sábado, 27 de outubro de 2018

Sola Gratia e a obediência

Franklin Ferreira afirma que o Concílio de Trento anatematizou a doutrina da justificação, após citar F. F. Bruce, que diz ser a doutrina de Trento uma confusão de justificação e santificação, fazendo a primeira dependente das obras, e que o concílio anatematizou a doutrina reformada ou paulina.

Franklin afirma que o Concílio anatematizou a justificação porque essa doutrina coloca os homens além da moralidade, da manipulação religiosa, do domínio dos seres humanos e das estruturas eclesiásticas. Conta, aliás, o caso da esposa de um pastor protestante, que sugeriu ao marido pregar essa doutrina na igreja, mas ele respondeu que não pregava isso por medo de perder o controle dos fieis.

“Se alguém disser que os homens são justificados ou só pela imputação da justiça de Cristo, ou só pela remissão dos pecados, excluídas a graça e a caridade que o Espírito Santo infunde em seus corações e neles inerem; ou também que a graça pela qual somos justificados é somente um favor de Deus — seja excomungado”. (Cânone número 11)

A doutrina bíblica é que a justificação se dá pela imputação da justiça de Cristo, pela remissão dos pecados, pela infusão da graça e do amor no coração do fiel.

Não é somente a imputação. A justificação é também a justiça de Cristo em favor do fiel justificado. Ela é também.

Não é somente a remissão. Ela é também a remissão.

A graça não é somente um favor de Deus. Ela é também um favor de Deus.

Enquanto que a justificação é entendida pelo protestantismo como apenas a imputação da justiça de Cristo, ela é muito mais que isso no catolicismo.

Os cânones de Trento anatematizaram erros na doutrina da justificação que estavam em circulação no século 16. Um deles era o de que o homem podia realizar por suas próprias forças as obras de salvação, ou que podia ser salvo pela lei. Isso foi anatematizado.

Outra doutrina refutada é a de que o homem livre pode viver de modo a alcançar a salvação, e que a graça seria um auxílio, para ajudá-lo, o que também foi anatematizado. Estão aí refutadas as heresias pelagianas e semipelagianas.

Franklin afirma que existe uma noção de que as pessoas são boas e podem pelo esforço próprio transcender sua situação, e de que Deus auxilia, dando “alguma ajuda, dependendo da fé da pessoa” (p. 116).

Essa doutrina é justamente uma que é anatematizada pelo Concílio de Trento. O Franklin rejeita a doutrina, assim como a Igreja Católica a rejeita. É o ponto doutrinal semipelagiano acima aludido. Não há diferença quanto a esse particular.

Algumas afirmações do calvinismo, como apresentado por Franklin:

1)  O homem não peca necessariamente ou “inevitavelmente”, mas livremente;

2)  Não pode ajudar em coisas espirituais

3)  Deus selecionou pessoas para ser alvos do Seu amor

4)   A eleição ensina que Deus escolhe amorosamente quem efetivamente irá crer.

5)  Não há predestinação para a condenação

6)  A fonte de eleição e predestinação é o amor de Deus em Cristo

7)  “Deus não se ira mais com aqueles pelos quais Cristo morreu”

Os tópicos 1, 5 e 6 ao que parece é o mesmo da que ensina a doutrina cristã católica. O número 1 afirma que o homem peca livremente. No entanto, a doutrina católica ensina o livre-arbítrio, o calvinismo não. É a primeira dificuldade para esclarecer. Uma vez que o calvinismo dirá que a natureza pecaminosa peca voluntariamente, por gosto e prazer, por estar inclinada ao pecado, e não por ser coagido a pecar, e não pode agradar a Deus, ela é livre nesse reduto apenas, não podendo jamais sair dele por cooperação.

A doutrina católica ensina que o homem nesse estágio não pode agradar a Deus, está preso pelo pecado, é livre ao pecar, gosta do pecado e é insubmisso à Lei de Deus, e seu livre-arbítrio é insuficiente para levá-lo para fora dessa situação. É impossível que saia dela por suas próprias forças. Uma vez, porém, que recebe a graça, pode escolher ficar ou sair desse estado, pela iluminação do Espírito Santo, que o prepara para a justificação. Somente os eleitos recebem a graça da perseverança final, pois Deus conhece eternamente que irá responder à graça livremente. Tem-se assim que Deus dá a graça a todos, porque quer que todos sejam salvos, e que o homem é livre.

Para o calvinismo o homem peca livremente porque não pode fazer outra coisa senão pecar. Uma vez regenerado e justificado não pode agir de outro modo a não ser “como justo” aos olhos de Deus. Sendo que somente os eleitos recebem a graça da salvação, e efetivamente irão crer, e Cristo morreu somente por eles, então os demais não podem crer, sendo isso absolutamente impossível, e que isso é o resultado da eleição e predestinação. Dessa forma, não se explica que Deus quis a salvação de todos, porque não há graça para todos nesse sentido, nem que o homem seja livre, já que não pode escolher em termos espirituais.

Outro ponto não inteiramente respondido é o do perdão. Para os católicos justificados, o pecado é sempre possível, presente, praticamente inevitável, e o perdão necessário. Diariamente deve haver conversão a Deus, arrependimento e pedido de perdão, perseverança na oração e nos mandamentos. Os pecados perdoados são apagados. Lembrando que anatureza pecaminosa permanece, o pecado original não.

Para os calvinistas, isso parece bem diferente. Os justificados são pecadores, mas vistos como justos. Os pecados existem, mas o perdão é necessário como uma resposta de gratidão pela obra de salvação. Não há possibilidade de queda para a perdição, mas é necessário arrependimento, perdão, conversão como gratidão a Deus. Isso faz toda essa conversão um tanto artificial, já que fundamentalmente desnecessária, tendo valor apenas na prática ou aparentemente “rentável”. Não é objetivo tratar  aqui desse assunto com mais profundidade.

Voltando ao início do artigo: o motivo pelo qual o autor afirma que a doutrina é anatematizada é que essa leva o cristão para além da moralidade, da manipulação, do domínio dos seres humanos e estruturas eclesiásticas, colocando o cristão face a face com Cristo crucificado. Quando o cristão crê é automaticamente considerando justo, independentemente de obras ou méritos.

Isso tornaria o cristão livre de dominação, sem preocupações quanto às reprovações dos líderes, quando às ameaças que signifiquem a perda da salvação e o fogo do inferno, criando o cristão forte, que crê estar justificado, santo, e não pode senão agradar a Deus, sem dar contas de seu comportamento a ninguém mais. É uma atitude, uma prática típica de um protestante. É algo muito prazeroso para o ego. Não é que tal situação seja esperada e desejada, mas fortemente é resultado dessa doutrina.

A Igreja medieval não repudiou o ensino da justificação, quando corretamente entendido. Certamente, como o autor afirma, em sua acepção reformada, os neopentecostais desprezam esse ensino, assim como os “evangélicos” o ignoram.

Por que não tomar essa ideia e virá-la ao contrário para maior reflexão¿ Poderíamos afirmar o oposto do que foi dito a respeito da razão do repúdio, desprezo e ignorância em relação à doutrina.

Se no contexto da reformulação da doutrina Sola Gratia, feita pelos reformadores, pode-se afirmar que a repulsa das igrejas (talvez dos seus líderes) quanto a ela seja o fato de que a mesma liberta, é igualmente possível afirmar que o repúdio à doutrina da graça como ensinada no Concílio de Trento, pelos reformadores, é uma forma de não submeter-se à autoridade de Deus como deve ser.

Contudo, não se pode negar que os aludidos resultados gerais negativos e facilmente percebidos têm nele o seu fundamento. Não é difícil encontrar “crentes”, ativos em suas igrejas, que não vivem o evangelho e ainda assim estão cônscios de ser “livres” de todos. Demonstram pavor diante da palavra obediência. Não poderia isso também explicar as divisões?

Certamente, a doutrina original foi mudada na tradição protestante por sugerir essa conotação que mantém a necessidade profunda e essencial da cooperação com a graça, da submissão à vontade de Deus na vida, como uma prática necessária em termos de - manutenção da salvação, uma frase inteiramente odiada na concepção protestante, quanto mais na tradição calvinista. Ainda haverá espaço em outros comentários para avaliar essas questões sob outras perspectivas.
Fonte: Livro - FERREIRA, Franklin, Pilares da Fé.
 
Gledson Meireles.
 

segunda-feira, 15 de outubro de 2018

Sola Scriptura até para os cristãos católicos


Para esclarecer um ponto importante, como o é o da tradição apostólica, é oportuno o artigo do Lucas Banzoli: “Tradição oral” não existe. O que existe é Sola Scriptura, até para os católicos.
 

O autor afirma que, o que os católicos chamam de tradição oral é na verdade “uma fonte escrita, com a diferença de ter sido escrita tardiamente”, “não passa de documentos escritos”, que seriam scripturas nada confiáveis, chamada tradição.

Parece não ser tão comum os apologistas explicarem mais profundamente o que é chamado tradição oral sem deixar a ideia de que se trata de algo não escrito.

São Bellarmino explicou que a doutrina chamada “não escrita”, ou seja, oral, não quer dizer que não tenha sido escrita em qualquer lugar, mas que é “aquela que não foi escrita pelo primeiro autor”.

Desse modo, acreditamos que a tradição oral é apostólica, é Palavra de Deus infalível, mas que os apóstolos não a escreverem, mas que e em certo momento começou a ser escrita por outros, os Padres d Igreja. Assim, os escritos da tradição não são inspirados. Para distinguir a Palavra de Deus neles é necessário encontrar o consenso doutrinal, o sendo da fé, e etc., e todas as doutrinas devem estar de acordo com a Bíblia.

O exemplo que são Bellarmino fornece é o do batismo de crianças. Essa prática é implicitamente mostrada na Bíblia, ou seja, é do primeiro século, mas não posta por escrito explicitamente pelos apóstolos. Sendo uma prática unânime, cremos ser de origem apostólica, pois não seria concebida sem graves controvérsias, e praticamente todos os padres da Igreja falam dessa prática.

Quanto à assunção da Virgem Maria, a pergunta de Epifânio é importante:

“Se Maria morreu ou não, nós não sabemos

A Bíblia revela que o salário do pecado é a morte. (Romanos 6,7)

A ressurreição dos mortos será no último dia. (Jo 11, 24)

Os exemplos de homens que não morreram, como Enoque e Elias, mas que foram arrebatados, é explícito nas Escrituras, pois do contrário teríamos que tivessem morrido.

Qual a implicação da incerteza sobre o fim de Maria na terra?

1º Se ela morreu, não haveria porque pensar algo mais, naturalmente, visto que é comum a todos os seres humanos.

2º Se ela não morreu, onde está agora? Na terra é que não está. Portanto, leva à conclusão de que a ascensão é o resultado do pensamento de Epifânio.

Assim, a Bíblia é Palavra de Deus, a tradição é Palavra de Deus e a Igreja é infalível em guardá-la. E por meio de que fundamento afirmamos isso? Por meio da Bíblia, pois para provar que a tradição é Palavra de Deus que deve ser seguida temos a ordem e apoio na Bíblia (cf. 2 Ts 2,15). Da mesma forma que cremos na infalibilidade da Igreja porque a Bíblia afirma isso (cf. 1 Tm 3,15)[1]. Assim, pode-se afirmar nesse contexto que, diferentemente dos protestantes, e de forma diversamente qualificada, os cristãos católicos creem no lema Sola Scriptura.





[1] É certo que os protestantes interpretam de forma diferente os textos de 2 Ts 2,15,  que seria a tradição dos apóstolos que foi toda escrita no Novo Testamento, e 1 Tm 3,15, que seria a obrigação da Igreja de anunciar a verdade. Mas, por isso não se pode negar que os católicos não estejam firmados na Bíblia para defender o que pregam. Entendem o texto de forma diversa. Que tentem refutar a interpretação católica. 
 


 

domingo, 14 de outubro de 2018

Tiago

O Apóstolo Tiago é um dos mais controversos no que tange à sua identificação, pois na doutrina protestante atual ele é tido como “irmão de Jesus” e, por isso, não pertencente aos doze apóstolos.

Essa questão aparece na importante obra “Apóstolos: verdade bíblica sobre o apostolado” (considerando para este artigo as páginas 101-107), do renomado reverendo Augustus Nicodemos, da Igreja Presbiteriana.
Pode haver duas aproximações importantes: a primeira, levando em conta que Tiago é apóstolo, e a segunda, tendo como premissa que Tiago não é apóstolo.
Para responder ao pastor Augustus, serão testadas as duas, e considerados os seus argumentos.
Um Tiago aparece em Mateus 13,55, entre os irmãos de Jesus (cf. Mt 12,47). O mesmo se encontra em Marcos 6,3. Em Marcos 3,21.31 esses irmãos de Jesus são apresentados como não crendo nEle, pois pensavam que estaria louco.
O mesmo aparece em Lucas 8,19, sem a informação de que os seus o julgavam fora de si.
Em João 7,3-5 é revelado que “nem mesmo os seus irmãos acreditavam nele”. (v. 5)
No mesmo capítulo, em Marcos 3, há a escolha dos doze apóstolos, e na lista há dois apóstolos chamados Tiago. É de se esperar que um deles seja o mesmo que os citados nos textos acima.
No relato, um Tiago é filho de Zebedeu e o outro de Alfeu. Nenhum outro apóstolo, a não ser João, que é irmão de Tiago de Zebedeu, é identificado por meio seus pais. Nem mesmo André, irmão de Pedro, é citado imediatamente a ele (no verso 16), mas vem no verso 18. (cf Mc 3, 16-18)
Nos Atos dos Apóstolos, encontramos Tiago, filho de Zebedeu, morto por Herodes. (Atos 12,2) E no mesmo capítulo, no verso 17, aparece outro Tiago, importante na igreja, pois Pedro pede que o avisem de sua libertação da prisão: “Comunicai-o a Tiago e aos irmãos”. Esse mesmo Tiago é figura de destaque no concílio de Jerusalém, por ser líder da igreja de Jerusalém.
De fato, o Concílio foi composto pelos “apóstolos e anciãos", que em grego é “ἀποστόλους καὶ πρεσβυτέρους” “apostolous kai presbyterous”, ou seja, a tradição literal seria “apóstolos e presbíteros”.
Com toda certeza, Tiago está ali no grupo dos apóstolos e não dos presbíteros, e isso é confirmado pela comparação com outros passos bíblicos. Em Atos 21,18 vemos que os anciãos vão reunir-se na casa de Tiago quando da chegada de Paulo. Assim, vemos que ele liderava o grupo de anciãos (presbíteros).
Em Gálatas 1,19 temos: “Dos outros apóstolos não vi mais nenhum, a não ser Tiago, irmão do Senhor”. Está claro por essas palavras de Paulo que Tiago é apóstolo.
No entanto, a dúvida surge por meio de um outro sentido das palavras (εἰ μὴ - se não), como é traduzido em Lucas 4,27: “mas nenhum deles foi limpo senão o sírio Naamã (εἰ μὴ Ναιμὰν)”. Um mas seria possível: “mas somente o Sírio Naamã”. A frase anterior, “mas nenhum deles” é escrita com kai (que significa mais comumente e, em alguns casos pode ser traduzido também por mas): “kai oudeis auton”. Assim, ainda que o “mas” fosse introduzido em Gl 1,19, o sentido, obnubilado por isso, continuaria o memos: “Dos outros apóstolos não vi nenhum, mas Tiago o irmão do Senhor”.
Entretanto, a tradução “senão” é a mais comum, e que está de acordo com as palavras de Paulo e o papel de Tiago nas Escrituras, como um dos doze apóstolos de Jesus. A tradução “mas” é possível, mas a menos possível das duas. E ficará menos ainda quando outras passagens lançarem luz sobre essa de Gálatas 1,19.
Aprofundando o sentido o texto, vê-se que as palavras ei me não seriam necessária se Tiago não fosse apóstolo. Seria dispensável falar de Tiago aí.
Por exemplo, se Paulo não tivesse encontrado nenhum dos demais apóstolos, ele poderia ter dito: “Dos outros apóstolos não vi nenhum”, não citando Tiago.
Essa foi a primeira vez que São Paulo foi a Jerusalém, sendo apresentado por Barnabé: “apresentando-o aos apóstolos (pros tous apostolous)” (Atos 9,27). Dessa forma, a passagem refere-se a Pedro e Tiago como APÓSTOLOS. Confira isso nesse  artigo.
Em Gálatas 1,19 o mesmo sentido outra vez. Em 1 Coríntios 15,5-9 o faz mais uma vez.  De fato, em 1 Coríntios 15, 5-9, São Paulo lista uma série de aparições de Jesus. Jesus aparece:
 Versículo 5:
1º - a Cefas,
2º - aos Doze,
 
Versículo 6:
3º - a mais de quinhentos irmãos,
 
Versículo 7:
4º - a Tiago,
5º - a todos os apóstolos,
6º - a Paulo.
Temos que Tiago é distinto do outro Tiago filho de Zebedeu já na lista dos doze apóstolos. Ele teve papel de liderança nos primeiros dias da Igreja de Jerusalém, o que não seria esperado de alguém que passou a vida inteira de Jesus na terra como “incrédulo”. Ele foi chamado de apóstolo em Atos, Gálatas e 1 Coríntios.
Outros fatos ainda podem ser lembrados, como a sua presença constante na oração depois que Jesus subiu aos céus, antes de Pentecostes, sua posição de coluna da Igreja, evidenciando um apostolado maior (ou precedente)    que o de Paulo, como fica claro em Gálatas 2,9. As passagens não deixam dúvidas.
No entanto, o reverendo Augustus entende que há dúvidas. Ele concorda que “todos os apóstolos” é uma referência aos “doze”. Afirma que Paulo “parece” ter considerado Tiago como apóstolo em Gl 1,19 e aqui, em 1 Cor 15, e afirma que a interpretação é difícil nessa passagem, por motivos da tradução acima analisada.
Ele utiliza de uma interpretação, que concorda em linhas gerais, com que Tiago, sendo líder em Jerusalém, estaria em um nível maior que os presbíteros e menor que os apóstolos, chamando-o de “homem apostólico”.
No entanto, se Tiago fosse esse homem apostólico, como conceituado, seria bispo no sentido de sucessor dos apóstolos. Mas, isso não ocorre senão mais tarde, pois de início os próprios apóstolos eram os líderes máximos, levando até a plenitude a revelação. Não seria possível que um não-apóstolo fosse líder cristão de Jerusalém, que tivesse papel importante no primeiro concílio, se ele não fosse apóstolo, e inspirado. É suficiente notar que Lucas (evangelista, portanto inspirado) e Marcos (evangelista, portanto inspirado), mas não apóstolos, e Silas e Barnabé não desempenharam funções tão importantes nesses primeiros dias da Igreja, como fizeram Timóteo e Tito anos mais tarde.
Então, se é aceito que Tiago é apóstolo, tudo fica mais claro e natural. Do contrário, se o coloca como não pertencente ao número dos doze, então todas essas passagens passam a ter um significado ambíguo, obscuro, duvidoso, incerto, difícil, e assim, considerar-se que Tiago era: um irmão de Jesus, incrédulo, que talvez tenha sido convertido por Jesus após a ressurreição (uma suposição), e se tornado líder da Igreja em Jerusalém (algo pouco provável), escritor do Novo Testamento. Tudo isso éuma  opinião que funda-se em:

1)   Uma tradução pouco provável, diante do contexto da passagem bíblica.

2)   Uma figura não condizente com as evidências que a figura de Tiago possuem no Novo Testamento

3)   Uma negação do sentido claro de todas as passagens estudadas, (sentido claro ou pelo menos aparente, conforme reconhece o autor).

Quando se leva em conta que Tiago é apóstolo todas as passagens são naturalmente entendidas. Quando a tese de que Tiago não é apóstolo é testada, as passagens precisam de elucidações, que forçam seu sentido natural.

Portanto, é preciso concluir com certeza: Tiago, líder em Jerusalém (cf. Atos 12,17), uma das colunas da Igreja (cf. Gálatas 2,9), foi um apóstolo do grupo dos Doze.

Gledson Meireles.

sábado, 13 de outubro de 2018

Timóteo e Tito: Delegados?

Em seu livro Apóstolos: verdade bíblica sobre o apostolado, capítulo 9, o reverendo Augustus afirma que Timóteo foi enviado por Paulo até Éfeso como delegado apostólico, tinha um ministério temporário, e que tratou de questões emergenciais, pois não tinha residência fixa, sendo um itinerante. Para essa conclusão, os versículos mais próximos foram Tm 3,14-15 e 4,13:

Estas coisas te escrevo, mas espero ir visitar-te muito em breve. Todavia, se eu tardar, quero que saibas como deves porta-te na casa de Deus, que é a Igreja de Deus vivo, coluna e sustentáculo da verdade. (1 Tm 3,14-15)

Enquanto eu não chegar, aplica-te à leitura, à exortação, ao ensino. (1 Tm 4,13)

Ele interpreta essas passagens como que evidentes e claras do ministério efêmero de Timóteo, pois dizem que logo São Paulo iria vê-lo, e se demorasse São Timóteo deveria cuidar da igreja conforme as normas já comunicadas, e que tinha certas coisas a fazer até que Paulo chegasse.

No entanto, as epístolas em geral apresentam o ministério vitalício de Timóteo, e do seu papel tanto subordinado a Paulo como superior à igreja de Éfeso. Portanto, como bispo. Se sua função ali era temporária, e isso poderia ser uma interpretação plausível, não o era o seu ministério. Essa constatação transparece no teor geral das duas cartas.

Em 1 Tm 5,22 ele é admoestado a não impor as mãos apressadamente. Não se trata de envio, mas de ordenação ministerial. Isso supõe a gravidade do ministério.

Aliás, mesmo as viúvas que faziam votos de permanecer no estado de viuvez e servir à igreja, eram instadas a permanecer nesse estado ou então sua abjuração era tida como traição ao Senhor Jesus.

Por isso, São Paulo era favorável ao casamento das viúvas mais jovens, para evitar escândalos. Tratava-se, portanto, de um voto vitalício. Se assim eram os votos das viúvas, imagina o caso do ministério episcopal!

Assim, Timóteo e Tito eram bispos, estavam acima dos presbíteros, pois ordenados por Paulo, que era apóstolo. E os apóstolos foram ordenados pelo próprio Senhor Jesus Cristo. Por isso, o termo bispo ficou tecnicamente restrito ao superior ao presbitério, e o de presbítero ao membro do presbitério, subordinado ao bispo.

De fato, as obrigações de Timóteo incluíam ordenar presbíteros. Isso não quer dizer que não pudessem ser os presbíteros apontados pela igreja local, para depois receber a imposição das mãos, no rito de ordenação, de Timóteo, que foi para isso enviado por Paulo.

Por isso, afirmar que Timóteo não escolhia presbíteros como quisesse, mas estava no lugar como de fiscal, para assegurar nomeações segundo as regras estabelecidas, não é um argumento que contraria o fato de que Timóteo era quem ordenava os presbíteros de Éfeso.

A questão de que os termos bispos e presbíteros eram usados para as mesmas pessoas não muda o fato de que havia diferença de funções, como atestam os ministérios de Timóteo e Tito obre os presbíteros.

Se não é claro que Timóteo foi bispo, ainda menos que tenha sido mero delegado ou enviado apostólico. Fiquemos, portanto, com a primeira alternativa.

O reverendo defende a tese de que o modelo apostólico estava chegando ao fim, e que Timóteo estava na transição desse modelo para o de colegiado. Assim, ele seria simples delegado de Paulo para uma missão específica e emergencial, mas que tinha o mesmo grau hierárquico que os demais presbíteros de que fala a Bíblia.

Tudo isso não está de acordo com o contexto das epístolas, que foi reconhecido pelo próprio reverendo como, pelo menos, deixando a imagem de que Timóteo e Tito fossem superiores aos presbíteros e inferiores a Paulo no grau hierárquico. Pois de fato é isso mesmo.

E o que dizer dos escritos pós-apostólicos, que mostram três graus na hierarquia, e que afirmam que Timóteo foi realmente bispo, sucessor de Paulo? Para o autor, isso não prova nada. Por quê?

Porque os escritos históricos, ainda que não controvertidos, que não apresentem nada contrário à fé, que não contradigam, por exemplo, que Timóteo tenha sido superior ao presbitério de Éfeso, mas que comprovem que isso de fato ocorreu, ainda assim, por meio de outras interpretações, que não estão de acordo com os escritos dos Padres da Igreja, essas interpretações são acatadas, e o testemunho patrístico, nesse caso, descartado. Por quê? Porque nesse modelo de interpretação, a força de argumento histórico é secundária. Por quê? Porque os pais da Igreja nem sempre foram fieis ao ensino apostólico.

Está percebendo que, por meio da dúvida está sendo estabelecida uma doutrina? Essa é a conclusão a que se pode chegar. Aliás, ela vem de uma interpretação, que em primeiro lugar não está totalmente sólida, mas que tem suas “probabilidades”, segundo o contexto bíblico, e contradiz certos aspectos do mesmo, e que em segundo lugar não encontra respaldo histórico.

Ainda assim, é a interpretação acolhida, já que o respaldo histórico é secundário, porque às vezes não reflete a verdade. Se fosse assim, poder-se-ia mudar tudo! Felizmente não é.

Por isso, a interpretação dos protestantes reformados, e reconhecida pelo reverendo Augustus, é que Timóteo não recebeu a imposição das mãos em 1 Tm 4,14 e 2 Tm 1,6 como ordenação ao ministério, mas que foi apenas uma imposição para “separá-lo para a obra de Deus”, como foi feito com Paulo em Atos 13,1-3. Ele estava apenas indo a uma missão, e a imposição das mãos ali era para prepará-lo para a obra de evangelização. (cf. p. 179)

As passagens mostram que o presbitério impôs as mãos sobre Paulo. Naquele momento ele ouviu profecias a seu respeito, sobre seu carisma. Também sabe-se que Paulo impôs as mãos sobre Timóteo. Da exegese desses versículos pode-se dizer duas coisas: ou trata-se de uma mesma ocasião, em que Paulo e o grupo de bispos impuseram as mãos na ordenação de Timóteo, ou pode-se afirmar também que Paulo ordenou Timóteo, e que quando da sua missão em Éfeso o grupo de presbíteros impôs as mãos sobre ele, quando Paulo o havia enviado.

O que fica claro pelas cartas é que a imposição das mãos de que trata todo o contexto não é o de envio, mas o de ordenação ministerial, e que Atos 13,1-3 não conta na explicação do sentido das imposições de mãos em 1 e 2 Timóteo.

Ainda, essa é corroborada pela tradição cristã, como sabido, que assim é comprovação da interpretação de sempre, ligando ao tempo apostólico.

Quanto à interpretação do reverendo, essa supõe uma probabilidade de que a imposição das mãos sobre Timóteo a) não tratou-se de ordenação. Contudo, isso não constitui certeza, mas apenas algo provável. Mais: os escritos dos Padres da Igreja, que desmentem essa interpretação, são tidos como secundários, ainda que concorde com a interpretação tradicional não são aceitos como autoridade, por possivelmente estarem errados, e por isso supõe-se que estão, deixando assim a leitura tradicional.

Então, mesmo que Timóteo que:

1)   teve autoridade de constituir presbíteros

2)   cuidou para que os presbíteros recebessem justos salários

3)   julgou denúncias contra eles

4)   tinha autoridade de aplicar disciplina

5)   e de treinar homens para transmitir o evangelho

como o próprio autor admite, e, que a imposição das mãos nas epístolas evidenciam a ordenação ministerial, ainda assim, com tudo isso, que está em conformidade com o papel de bispo, e que está comprovado pela história e tradição da Igreja, ainda assim prefere-se ver nessas passagens apenas que Timóteo e Tito foram simplesmente delegados e enviados apostólicos em missão temporária.

Tem-se aqui um exemplo de interpretação particular, que consagrou-se na tradição reformada.

Gledson Meireles.

sexta-feira, 12 de outubro de 2018

O que é a Igreja? Qual o valor da tradição?

Uma reflexão sobre o conceito de Igreja e do papel da tradição apostólica, a partir do Livro: Pilares da Fé. FERREIRA, Franklin. Pilares da fé: a atualidade da mensagem da Reforma. São Paulo: Vida Nova, 2017, do prefácio ao capítulo 1.
O intuito é despertar interesse desses tópicos e gerar discussão com o autor e ampliar o conhecimento do tema.

No prefácio do livro Pilares da Fé, do pastor batista Franklin Ferreira, o seu prefaciador, presbítero da Igreja Presbiteriana do Brasil, fala da obra de Deus em preparar a Reforma, em Sua providência em esfacelar o poder da Igreja Católica Apostólica Romana, preparando o terreno para o grito de Lutero, e garantindo a promessa de que as portas do inferno não prevalecerão contra a Igreja, ou em suas palavras, “não impediriam a marcha vitoriosa da Igreja”, citando o texto de Mt 16.17,18.

É a perspectiva dos protestantes, em olhar para a Igreja Católica pelo lado de fora, e ver nela um obstáculo para a reforma, e não o lugar da própria reforma. Nesse sentido, o que faz real diferença é a definição de Igreja, sempre escrita com letra minúscula “igreja”, e geralmente preferida no plural (igrejas) quando tratando das comunidades cristãs que aparecem no Novo Testamento e espalhadas em várias localidades do mundo.

O leitor poderia começar por questionar esse sentido espiritual de Igreja e tentar ver onde estava a Igreja de Jesus à qual se referem os protestantes quando a reforma começou. Segundo afirmam, pode-se dizer que a Igreja é o ajuntamento dos salvos de todos os tempos, "o número inteiro dos eleitos", como afirma a Confissão de Fé de Westminster, independentemente de onde estiverem, de qual denominação cristã são membros. Dessa forma, não vendo a instituição como a Igreja, pode-se afirmar que a “igreja” nessa definição seria composta por indivíduos dentro do Catolicismo, e de outros vindos de grupos que se opunham à Igreja Católica, como o dos valdenses, que ainda existiam no século 16, e etc., de forma que a Igreja seria uma espécie de grupo indefinido, espalhado por todos grupos que saíam da Igreja Católica, e esse é o ponto alto do qual a definição parece tomar sua forma, mas incluindo membros cristãos católicos que, como Martinho Lutero, puseram-se em algum momento contra a sua Igreja.

É uma definição eminentemente anti-católica, visto que quando um protestante fala de “igreja”, está afirmando em linhas gerais e bem compreendidas algo relativo às igrejas da Reforma Protestante, ou seja, ao Protestantismo de raiz histórica começado nos tempos de Lutero, Calvino, Zuínglio. Não está tratando da Igreja Católica.

Para melhor entender isso, essa forma de pensar não inclui expressamente a Igreja Católica, mas inclui todas as demais denominações do Protestantismo tradicional, não em sua forma visível, como denominação, mas como lugares em que os salvos estão. Trata-se de uma forma velada de falar da Igreja Protestante como sendo o conjunto de igrejas protestantes históricas, pois para ser considerado membro dessas igrejas a pessoa precisa professar as doutrinas que são básicas do Protestantismo, e que serão tratadas no livro do Franklin, como o próprio título revela: Pilares da Fé. Todas as demais doutrinas devem ser provenientes desses pilares. Ao mesmo tempo, é necessário que ao professar a fé dessa maneira, outras doutrinas que sejam consideradas opostas a esses pontos sejam negadas.

Assim, os membros dessas igrejas, ainda que não com total identidade de fé, podem visitar outras igrejas da mesma linha doutrinária, dando o testemunho de uma certa unidade, mas que não se fundem em uma única igreja visível, pensando apenas que ali estão os cristãos que formam a igreja de Jesus.

Em relação aos cristãos católicos, os protestantes pensam que os mesmos devem sair do Catolicismo, e que se lessem a Bíblia não continuariam católicos, e que os católicos não compreendem as Escrituras, por não serem convertidos, que nenhum protestante torna-se católico pela leitura da Bíblia, e coisas dessa natureza. Assim, ao falar de igreja estão pensando de forma categórica em membros de igrejas protestantes.

Em outras palavras, mais claras e acertadas, porque usadas pelos próprios protestantes, o que foi escrito acima é apresentado pelo luterano Marcel van Hattem como “diferentes – e verdadeiras – igrejas protestantes”. É justamente essa a visão dos protestantes: há igrejas protestantes verdadeiras, que são aquelas que fazem parte do grupo que tentei focar acima.

O livro não tratará de daquilo que é “controvertido ou não resolvido” entre as próprias igrejas protestantes, o que os cristãos católicos consideram as divisões do protestantismo. Assim, a obra terá como tema as doutrinas centrais, fundamentais, básicas, comuns a todas as igrejas consideradas pelos protestantes históricos como verdadeiras igrejas protestantes.

Na introdução, o autor fala do início da Reforma, em 31 de outubro de 1517, e do seu fim, por volta de 1550 a 1600. Esse último é um dado importante, já que é de reconhecimento de erudito protestante, que está ente aqueles que defendem a linha original ou ortodoxa da Reforma Protestante. Refere-se a um tempo em que os fundamentos reformados atingiram seu ápice suficiente, dando então lugar à estabilização e continuidade da sua influência na nova igreja, evidentemente composta em sua totalidade de várias igrejas e credos, o Protestantismo.

Importante a explicação sobre as duas alas principais da Reforma, aquela magisterial e a outra radical. A primeira é composta pelos “evangélicos”, chefiados Lutero, Melâncton e Chemnitz, outra, dos “reformados”, por Zuínglio, Bucer, Calvino, Knox, Bullinger e Gaspar Oleviano e a dos “anglicanos”, por Tyndale, Cranmer e Perkins.

Dos chamados pelo autor como compondo a ala dos radicais, estão Greber, Hubmaier, Miguel Sattler e Meno Simons. Certamente esses são categorizados por não afastar-se das doutrinas básicas defendidas pelo grupo magisterial.

Com relação à Reforma do Concílio de Trento, que continuou no seio da Igreja Católica, pois os outros reformadores a deixaram, os nomes citados são o cardeal Caetano, Colet, Contarini, Inácio de Loyola, Erasmo de Roterdã e Nicolau de Lira.

A citação de Lutero contra o apelativo “luterano” dado aos seus seguidores, traz a informação de que os papistas tem nome partidário. Mas, parece que eram (e o são hoje) os adversários que gostavam de chamar os cristãos católicos de “papistas”, segundo costume do próprio Lutero, como testemunha a própria citação. Nunca um católico considerou-se, reconheceu, aceitou, o nome “papista”.

É interessante, o que o autor mostra: o nome calvinismo foi dado pelos luteranos, e logo foi de uso geral. Ainda que tenha, por certo, almejado passar o sentimento de crítica e estigma por meio do título, ele é aceito por tratar-se de uma verdade. É certo, porém, que precisou de adequação do conceito, pois não é aceito como uma doutrina de João Calvino, como se o mesmo a tivesse feito por interpretação particular, mas como a interpretação que redescobriu doutrinas antes obnubiladas com o tempo. Mas, como mostra o autor, o termo reformado é preferido. Isso é importante já que o mesmo conceito está expresso por outro reconhecido.

Pelo que se depreende do termo, ele significa uma reforma doutrinal que tende a fazer frente à doutrina católica, entendendo que tal reforma é recuperação da verdadeira fé, a “doutrina correta”.

É, como o autor afirma, a “fiel tradição da Reforma”, mas um resumo calcado e baseado na Escritura. Para os desavisados, é preciso saber que os protestantes possuem uma tradição. Não a têm expressamente como regra para a fé, mas essa tradição é de fato regra de fé praticamente idêntica às Escrituras, quando encontra o consenso almejado, como aqui será mostrado, oportunamente, ao passo que enveredamos por cada argumentação do autor sobre as doutrinas defendidas pelos protestantes. Essa é a razão prática da tradição no Protestantismo, que não o é em teoria, sendo um interessante paradoxo.

Teoricamente, no Protestantismo a tradição é uma instância falível, e a igreja é semper reformanda, que deve ser julgada, criticada, ajustada pela Bíbilia, única regra infalível de fé e prática. Contudo, que protestante se colocaria contra o entendimento dos cinco solas, como apresentados nessa obra, e por meio da uma leitura das Escrituras pusesse a atacar pontos nevrálgicos desse entendimento doutrinal fundamental do Protestantismo, que é entendido como fundamentado totalmente nas Escrituras Sagradas, e continuasse a ser igualmente reconhecido como legítimo protestante, tendo o mesmo espaço para pregar suas doutrinas que é garantido por outros que estão de acordo quanto a essa pacífica tradição da reforma?  É inegável que o mesmo seria logo reconhecido como herege.

Desse modo, esse consenso resumido nesses pontos doutrinais tem servido de bússola no entendimento doutrinal dos protestantes, como uma bússola na identificação da doutrina correta, uma expressão das doutrinas da Bíblia, e, por isso, reflete na tradição o caráter bíblico da infalibilidade.


Capitulo 1

O autor afirma que os debates estão tornando-se cada vez mais frequentes, e cita Grant Osborne que escreve “Não sabemos ao certo como determinar um dogma...”. Essa falta de conhecimento, essa dificuldade, está relacionado certamente com o que foi criticado acima, no texto da introdução, e é relativa à tradição.
Embora tenha força praticamente-infalível, no protestantismo ela não o é. Ela não é quase infalível: porque isso equivale a dizer que não é infalível. O que fica evidente é sua força na prática da interpretação bíblica. Quando os intérpretes prescindem dela, encontram a incapacidade, a dificuldade, a desorientação, a incerteza em determinar as verdades da fé.

No entanto, o autor afirma que a falta de referência à Bíblia é o que caracteriza esses debate, e isso o espanta. As revisões doutrinais, as reformas que ocorrem, todas trazem novidades. Mas o autor menciona aquelas que inovam, que introduzem rupturas com a tradição. Critica as opiniões pessoais nessas reformas. Ele não o faz em defesa da tradição, como se a mesma não pudesse ser reformada, pois fala como protestante. Porém, sua abordagem revela a força da tradição acima apontada, e sua relação com a Bíblia. Ele ressalta a importância de levar os cristãos à Bíblia. Em outras palavras, parece que o autor afirma, ou melhor, pode-se inferir das palavras do autor, que se essas reformas fossem realmente bíblicas, não contrariariam os ensinos (incluindo os citados por ele) da tradição.

Exemplo disso são os próprios fundamentalistas, que apegavam-se às Escrituras, muitas vezes ingenuamente, como afirma o autor, o que significa não ser suficiente ir à Bíblia para encontrar a verdade, para determinar a correção de cada doutrina. Mas o autor mostra o valor da Bíblia nesses debates teológicos, o que falta hoje entre os protestantes.

A crítica contra líderes neopentecostais que se firmam no magister dixit, na autoridade de teologias do século 19, é outra alusão ao sentido e importância da tradição. Em nota de rodapé, o autor explica o sentido da expressão, em que se evoca um mestre com autoridade inquestionável, e lembra algo relativo à tradição católica na Idade Média. O diferencial é que esses líderes, como mostra o próprio autor, estão no magister dixit muito recente. Assim, não seguem a tradição reformada, como anteriormente aludida. É necessário notar essas diferenças.

A citação de Gl 1,8-9 é oportuna. Mais oportuno ainda, seria lembrar que São Paulo já exorta e condena heresias que apareciam em seu tempo, e que admoesta a continuar no evangelho que ele e os outros apóstolos pregaram. Dessa forma, desde então, não deve haver mudanças doutrinais. A tradição, portanto, tem início com os apóstolos, e ali com o Senhor Jesus Cristo, tem início o magister dixit, passando aos apóstolos e chegando aos dias atuais. É mesmo um absurdo concordar com tradições anti-bíblicas, extra-bíblicas, inovadoras, de séculos tão recentes. Mas é preciso considerar a tradição, e, no caso dos protestantes, pensar a respeito de sua possível infalibilidade.

É como está na citação do Franklin, de Scott M. Manetsch, que os protestantes devem “recuperar as suas raízes históricas”. Devem ler a Bíblia, devem continuar a tê-la como regra de fé, mas isso não supõe, nunca supôs, deixar a tradição. Pensem, protestantes, no valor da tradição. Até onde vai sua importância, e, o mais importante, a sua autoridade?
Gledson Meireles.

quarta-feira, 10 de outubro de 2018

Rev. Augustus Nicodemus sobre o apóstolo Pedro: incompreensões

Sabemos que Jesus deu um tratamento especial relativo ao apóstolo São Pedro, e que ele aparece de forma ressaltada nos relatos evangélicos, que revelam liderança, chefia. No entanto, ainda assim, os protestantes questionam como Pedro era pensado. O reverendo Augustus Nicodemus introduz o seguinte: como Pedro era entendido o papel de Pedro?

1)   Da parte do próprio Pedro

2)   Da parte dos demais apóstolos

3)   Da parte das igrejas da época em que Pedro viveu

Em outras palavras, como Pedro entendia o seu ministério diante dos outros apóstolos e diante da Igreja em seu tempo, ou seja, diante das igrejas locais em geral no século I, e como os apóstolos e as igrejas concebiam o papel de Pedro.

Ao questionamento número um, bem como aos demais, podemos indicar Atos 15, 7, onde Pedro mostra que ele foi designado por Deus para pregar o evangelho aos judeus e gentios. Isso já aparenta um papel especial, pois trata-se de um líder cristão que tem uma missão singular diante de todos, tanto dos convertidos que provêm de Israel quanto dos que são oriundos do paganismo. Temos assim uma indicação de que sabia do seu papel de líder:

Ao fim de uma grande discussão, Pedro levantou-se e lhes disse: “Irmãos, vós sabeis que já há muito tempo Deus me escolheu dentre vós, para que da minha boca os pagãos ouvissem a palavra do Evangelho”.

Esse texto já indica tal papel, não se tratando por si só de prova cabal. Alguém poderia lembrar-se do ministério de Paulo entre os gentios e supor que era líder também, igual a Pedro. No entanto, as Escrituras não supõe tal papel, pois que Pedro e outros apóstolos seguiram com a evangelização dos judeus enquanto que Paulo e os seus colaboradores seguiram entre os gentios, indicando os diferentes carismas e seu pacífico entendimento no grupo apostólico. O caso de Pedro aparece de forma singular.

Pelo texto sagrado vemos que os judeus já conheciam o papel de Pedro para anunciar o evangelho de salvação aos gentios. Era uma doutrina conhecida por todos os cristãos. E, aliás, foi ele também o que evangelizou os judeus por primeiro.

Relativa à segunda questão, mais especificamente, a indicação de autoridade vem do mesmo fato, incluso acima, em Atos 15,7, onde todos conheciam a missão de Pedro para anunciar o evangelho.

A terceira questão igualmente tem nessa passagem um início de elucidação, pois sendo um dado de fé de que Pedro recebeu do Senhor o ministério para evangelizar os pagãos, assim como havia feito em relação aos judeus, supõe-se certamente uma posição de autoridade especial e universal na Igreja.

Diante disso, podemos continuar na análise do pastor Augustus sobre os temas:

1)   Pedro era o cabeça da Igreja?

2)   Pedro exercia primazia entre os seus colegas [os apóstolos] e sobre os cristãos?

3)   Pedro era o canal pelo qual Deus falava infalivelmente?

A tudo isso o pastor Augustus nega. E, enquanto trata essa questão, podemos vislumbrar um pouco de sua incompreensão do que seja o caráter da infalibilidade. Isso aprece onde é citado 2 Pedro 3,15-16, onde Pedro fala das cartas de Paulo como inspiradas, para afirmar que Pedro não se julgava o único a receber revelação de Deus.

Contudo, isso não afeta o dogma da infalibilidade, que está em alto nível, tanto individual como coorporativo, e não é diretamente atrelado ao dom da inspiração, que é muito maior e essencialmente diverso. São Pedro era inspirado, mas também o eram os demais apóstolos, não havendo nisso nenhuma restrição dentro do grupo do seus colegas apóstolos. Todos eram infalíveis doutrinariamente.

A questão da primazia e da infalibilidade é um tanto diversa, já que foi entendida na Igreja como um meio de salvaguardar o depósito da fé, e não de fabricar novas revelações, a forma de iluminar verdades já cridas, e não um jeito de continuar a revelação. Pedro podia muito bem estar cônscio de seu papel de primaz na Igreja primitiva, e ainda assim reconhecer o dom da inspiração no grupo apostólico, da mesma forma que os apóstolos sabiam serem inspirados, mas conheciam o ponto singular de Pedro ser o porta-voz primeiro, antes deles, da mensagem de salvação aos pagãos.

De fato, a inspiração e a infalibilidade estão entrelaçados, pois os apóstolos eram inspirados e infalíveis em sua doutrina. Porém, na infalibilidade não há esse modo de inspiração, que terminou com a morte do último apóstolo, mas é um auxílio de Deus em vista da salvação de toda a Igreja, para que uma verdade não seja perdida, nem qualquer erro seja acrescentado ao credo cristão.

Quando o reverendo Augustus argumenta contra a infalibilidade papal por meio do exemplo da inspiração dos apóstolos, em que Pedro reconhece ser um dos canais pelos quais Deus falava ao Seu povo, isso apenas demonstra o quão importante é ir para águas mais profundas (cf. Lc 5, 4, ao largo, ao profundo - bathos), e entender que que a doutrina à qual se opõe não é exatamente como pensa ser. E isso pode ser alcançado pela busca da verdade,  e através de diálogo.

Ainda, o reverendo Augustos interpreta 1 Pedro 2,4-8 como a “interpretação final e definitiva” sobre a Pedra de Mateus 16,18, o que definitivamente não é o caso. De fato, Jesus é a Pedra da Igreja em 1Pd 2,4-8, mas Pedro o é em Mt 16,18. Ambos os contextos devem ser lidos e entendidos internamente, e ver-se-á que uma doutrina não colide com a outra.

Portanto, a Igreja no século I entendia Pedro como chefe, mas não ao modo pensado pelo reverendo Augustus. Pedro era pedra de outro modo, o ponto visível de unidade por meio de seu ministério especial de chefe.

Outro ponto que é importante assinalar é que a morte de Pedro não é descrita nos evangelhos, e assim não há qualquer menção da Igreja agindo para encontrar “um substituto para Pedro”. Isso de fato ocorreu, por volta dos anos 67-68, mas encontramos essas narrações em documentos históricos.

O “substituto” existiu, e veio logo após Pedro ser martirizado. Mas não se tratou de substituto como um novo apóstolo, com prerrogativas iguais às recebidas por Pedro, com inspiração e infalibilidade doutrinal idênticas, e etc. Nada disso, reverendo Augustus Nicodemus.

O sucessor, ou substituto, de Pedro, foi realmente aquele que veio para continuar a missão de pregação do evangelho, interpretando e aplicando “o legado apostólico”. Se a isso chamamos sucessor, substituto, ou qualquer outro título que venha a ser empregado, não importa, já que o sentido, o conceito, está apresentado. O conceito concorda com o que o reverendo expôs.

Agora, se com isso o senhor quis refutar a suposta doutrina de que o papa é a continuação do apostolado do Novo Testamente nos moldes dos apóstolos de Jesus, na pessoa de Pedro, então o ataque a esse ponto foi desnecessário. Espero mais oportunidade de diálogo.

Gledson Meireles.

Fonte: LOPES, Augustus Nicodemos. Apóstolos, página 59.