no Apocalipse. Atingindo corpo e alma, pois a alma sendo imortal não é possível o ser ressuscitado desfazer-se mais.

Parece que é o mesmo que dizer, matar o corpo é um sofrimento que não atinge totalmente, já que a alma permaneceu a salvo. No inferno, porém, corpo e alma sofrem. Isso faz todo o sentido pelo contexto mostrado.

Se o mortalista não tinha pensado nisso, agora é o momento, pois sua ideia está novamente refutada.

Gledson Meireles.

Livro: A lenda da imortalidade da alma. Sobre a doutrina psicopaniquista

 Oscar Cullmann

 

Ao apresentar o exemplo do teólogo luterano Oscar Cullman como proponente do mortalismo, pois esse acreditava no sono da alma, o autor explica que o sono da alma é muitas vezes confundido com a inexistência da alma, pregada no mortalismo, mas que não faz diferença essencial, já que ambas as doutrinas afirmam que a alma não está consciente e não tem sensação de passagem de tempo.

Diante disso, deve-se lembrar, também, como desde o início se argumenta aqui, que a existência da alma, seja sob que aspecto for, como sombra ou outra forma, no mundo dos mortos, podendo ser comparado seu estado a algo que não é propriamente vivo e também não é propriamente nada, mas um ser “vivo-não-vivo”, o que explica o mistério da morte e do mundo dos mortos que os antigos concebiam, essa existência é um golpe mortal na doutrina mortalista.

Então, o autor cita o próprio Cullman afirmando essa noção de não vida, onde o sono da morte no Sheol “não é uma vida verdadeira”. Isso se aproxima do que foi descrido acima 

Dessa forma, o autor mortalista deve entender que a existência da alma na doutrina psicopaniquista é, em termos práticos, igual ao mortalistmo que ele defende, mas, por outro lado, é distinto e oposto a ele, já que admite que existe a alma, que essa é separada do corpo na morte, que está inconsciente em algum lugar. Esse é o primeiro problema para o mortalismo, pois essa doutrina lhe é radicalmente oposta.

O segundo problema é que, o autor mortalista, defendendo a identidade prática das doutrinas do sono da alma e da morte da alma, admite que isso faz da ressurreição uma necessidade em ambos os casos.

Por isso, ele deve admitir, igualmente, de uma vez por todas, que a fé da alma no sheol, como explicada aqui, como concebida desde o Antigo Testamento, primeiramente como sombras no sheol, que existiam numa espécie de não-vida, quando se compara à vida que desfrutava no corpo neste mundo, mas que podiam ser evocadas do mundo dos mortos, torna pelo a ressurreição totalmente necessária mesmo motivo.

É preciso uma libertação desse estado de morte, explicando o medo da morte e a ideia negativa do sheol. Deve admitir que esse estado ontológico da alma explica a necessidade da ressurreição.

O terceiro problema é que, ainda que essa noção do morto no sheol, na linguagem bíblica holista, que por sua vez se refere a parte do ser do morto, expressando em outras palavras a dualidade corpo e alma, onde o morto é chamado às vezes de sombra, associado à ideia de estar repousando, onde às vezes é mostrado como possuidor de consciência, o que é compreensível, tudo explica a diferença do estado dos mortos no Antigo e no Novo Testamento, quando se entende que Cristo libertou os salvos do império da morte, a saber, do estado de morte e do sheol.

O quarto problema é que, ainda assim, após a entrada no céu, por definição a alma do morto necessita da ressurreição, por continuar no estado de morte, no qual permanece ainda que esteja já usufruindo da glória do céu com Deus, Jesus Cristo e os anjos, visto que a condição fundamental da sua natureza ainda reclama a redenção do corpo, como está em Romanos 8, 23, já a partir de agora, onde toda a criação almeja a libertação definitiva.

E por fim, quando o mortalismo se debruça nos textos que falam da morte da alma para ensinar que não existe alma imortal, pensando ser mais bíblico, o mesmo faz o psicopaniquismo tentando explicar as passagens onde são mencionados os mortos no sheol e onde é vista a possibilidade de “acordarem do seu sono”, comparando a morte não como inexistência, mas como verdadeiro sono sem sonhos, mantendo a doutrina da realidade e existência da alma como outra parte da natureza humana. Se a alma dorme, ela existe e está viva, sendo assim imortal. O mortalismo permanece sozinho, tropeçando nos sentidos da palavra alma nos originais da Bíblia e entendendo morte como inexistência.

Ambas as doutrinas, porém, são refutadas no presente estudo, onde se mostra que a morte da alma se dá no sentido de pessoa, e nunca de espírito humano, não sendo inexistência, mas cessação da vida física na terra, e a metáfora do sono se explica da perspectiva natural que se tem do cadáver que parece dormir, e nunca uma explicação do estado da alma.

Com isso, mais uma refutação ao mortalismo, ainda que partindo do exemplo de um teólogo protestante que aderiu a uma doutrina semelhante.

Gledson Meireles.

sexta-feira, 24 de março de 2023

Livro: A lenda da imortalidade da alma, sobre o evangelho pregado aos mortos

Refutação do item: O evangelho pregado aos mortos

A própria passagem de 1 Pedro 4, 6 mostra que os “mortos” são de fato as pessoas que morreram literalmente, fisicamente, e não espiritualmente. De fato, o texto diz que “também” ou “até” os mortos foram evangelizados.

Todos os que ouvem a pregação do evangelho são primeiramente mortos em pecados e vivem após a conversão. Assim, sempre se prega o evangelho, ordinariamente, naturalmente, logicamente, aos mortos.

Mas, agora, o texto diz que também aos mortos foi pregado o evangelho, o que só pode ser aos mortos que estão na mansão dos mortos.

O texto lembra o julgamento do pecador em 1 Coríntios 5, 5, que tem como sentido a excomunhão, que serve para a destruição da carne  e a salvação do espírito no dia do Senhor.

Em 1 Pedro 4, 6, os mortos são condenados na carne, julgados de segundo os homens na carne, para que possam viver segundo Deus no espírito.

As traduções trazem o sentido de que o evangelho foi pregado “também” aos mortos, “até” aos mortos, traduzindo a conjunção kai (que significa e, até, também, segundo a Strong´s Concordance 2532). O contexto determina o sentido. Assim é que em Mateus 8, 27 a conjunção tem o sentido de até: “que até os eventos e o mar obedecem?”.

O argumento é que o texto diz que os mortos deverão prestar contas a Deus. Também afirma que isso implica em que os mortos não foram julgados ainda, porque sem julgamento não pode ter sido lançados em nenhum lugar. O problema é que os anjos estão presos em trevas eternas aguardando o juízo, o que prova que é possível ter sido lançado em um lugar antes do juízo final.

 Além do mais, o texto é claro que afirmar, com a doutrina bíblica inteira, que Jesus é juiz dos vivos e dos mortos, como diz Atos 10, 42 e 1 Timóteo 4, 1. Portanto, trata-se de algo extraordinário que o evangelho tenha sido pregado também aos mortos.

 Para o mortalismo os mortos não estão em lugar nenhum, não estão conscientes porque não existem. Então, a explicação é que os mortos são os que estavam mortos quando São Pedro escreveu a carta, mas que estavam vivos quando ouviram o evangelho.

 Essa interpretação é feita para evitar a ideia de que haveria oportunidade de salvação após a morte. Não há outra razão que os intérpretes protestantes citados poderiam dar para apoio dela.

Outro argumento é que o vero kerusso seria um outra pregação ou proclamação, e que seria a vitória da cruz que Jesus foi proclamar aos anjos.

Há uma ligação do verso 5 e do verso 6. O v. 5 trata dos pecadores que terão de dar contas a Jesus, pois Jesus vai julgar vivos e mortos. Assim, quando morrerem terão de prestar contas diante do tribunal de Cristo. Jesus foi constituído juiz dos vivos e dos mortos.

O verso 4 mostra que “eles” estão vivos, cometendo muitos pecados, e que “darão conta” a Deus. São os mesmos que cobrem os cristãos de calúnia. Essa passagem não parece tratar de ímpios que já estavam mortos.

 Vamos extrair o sentido do tendo em consideração as explicações dadas:

 Os quais hão de dar conta ao que está preparado para julgar os vivos e os mortos.

Porque por isto foi pregado o evangelho também aos mortos, para que, na verdade, fossem julgados segundo os homens na carne, mas vivessem segundo Deus em espírito.

 Quando o verso 5 afirma que Jesus está preparado para julgar os vivos e os mortos, o verso 6 começa explicando que esse foi o motivo do evangelho ter sido pregado aos mortos.

 Dessa forma, é possível que quando se diz: “vivessem segundo Deus em espírito”, isso se refira à vida da graça usufruída pelas santas almas à espera da ressurreição. De fato, a carta aos efésios afirma que Jesus subiu aos céus levando prisioneiros.

 Elas sofreram a morte, foram julgados segundo os homens na carne, mas o evangelho foi pregado a elas para que vivessem segundo Deus em espírito.

Diante disso, a explicação do livro mortalista não faz sentido:

É por isso que Pedro diz que a razão do evangelho ter sido pregado aos mortos é porque eles terão que prestar contas a Deus no dia do juízo, já que é justamente o fato deles terem sido evangelizados que os tornava indesculpáveis perante Deus.

Caso assim fosse, o evangelho não teria sido pregado aos mortos, já que eles estariam vivos no tempo em que ouviram a mensagem da salvação. O texto poderia ter dito que ‘por isso o evangelho foi pregado a eles’.

Não faz sentido dizer que os pecadores que agora estão perseguindo a Igreja deverão prestar contas as Deus pois foi por esse motivo que o evangelho foi pregado aos mortos! Na verdade, o evangelho é pregado sempre aos vivos. A única ocasião em que houve pregação aos mortos foi quando Jesus desceu à mansão dos mortos.

Voltemos ao texto e vejamos que a explicação do motivo do evangelho ter sido pregado aos mortos é que Jesus irá julgar vivos e mortos. Assim, os mortos ouviram o evangelho enquanto mortos. Os mortos que ouviram o evangelho para viver no espírito.

Agora, temos ocasião para duas coisas. A primeira é mostrar que a dualidade humana explica melhor os textos bíblicos, pois mantem a inteireza do ser, o holismo bíblico. No entanto, o holismo apregoado pelo mortalismo, que afirma que não há separação corpo e alma, esse possui certas falhas ao tentar explicar muitas passagens como está sendo provado no presente estudo.

Assim, o texto de Romanos 8, 10 afirma: “Ora, se Cristo está em vós, o corpo, em verdade, está morto pelo pecado, mas o Espírito vive pela justificação”. O corpo material, que sofre com a morte a degradação total, já está morto através do pecado. Essa parte material do ser humano é afetada pelo pecado, pela fraqueza da concupiscência, de forma mais brutal que o espírito, pois o verso 11 afirma que o Espírito Santo dará vida aos “corpos mortais”. Isso o mortalismo faz questão de negar, quando critica a ressurreição como sendo apenas a vida do corpo que volta.

Mas, na linguagem de Romanos 8, 11, temos que Deus dará vida aos corpos mortais. O texto afirma que no homem vivo o corpo está morto por causa do pecado e o espírito está vivo por causa da justificação. Na ressurreição, então, o corpo receberá a vida. Isso mostra a dualidade do ser humano, corpo e alma distintos.

Se o mortalismo afirma que não há separação, como explicar que o homem está morto no corpo, que ainda não recebeu redenção, mas vivo no espírito? Se o corpo só receberá a vida, pela glorificação, na ressurreição, e o espírito já está vivo, isso já explica o motivo dos mortos serem julgados na carne mas poderem viver no espírito segundo Deus, como está em 1 Pedro 4, 6.

Se o Espírito daquele que ressuscitou Jesus dos mortos habita em vós, ele, que ressuscitou Jesus Cristo dos mortos, também dará a vida aos vossos corpos mortais, pelo seu Espirito que habita em vós”.

O mortalismo explica que a antítese carne-espírito e carne-alma é apenas ética e não ontológica. Teríamos então que o corpo está eticamente morto e o espírito eticamente vivo. O mesmo ser está morto e vivo, morto quanto ao pecado e vivo quanto à justificação. É compreensível, e bastante plausível.

O que fica mais interessante, porém, é que o contexto todo trata da morte física, afirmando que Jesus ressurgiu dos mortos  e que a vida será dada aos corpos mortais. Se isso é apenas ético, então a vida será dada a vós inteiramente, já o corpo está morto pelo pecado e perecerá na morte física. E, então, o Espírito Santo irá ressuscitar o corpo, que é a pessoa inteira.

No entanto, se temos que o corpo está morto e o espírito está vivo, e que o Espírito Santo habita no salvo, então se vê que o Espírito Santo está no espírito do homem, na alma imortal, e não no corpo. Assim, através da habitação do Espírito na alma, haverá também a ressurreição do corpo que não possuía a vida, por causa do pecado, em primeiro lugar, e por causa da morte.

O espírito humano, por sua vez, na justificação, já recebe a vida, e portanto na morte continua com a vida da graça. Isso parece fazer maior sentido, quando se tem corpo e espírito como partes ontológicas.

É claro que o mortalismo reconhece que o espírito não é apenas o princípio de vida, mas também a fonte da vida psíquica e racional, como explica o dr. Samuele Bacchiocchi.

Mas, então, o Espírito Santo estaria vivificando o homem em sua mente e razão, enquanto que o corpo e suas moções estariam mortas. O homem, sendo indivisível, estaria tendo em si algo mortificado e algo vivificado. Essa mortificação então deveria atingi-lo todo, e a vivificação igualmente, o que tornaria algo contraditório.

Na morte, o que foi mortificado perece, e o ser é extinto. Para que serviu o espírito que estava vivo pela justificação? Para o mortalismo tudo desaparece na morte e volta na ressurreição. Então, os mortos não viveriam no espírito segundo Deus, já que não existiriam. Isso torna sem sentido a explicação clara da vida no espírito usufruída pelos mortos.

Se o corpo que ressuscitará é a pessoa inteira, já que não havia nada que sobrou na morte, se é apenas aspecto da pessoal total, então por que se diz que será dada a vida aos corpos na mesma passagem que contrasta o corpo morto em pecado e o espírito vivo em justificação? Se a pessoa inteira receberá a vida, todos os aspectos seriam vivificados. Porém, a passagem de Romanos 8, 11 afirma que o Espírito Santo que habita na pessoa regenerada faz o espírito viver, não o corpo, que receberá vida na ressurreição.

Somente na ressurreição se tem a “redenção do nosso corpo”, o que é mais uma frase que indica o sentido ontológico que o ético apenas.

Nessa concepção mortalista, onde o corpo é figuradamente mostrado como submisso à influência do pecado ou ao pode do Espírito, no sentido de que toda a pessoa está sendo referida, fica difícil entender que o corpo está morto, denotando a pessoa total estando morta, e o espírito está vivo, denotando a pessoa total estando viva. Parece não caber perfeitamente esse emprego figurado nessa passagem.

O corpo é corpo de pecado, corpo desta morte, em Romanos 6, 6, e 7, 24. Não parece ser somente no sentido de quando se torna instrumento do pecado. De fato, o corpo está sempre presente na vida humana, e o texto afirma que deve ser mortificado e que a redenção é esperada (cf. Rm 8, 23). O corpo é para o Senhor e o Senhor para o corpo, e Ele ressuscitará “a nós pelo seu poder”.

O dr. Bacchiochi afirma que o corpo deve ser renovado neste mundo, sendo isso a pessoa inteira, pois é templo do Espírito Santo, e ressuscitado no mundo por vir, sendo também a pessoa inteira (Imortalidade ou Ressurreição, p. 100).

No entanto, ainda não fica claro que a redenção em Romanos 8 é esperada para o corpo, já que o espírito já está vivo. Isso sugere que o monismo mortalista possui essas limitações.

O mortalismo ensina que o corpo é a pessoa inteira. As passagens que falam de corpo e espírito ou corpo e alma seriam apenas expressões de aspectos da pessoa. O imortalismo entende bem essas verdades, e os mortalistas precisam reconhecer que não há aí nenhuma prova contra a imortalidade da alma.

Quando Jesus afirma que o espírito está preparado e a carne é fraca, e São Paulo afirma que serve a Deus no espírito e ao pecado nos membros, essa noção é bem explicada pela perspectiva ética, visto que a dualidade humana também não separa drasticamente corpo e alma, pois o que atinge o corpo chega também à alma e vice versa.

Assim, os exemplos apresentados de corpo como pessoa integral, para defender um sentido ético do contraste corpo e alma, não difere do que é usado nos dias de hoje.

Desse modo, como o português há não muito tempo ainda utilizava almas para falar de pessoas, o corpo é citado hoje com o sentido de eu. O corpo como aparece em 1 Coríntios 13, 3 não apresenta diferença essencial do que temos como conceito.  Alguém que afirme cuidar do seu corpo está dizendo que cuida de si mesmo, como um todo.

O que a doutrina da dualidade da natureza humana explica melhor, sendo superior nesses casos, porém, sãos as passagens em que é possível ter experiências sem o corpo, como quando São Paulo teve a visão do céu e afirma que não sabe se estava no corpo ou fora dele.

Também quando é possível servir a Deus despido, ou seja, sem o corpo, ou quando os mortos vivem segundo Deus no espírito, quando na carne foram julgados pela morte.

Ainda, quando o apóstolo afirma que deseja partir e estar com Cristo, não é somente o “anseio de ver um fim para a sua angustiada existência e estar com Cristo”, pois o mesmo diz que o morrer é lucro, o que torna claro que na morte há encontro com Cristo, pois que no corpo ele está longe do Senhor, o que mostra que há separação corpo e alma, onde longe do corpo na morte é possível ter melhor união com Cristo.

Ainda que o mortalismo veja essa linguagem como poética de fé, e não de lógica da ciência, ela implica que de alguma forma há encontro com Cristo na morte. A perspectiva monista não explica tais coisas.

Para o mortalismo é impossível ter uma visão sem o corpo, como é impossível sair do corpo e estar com Cristo, como é impossível viver no espírito estando morto, pois a extinção do corpo extinguiria o espírito igualmente. Portanto, o mortalismo é uma visão limitada. De qualquer forma, o texto é claro de que o evangelho foi pregado aos mortos.

 Gledson Meireles.

terça-feira, 21 de março de 2023

Livro: A lenda da imortalidade da alma, estudo do capítulo 8

Resposta ao capítulo 8 – Quando a imortalidade da alma entrou no Judaísmo

O Antigo Testamento ensina a imortalidade da alma, a ressurreição, o juízo e a vida eterna, mas de uma forma menos clara que o Novo Testamento, porque a revelação é progressiva.

Assim, muito do que é dito dos mortos se dá pela perspectiva dos vivos, pois os mortos não estão conscientes como estão os vivos e em relação às coisas deste mundo, e não vivem como se vive na terra, os planos e projetos cessam, e a vida entra nas trevas da morte.

Isso não é o mesmo que ensinar que os mortos não existem, pois o sheol é a região espiritual dos mortos, no mais profundo abismo, debaixo da terra, contrastado com o céu, o que não é apenas algo metafórico e simbólico, mas um lugar onde o centro da personalidade, a alma espiritual, repousava no Antigo Testamento. Isso pode ser ainda visto no Novo Testamento, quando se considera que o inferno está nas profundezas.

Quando se diz que “os teólogos imortalistas mais conceituados” ensinam que houve mudança sobre o assunto no Novo Testamento, isso está restrito aos teólogos protestantes. Se um ou outro teólogo católico ensinar tal tese, estará em divergência com a doutrina oficial e a tradição apostólica.

De fato, quando se diz que a teologia católica não endossa tal tese, e que os maiores teólogos católicos em toda a história ensinaram a imortalidade da alma, inclusive os a teologia atual, se constata um fato. Em 1512 o IV Concílio de Latrão confirmou a imortalidade da alma, e ali estavam os maiores teólogos corroborando a doutrina.

Afirmar que os judeus mudaram de fé na diáspora e em contato com a cultura helênica é uma explicação bastante difundida no meio acadêmico, mas que não é o que se vê nas páginas do Antigo Testamento, que mostram a forma com que a imortalidade da alma é ensinada, diferentemente das doutrinas helênicas.

A Bíblia afirma que há um único Deus, Javé, o Criador do céu e da terra, o Senhor dos Exércitos. Mas também afirma que as nações possuem “seus deuses”, como aqueles que foram adorados pelo rei Salomão após sua queda, como Astarte, dos sidônios e Melcom, dos amonitas e Camos, de Moab (cf. 1 Reis 11, 1-8).

Embora não haja fatualmente deuses em comparação com o único Deus, há espíritos que recebem adoração no lugar de Deus, e os ídolos se tornam uma realidade no coração dos povos. Dessa forma, os ídolos existem. Por isso, o Novo Testamento afirma que os demônios recebem esse culto que é dado aos ídolos no lugar do Deus verdadeiro.

Dessa forma, como a existência de Deus, a imortalidade da alma foi ensinada por todos os povos, sem exceção, e isso é prova da intuição universal, que aceita sem controvérsia e naturalmente que a alma é imortal, e isso não seria diferente com o povo de Israel, o Povo de Deus.

Assim como todos os povos são religiosos e afirmam a existência de Deus e de deuses, onde há sempre um deus maior, mais poderoso, acima dos outros, o que leva aos poucos de volta ao monoteísmo radicado no coração humano, também a imortalidade da alma está no coração de toda a humanidade. Esses fatos são irrefutáveis. Um ponto a menos, novamente, para o mortalismo.

Afirmar que a imortalidade da alma foi “criada” com os órficos e popularizada por Platão (427-347 a. C.) não é provar de onde veio a imortalidade da alma que todos os povos sempre acreditaram, mas apenas mostrar como se deu a sistematização da doutrina, pois a mesma é fundamentada também na razão humana.

Será mesmo que a Bíblia afirmando que o homem é pó e cinzas está falando da essência toda da natureza humana e negando a imortalidade da alma? Claramente não. Essa posição é repetida mesmo por todos os cristãos que sabem, humildemente, da fraqueza da natureza humana, que simbolizada na expressão pó e cinzas. Isso não caracteriza a inexistência da alma imortal.

Santo Tomás adaptou o pensamento grego com o Cristianismo, mas fazendo correção em todas as passagens da filosofia grega que não concordavam com a revelação, visto que a Bíblia é soberana. Assim, ensinou a criação, a natureza humana na dualidade corpo-alma unidos e a ressurreição, o que não se encontrava no helenismo.

Ao falar de filosofia, é certo o lugar de Aristóteles, o maior dos filósofos antigos, o que explica ser o mais citado. Na teologia, a revelação bíblica, é claro, ilumina tudo o mais.

Então, a tese de que os judeus da diáspora aprenderam dos gregos a imortalidade da alma, assim como afirma “qualquer historiador que se preze”, é uma tese bastante crida entre os acadêmicos, mas não é a que se sustenta diante dos argumentos. Quando se demonstra que outros estudiosos negam essa afirmação, dirão que não é opinião do povo judeu, e que os eruditos citados não valem, não são dos melhores. Contudo, um fato natural já foi mencionado, a imortalidade da alma constante em todas as culturas. Dificilmente se poderá provar que os judeus não criam como os demais.

A citação da Enciclopédia Judaica diz que é especulação a crença da imortalidade da alma, que não é doutrina de fé, que não é ensinada nas Escrituras Sagradas “expressamente”, ou seja, de forma clara, direta, explícita. Mas então, pode-se objetar, é ensinada pelo menos de forma vaga.

Essa crença teria sido adotada por meio do pensamento grego, continua a enciclopedia, com Platão, que teve tal entendimento através dos ‘mistérios órficos e eleusianos’ que existiam na Babilônia e Egito.

O livro de Sabedoria ensinaria a imortalidade da alma, estranhamente, e até a “preexistência” das almas, como sugere alguns autores, interpretando erroneamente Sabedoria 8, 20. De fato, isso não é um ensino do livro, mas interpretações de autores sobre o mesmo.

Então, continua a Enciclopédia, retirando o espírito, a alma desce ao sheol, tendo vida nas sombras, ou melhor, existência sem vida e consciência. Para isso, cita Jó 14, 21; Salmo 6, 6; 115, 17; Isaías 38, 18; Eclesiastes 9, 5.10.

A crença na vida contínua da alma, que fundamentada o culto dos ancestrais e a necromancia, praticada mesmo em Israel, em tempos antigos, como cita 1 Samuel 28, 13ss, e Isaías 8, 19, teria sido desencorajada nos tempos pós-exílio.

Afirma, ainda, dessa fé na imortalidade implícita nos Salmos, e o desejo de Jó pela vida após a morte, o que não era uma fé real nessa verdade, mas um desejo para isso, citando Jó 14, 13.

O livro do Eclesiástico, escrito muito depois de Platão, como a tese mortalista tende a afirmar como sendo o momento em que a imortalidade da alma teria sido introduzida entre os judeus, esse mesmo livro continua a usar mesma linguagem, mostrando que a região dos mortos é o destino do homem (cf. Eclesiástico 14, 12). Mas eis que a tese diz que nem todos os judeus tinham sido influenciados, e que o Eclesiástico estaria mostrando isso.

Contudo, a Encliclopédia afirma que foi com a “esperança messiânica” e com as “ideias persas” que a crença na ressurreição forneceu a base para a contínua existência da alma sem o corpo, citando Isaías 25, 6-8 e Daniel 12, 2, textos que tratam da ressurreição.

O livro inspirado da Sabedoria nos textos Sabedoria 1, 5; 3, 4; 4, 1; 8, 13.17; 15, 3 é interpretado como se ensinasse algo novo. De fato, os textos serão mostrados abaixo, para provar que os mesmos continuam a ensinar a mesma doutrina com os demais livros bíblicos.

 

Sabedoria:

1, 15: “porque a justiça é imortal”.

3, 4: “Se os olhos dos homens suportaram uma correção, a esperança deles era portadora de imortalidade”.

4, 1: “Mais vale uma vida sem filhos, mas rica de virtudes; sua memória será imortal”.

8, 13.17: “Por meio dela obterei a imortalidade, e deixarei à posteridade uma lembrança eterna.” E “Meditando comigo mesmo nesses pensamentos, e considerando em meu coração que a imortalidade se encontra na aliança com a sabedoria”.

15, 3: “Porque conhecer-vos é a perfeita justiça, e conhecer vosso poder é a raiz da imortalidade”.

Os textos sagrados da Sabedoria afirmam que a justiça é imortal, que a esperança dos homens é portadora de imortalidade, que a memória de um justo é imortal, que a imortalidade se dá por meio da lembrança eterna, que a imortalidade está na aliança com a sabedoria, e que conhecer o poder de Deus e a raiz da imortalidade.

Difícil é ver aí qualquer doutrina diferente do que se encontra nos demais livros. Nem mesmo a linguagem assemelha-se à filosofia platônica. A Enciclopédia afirma ainda que não se sabe se os saduceus negavam a imortalidade da alma.

Quanto ao texto de Sabedoria 3, 1-3, esquecem de citar o verso 7, que fala da ressurreição como toda a Escritura que menciona a realidade da alma e a ressurreição.

Na mesma enciclopédia, o artigo sobre a alma, do autor Kaufman Kohler, que escreveu o texto sobre a imortalidade da alma, com Isaac Broydé e Ludwig Blau, é afirmado que textos como Provérbios 20, 27, Jó 22, 8 e Eclesiastes 12, 7 são exemplos a doutrina da imortalidade da alma, da ideia de uma alma desencarnada tendo sua própria individualidade, o que seria proveniente do contato dos judeus com o pensamento dos persas e gregos. Isso já havia sido mostrado no estudo da primeira versão do livro A lenda da Imortalidade da alma, refutando suas alegações nesse sentido.

Por exemplo, o texto de Provérbios diz: “O espírito do homem é uma lâmpada do Senhor: ela penetra os mais íntimos recantos das entranhas”. Portanto, espírito aqui não é respiração, não é energia, não é vento, não é anjo, mas é algo no homem que “penetra” em partes mais recônditas do ser humano, até o fundo do ser humano, sendo a inteligência, a alma do homem.

É algo que de fato mostra a alma humana como parte distinta do corpo. É uma menção da alma imortal. Concordando ou não com a interpretação da enciclopédia, é um fato que a mesma admitiu a existência da alma no livro de Provérbios e outros. E, ainda, que se houve a tal influência, esses livros teriam sido escritos nesse período.

Com isso, prova-se que a própria enciclopédia judaica admite que no texto bíblico aparece a doutrina da imortalidade da alma. Isso refuta o que diz o livro mortalista:

 

Uma vez que Platão escreveu no século IV a.C e o último livro do AT (Malaquias) data de um século antes, o que se conclui é que durante todo o período de revelação do AT os judeus permaneceram mortalistas, já que só vieram a adotar o pensamento grego mais tarde, por influência da filosofia platônica.” De fato, depreende-se que a enciclopédia considera os livros escritos no período em que houve tal influência persa e grega.

Primeira refutação é, portanto, que a própria enciclopédia admite que a doutrina da imortalidade da alma, que teria vindo do pensamento pagão de persas e gregos, está exemplificada em livros como Provérbios, Jó e Eclesiastes, o que o livro mortalista nega.

Ainda que o mortalismo concorde que a crença na imortalidade da alma entrou no pensamento judaico por fontes tardias e pagãs, nega que isso tenha entrado no texto bíblico, pois crê que os judeus eram mortalistas e a imortalidade da alma não seria a doutrina correta. Assim, vê-se que a enciclopédia que afirma que a crença veio de origem persa e grega tem sua expressão na Bíblia. Primeira refutação.

Obviamente, como mostra a doutrina católica, a imortalidade da alma está na Bíblia, desde o início, o que foi admitido pela enciclopédia judaica, e não tem como fonte nem o pensamento persa, nem o grego, nem o de qualquer outro povo, mas concorda com todos os povos nesse ponto, porque é uma verdade universal admitida em todas as culturas e civilizações, o que contraria a posição da enciclopédia. Então, com isso refuta-se a posição mortalista, e é corrigido esse ponto do texto citado.

Desse modo, a fé católica corrige esse equívoco de muitos historiadores e teólogos e mostra que nas expressões típicas da Bíblia se encontram a fé na alma imortal. Para ser mais preciso, a Bíblia mostra que a alma continua a existir após a morte.

O livro mortalista citou a Enciclopédia Judaica para reforçar seu argumento de que a doutrina da imortalidade da alma foi absorvida tardiamente pelos judeus, o que a enciclopédia afirma equivocadamente, como mencionado antes, mas não tomou conta de que a mesma fonte considera, e com razão, que o texto bíblico já propõe essa verdade.

Isso deve fazer com que o autor do livro mortalista discorde desse ponto da enciclopédia, atendo-se a outra interpretação para os textos bíblicos citados. É uma possibilidade, mas também essa está refutada em todo o presente texto que considera cada argumento do livro, pois a Bíblia ensina a imortalidade da alma.[1]

Para o mortalismo a influência pagã entre os judeus teria ocorrido após o século VI a. C., e os livros bíblicos teriam sido escrito antes dessa influência. Mas há divergência entre eruditos sobre o período de composição dos livros bíblicos. Os acadêmicos não dirimem a questão.

Entretanto, Malaquias teria sido escrito em 425 a. C., ou, conforme outros, em 443 a. C. O livro de Provérbios é datado de 700 a. C., Eclesiastes entre 444 e 331 a. C., e Jó é tradicionalmente considerado como escrito 16 séculos a. C., ou ainda no tempo de Salomão, no século X a. C., encontra datações de que foi escrito no exílio ou no pós-exílio.

Quanto ao Dr. Paul J. Achtemeier, deve-se lembrar que não era católico. E a afirmação do jesuíta John Mackenzie de que a imortalidade da alma em Sabedoria, como produto do judaísmo alexandrino, estranha à crença e psicologia judaica, trata-se de uma opinião equivocada de um filho da Igreja, que não se compara à erudição tamanha do consenso doutrinal e teológico de toda a Igreja em toda a história, o que faz dessa afirmação apenas mais um exemplo de opiniões de católicos que não estão entre as afirmações católicas oficiais.

E de fato, ele errou nesse ponto, já que o que se depreende da doutrina do livro da Sabedoria sobre a alma é o mesmo de todos os demais livros da Sagrada Escritura.

Interessante também as citações do Eclesiástico e Baruque, feitas no livro, já que são deuterocanônicos, e o autor do livro concorda que eles ensinam a mesma doutrina bíblica de sempre, e que é um testemunho de que entre os judeus da Palestina conservou-se a doutrina da natureza humana original, que na concepção do autor é conforme o parecer “mortalista”. Esse ponto é portanto um equívoco.

É claro que os livros bíblicos todos ensinam a mesma doutrina, e não seria diferente Eclesiástico, Baruque, Sabedoria, 1 e 2 Macabeus etc. No entanto, eles afirmam a existência da alma imortal também.

A afirmação de que mesmo no período helenístico a influência não foi total, corrobora a doutrina católica de que os judeus não adotaram como um todo o paganismo, e por isso a tese de que teriam adotaram a imortalidade da alma, caso isso fosse algo errôneo, sem nenhuma controvérsia, é falha.

Ainda, mesmo que se afirme que no século 1 da era cristã as coisas mudaram, isso não prova nada, porque as passagens bíblicas estudadas, todas elas, estão confirmando que há dualidade no ser humano, e os argumentos mortalistas, mesmo os melhores, ou são neutros no debate, ou seja, as passagens são pacíficas na leitura imortalista, ou possuem força menor, pelo menos. Muitos, porém, são fracos.

Mas, uma afirmação mortalista contraria o que se afirmou aqui, a saber, a de que todos os povos creram na vida após a morte, no estado intermediário, na alma imortal. A citação é a seguinte: “Na verdade, quase todos os povos antigos antes dos gregos e egípcios desconheciam a ideia de uma alma imortal.

Mas a própria citação mostra o que já está provado aqui, e que foi mostrada acima. A crença antiga, primitiva, era que as almas viviam no sheol, o que é explicado não como uma “vida”, comparada à que se vive na terra, mas uma espécie de não-vida, “sem vida e consciência”, como diz a citação, mas, o que é importante, mantendo a existência: “a alma desce ao Sheol ou Hades, para lá ter uma sombria existência, sem vida e consciência”.

A própria explicação de que a alma desce ao sheol, quando o corpo, certamente, fica na sepultura, e depois sofre corrupção e deixa de existir como corpo, enquanto a alma mantem-se em existência sombria, prova algo contra a mortalismo. Esse ponto importante não foi entendido pelo autor do livro, e isso não é sem importância, mas fundamental.

A Enciclopédia Britânica afirma que muitas culturas reconhecerem “algum princípio incorpóreo de vida humana ou existência correspondente à alma” e mesmo nos povos pré-história havia a crença “em um aspecto distinto do corpo e residindo nele”.

Se isso não é a doutrina totalmente elaborada da alma consciente, com mente e vontade, existindo fora do corpo, como encontra-se no platonismo, e se isso for o que o mortalismo está tentando negar, é óbvio que nem todos os povos criam na alma dessa forma, mas acreditavam que havia algo incorpóreo e que esse era distinto do corpo e continuava a existir após a morte.

A enciclopédia afirma isso expressamente quando estuda a imortalidade da alma no Cristianismo, afirmando que todos os seres humanos sempre tiveram alguma noção “de um duplo sombrio que sobrevive à morte do corpo”. No entanto, como ser mental com qualidades intelectuais e morais, isso não se encontra em todas as culturas, mas deriva de Platão. Afirma que essa noção passou ao judaísmo no último século antes de Cristo.

Se todos os povos antigos desconheciam a ideia de uma alma imortal, eles sabiam de algo no ser humano que permanece após a morte. É esse fato que refuta o mortalismo. Não se requer que a ideia de alma imortal esteja desenvolvida plenamente em todas as culturas, mas é suficiente admitir que todos tinham a noção de uma parte incorpórea do ser humano. Quando se diz que muitos povos desconheciam a imortalidade da alma não se pode dizer que cressem que o ser humano deixava de existir com a dissolução do corpo, mas que havia uma sombra que continua em mitigada existência.

O sheol bíblico assemelhava-se ao mundo subterrâneo babilônico, afirma a enciclopédia britânica. Nada acontece lá, esse lugar assustador. Afirma então que é difícil determinar quando a noção de alma emergiu nos escritos dos judeus. Haveria uma doutrina Yavista, primordial, onde a não haveria uma noção de vida após a morte, e um desenvolvimento dessa, já presenta no livro de Jó e etc.

Afirma que o problema é parcialmente filológico, já que alma significava pescoço e garganta, depois vindo a ser o princípio vital. O espírito era o vento, mas depois veio a referir-se à inteligência, vontade e emoções da pessoa humana, e mesmo aos fantasmas.

A ressurreição teria sido desenvolvida no período helenístico. As ideais órficas e platônicas teriam influenciado do judaísmo sobre a morte. Essas são algumas noções da complexa história dos povos sobre a questão da morte e da imortalidade da alma.

Assim, de alguma forma, há prova de que todos os povos creram na imortalidade da alma, ou em outras palavras, que é o que se propõe provar aqui, que todos os povos creram na existência da alma sem o corpo, na contínua existência de parte da personalidade depois da morte, ainda que na escuridão da morte, no mundo das sombras, numa existência em trevas, sem verdadeira vida, sem comunicação, como explicou Josef Ratzinger, mas com existência, o que é diferente do mortalismo que prega a extinção da alma com o corpo, pois não concebe que a alma possa ser separada do corpo e menos ainda que possa existir fora dele e sem ele, e, portanto, não concebe que possa sobreviver a isso.

Assim, temos mais uma refutação para a posição mortalista, feita com auxílio da Enciclopédia Judaica. Isso é um fato histórico, e não questão de opinião.

Portanto, no Antigo Testamento não é tão claro o estado da alma após a morte, não se explica expressamente o que se experimenta no sheol, apenas que se trata de lugar longe de Deus, em escuridão, de repouso, sem verdadeira vida, mas de existência. Isso é um fato inegável. Está refutado o capítulo 8.

Então, no Novo Testamento tudo se torna mais claro, mas explícito, e que Jesus e os apóstolos, em várias ocasiões, mencionam essa verdade da existência e imortalidade da alma.



[1] KOHLER, Kaufmann. Soul. Jewish Encyclopedia. Disponível em: <https://jewishencyclopedia.com/articles/13933-soul>. Acesso em 2023.