terça-feira, 28 de julho de 2020

Livre-arbítrio: o faraó desobedece a Deus

Êxodo 9,7

O faraó era obstinado, e não concedia liberdade ao Povo. Para puni-lo, Deus endurecia, ainda mais, o seu coração (v. 12). Está escrito: “O Senhor endureceu o coração do faraó, que, como o Senhor havia predito, não ouviu Moisés e Aarão”.

Isso não feria seu livre-arbítrio. Estamos vendo o motivo pelo qual o Senhor fazia com que o faraó ficasse com o coração endurecido, pois ele era desobediente, não ouvia Moisés e Aarão. Isso quer dizer que o coração do faraó era endurecido desde o início, mas podia deixar de sê-lo se ele ouvisse as palavras de Moisés e Aarão, e obedecesse, assim, a Deus.

No entanto, pelo contrário, o faraó obstinava-se. Como Deus conhecia essa realidade desde o início, Ele castigou o faraó de muitas formas, e uma delas foi endurecê-lo ainda mais, mandando as pragas, os castigos de todos os tipos.

No v. 27 o faraó reconhece que pecou, e também que Deus é justo. Porém, não havia temor de Deus nele, como afirma Moisés no v. 30. Uma prova de que o endurecimento do coração do faraó não tinha a ver com sua salvação, é também que os seus servos também são denunciados por Moisés como não tendo o temor do Senhor Iahweh. Não estavam predestinados para agir assim, mas agiam por culpa própria.

Outra grande constatação disso é que o faraó estava recebendo esses castigos de Deus, e ainda assim pôde reconhecer o seu pecado. Além disso, ele reconheceu também o poder e a justiça de Deus, e pediu a Moisés que rogasse a Deus para que a praga cessasse. É tremenda essa verdade.

O faraó estava com o coração mau, e Deus o puniu deixando-o na maldade, endurecendo ainda mais, e castigando todo o reino egípcio. Porém, ainda que tudo isso estivesse ocorrendo, acontece que o faraó reconhece as grandezas de Deus, e sabe que estava agindo contra a vontade de Deus. Ele amolece seu coração diante de tudo o que estava acontecendo. O livre-arbítrio do faraó estava preservado. Note que Deus previu e disse que o faraó faria tudo aquilo. Ele não fez o faraó agir mal, mas soube que ele iria agir mal.

Mas, tristemente, assim que Moisés roga a Deus e as pragas cessam, ele novamente “continuou a pecar e endureceu seu coração” (v. 34). Ele viu o bem que Deu fez e pecou assim mesmo, pois voltava à sua maldade de antes. Tanto o faraó com os seus súditos endureceram seus corações, aprisionando os israelitas.

Em sentido metafísico não se pode adotar princípios contrários ao que está revelado. Deus não endurecia o coração do faraó em primeiro lugar, como se isso estive no Seu decreto, mas fazia isso como punição. O faraó foi desobediente, merecendo esse castigo.

Obviamente a doutrina reformada concorda com essa posição, mas afirma que o faraó fazia tudo isso por ter uma natureza corrupta, e não poderia agir senão dessa forma, já que não tinha a graça de Deus, e nem poderia ter, e estava predestinado a agir como agia. Ainda, afirma que mesmo essa predeterminação das suas ações não o tornava irresponsável, mas continuava a manter a responsabilidade por seus pecados. Tudo isso, porém, não está conforme o que lemos em todo o contexto.

A verdade é que o faraó pecou livremente, sem estar determinando, e Deus o punia com o endurecimento do seu coração e com pragas, mas mesmo assim ele podia rever sua posição e converter-se. De fato, quase que isso ocorreu, como visto acima, mas logo que as coisas melhoraram no Egito ele volta a pecar, endurece o coração, e Deus continua sua obra de salvação. O reformado dirá que ele não converteu-se porque não podia, e estava predestinado a isso. Mais uma vez, essa asserção não provem do contexto bíblico.

Claramente todos esses fatos eram conhecidos por Deus, não como causador deles, mas mostram que Deus deixou a criação seguir o livre-arbítrio que recebeu, ofereceu oportunidades para a conversão, e assim suas ações eram conhecidas pelo Senhor. Desse modo, Deus agia para libertar os hebreus usando mesmo a maldade dos homens, pois Ele tira o bem até mesmo do mal.
 
Gledson Meireles.

segunda-feira, 27 de julho de 2020

A soberania de Deus e o livre-arbítrio humano

Êxodo 1,19-20

No livro de Êxodos lemos a respeito de duas mulheres, Sefra e Fua, que eram parteiras do povo hebreu, e não fizeram o que o faraó ordenou (Ex 1,15) porque elas temiam a Deus (v. 17).

Por isso, Deus as abençoou. As parteiras desobedeceram às ordens do rei do Egito, que mandava matar todos os primogênitos do sexo masculino, e deixaram os meninos hebreus viverem.

Elas mentiram ao rei para conservarem suas vidas, mas por temor a Deus não fizeram mal àquelas criancinhas. Com isso, a Escritura afirma que Deus as beneficiou por sua obediência (v. 21).

O projeto de Deus, de fazer o povo hebreu multiplicar, foi posto em ação através daquela atitude das parteiras. Atitude livre por sinal. E por essa causa, Deus abençoou as famílias de cada uma daquelas mulheres.

Essa passagem é uma das muitíssimas que mostram a Soberania de Deus agindo através do livre-arbítrio das criaturas. A Bíblia não afirma que Deus fez as parteiras agirem daquela forma, mas afirma que por elas terem feito isso, por temor de Deus, o povo cresceu e Deus concedeu a prosperidade a cada uma daquelas parteiras por ter agido em prol do plano divino.

Em sentido metafísico, onde todos os atos humanos são conhecidos por Deus, temos de admitir que Deus sabia da atitude das parteiras, e o Seu plano era salvar Moisés, e com isso salvar dos judeus escravizados no Egito.

Que natureza tem esse conhecimento de Deus? Dirão os reformados que Deus determinou tudo isso, e por isso Ele o conhecia. No entanto, a presciência de Deus explica satisfatoriamente esse fato, e refuta a doutrina acima.

Deus que conhece toda as Suas obras, e sabendo da maldade que viria do uso do livre-arbítrio dado à humanidade, soube que o Faraó promulgaria aquela lei vil, e sabia do bom proceder daquelas mulheres parteiras, de forma a escrever Seu plano libertador levando em conta todas essas ações livres das criaturas. Por isso, a Escritura mostra o Senhor abençoando aquelas mulheres, pois agiram com livre-arbítrio por termo a Deus.

Em uma doutrina determinista extremada que destrói o livre-arbítrio humano dir-se-ia que Deus teria determinado a ação do Faraó, determinado a atitude das parteiras, e tudo ocorreu porque não podia ter ocorrido de outra forma.

Também poderia ser dito, de forma mesmo rígida, que o faraó e as parteiras foram livre agentes, sendo responsáveis por suas escolhas, mas tudo estava determinado por Deus para assim agir, por exemplo, tanto o pecado do faraó quanto a misericórdia das mulheres parteiras.

Ou diria outros que o fato do conhecimento de Deus de todas essas coisas faria de tudo isso um cenário determinado, já que não poderia ocorrer de outra forma que Deus não soubesse, o que deixaria fora o livre-arbítrio.

Essas três objeções não possuem fundamento Bíblico, com ficou claro pelo contexto, pela própria linguagem inspirada, que mostra seres humanos livremente e com motivos livres obedecendo a Deus e recebendo dEle a bênção.

Em primeiro lugar, o texto não supõe que tudo estivesse determinado. Em segundo lugar, conhecer um fato não é determiná-lo. A determinação de um fato se dá na sua realização. O avião acaba de aterrissar em Porto Alegre. É um fato. Não há como ele não ter aterrissado mais, impossível que o fato seja desfeito. No entanto, um observador que viu cinco segundos antes do avião baixar à terra soube que o avião iria aterrissar ali, por uma forte conjectura. No entanto, por melhor que fosse a conjectura ela não poderia determinar que o avião estaria em terra, mas apenas prever o fato.

Ele não podia também prever infalivelmente que o avião desceria ao chão, pois o piloto poderia retomar o vôo inesperadamente e aquilo que parecia ser uma aterrissagem não se concluiria, mas a probabilidade de isso ocorrer seria ínfima demais, a ponto de ser uma certeza na imensa maioria das vezes que a aterrissagem de fato iria ocorrer.

Mas, Deus é infinito e tem conhecimento perfeito, e não meras conjecturas. Deus vê o futuro como vê o presente, e tudo tem nEle a Sua origem, e tudo funciona segundo as leis que Ele estabeleceu, e por isso o Senhor pode conhecer mesmo casos fortuitos.

No entanto, o conhecimento de Deus não é causa das coisas, mas sabendo dos fatos que nascem da Sua criação livre, Ele os pode conhecer infalivelmente sem causá-los, de forma que a realização do fato é pré-conhecida e livre. É infalivelmente pré-conhecida. Não há possibilidade de erro. Deus soube que o avião iria aterrissar ali naquele instante porque o fato era verdadeiro e não podia nunca escapar do Seu conhecimento. Portanto, o conhecimento divino não causou a aterrissagem do avião.

Da mesma forma, o fato do Faraó pensar em legislar para exterminar o povo hebreu não foi determinado por Deus, assim também com a arriscada coragem das parteiras em poupar os meninos que ajudaram a nascer, embora tudo era conhecido por Deus de antemão. Por tudo isso, Deus julgou o Faraó e abençoou as parteiras, por agirem livremente, e serem responsáveis pelas suas atitudes.
 
Gledson Meireles.

sexta-feira, 24 de julho de 2020

A admoestação de Hebreus 10, 26-39


Em Hebreus, capítulo 10, temos um grande ensinamento sobre o sacerdócio de Cristo, o sacrifício salvífico, a nova aliança. Nesse ensino todo, há uma verdade que os cristãos católicos creem, e anunciam, e que tem a ver com a salvação e o perigo de perdê-la pela recusa de continuar seguindo a Cristo, pela deserção da Igreja, pelo pecado mortal.
Isso está claramente ensinado nos versículos 26 a 39, um grande contexto sobre essa verdade.  “Se abandonarmos voluntariamente, já não haverá sacrifício para expiar este pecado”. Eis uma admoestação ao Povo de Deus. Se alguém abandona por sua própria vontade o convívio com Cristo, já não há fora da Igreja nenhum sacrifício capaz de dar o perdão dos pecados. A passagem é cristalina ao afirmar que há possibilidade de sair do convívio com Deus pelo voluntário abandono. É o fiel que pode decidir isso, e não Deus que o afasta.
Continuando essa verdade, o versículo 27 fala do “juízo tremendo e o fogo ardente que há de devorar os rebeldes”. A recusa em continuar é uma rebeldia. Somente por vontade própria, por um coração rebelde, o cristão pode negar a graça. Ainda, o autor compara a transgressão da Lei de Moisés, que era punida com a morte, e afirma que existe pior castigo para quem “calcar aos pés o Filho de Deus”.
Assim, o abandono voluntário, a rebeldia, o calcar o Filho de Deus, significam a mesma coisa, e o castigo é pior que a morte. Com essa afirmação sagrada refuta-se a doutrina que nega o fogo do inferno, afirmando o aniquilamento dos ímpios, pois se o castigo é pior que a pena de morte, infere-se que esse fogo devorador é um castigo espiritual tremendo, e não parece ser temporário. Mas não é o lugar de tratar desse pormenor.
Ainda, o mesmo verso 29 afirma o pecado de “profanar o sangue da aliança, em que foi santificado”. É o cristão que foi santificado pelo sangue de Cristo e volta atrás. “E ultrajar o Espírito Santo, autor da graça”. Calcar os pés a Cristo, profanar Seu sangue, ultrajar o Espírito Santo, é o mesmo pecado mortal. É importante notar que a Escritura afirma que o sangue “em que foi santificado”, no qual foi santificado. Trata-se de verdadeiros cristãos que receberam a salvação, o perdão dos pecados pelo sangue de Jesus, e foram iluminados pelo Espírito Santo, com a graça que dom de Deus.
A passagem inteira mostra que o afastamento dessa bênção salvífica é possível. Continuando, o texto esclarece ainda mais quando diz que “o Senhor julgará o Seu povo”. Não está falando do mundo, dos ímpios, dos incrédulos, dos infiéis, mas do Seu povo. Aqui é refutada a doutrina dispensacionalista de que há a Igreja e o Povo de Deus, que seria somente o judaísmo, como já foi refutado em outra parte ao estudar uma passagem da epístola aos Romanos, pois existe somente o Povo de Deus que é a Igreja. Também não é correto afirmar que nesse tempo a salvação será pelas obras, e por isso há possibilidade de perder a graça salvífica e ser condenado, pois a Escritura fala somente de uma nova aliança, definitiva, sem qualquer mudança de plano salvador.
Essas são tentativas de fugir dos ensinos do texto, já que ele é claro ao afirmar que é possível perder a salvação.
O verso 32 diz: “Lembrai-vos dos dias de outros, logo que fostes iluminados”, o que evidencia a salvação, e o verso 35 fala da necessidade da perseverança “para fazerdes a vontade de Deus e alcançardes os bens prometidos”. Outra vez, trata-se de bens eternos, da salvação. Não há lugar para duas leituras, com se fossem oferecidos bens temporais para um plano, e bens eternos para outro, como quer uma interpretação dispensacionalista.
Nem significa somente galardão pelas obras, distinto da salvação. O contexto mostra que é da salvação que o autor sagrado está falando. E continua, deixando muito claro para o que deixa a fé, e que perde o agrado de Deus, pois contrasta-se a ruína e a salvação. Perder o ânimo, desistir, deixar a fé, para a ruína, ou manter a fé para a salvação. Não poderia afirmar que os que caem na ruína estão salvos como os outros, pois não é uma leitura possível, como quer o dispensacionalismo. Também não significa uma mera aparência de fé, de falsos cristãos, que apostataram aparentemente, pois nada disso é dito no contexto. A passagem é claramente uma admoestação para a Igreja da possibilidade de perder a graça da salvação.
O reformado dirá que a possibilidade apresentada no início é apenas uma retórica, e que o “se a abandonarmos voluntariamente” não pode jamais existir, porque o eleito não abandona nunca, ou se abandona ele volta e persevera. Essa interpretação vem de outra fonte e não do texto sagrado, e contradiz todo o contexto, que é claro por si, com foi mostrado acima. Parece ser irrefutável a interpretação acima.
Com essa verdade, não se nega o dom da perseverança final, não se nega a eleição e a predestinação para a salvação, mas ensina-se que há livre-arbítrio, há possibilidade de cair da graça e perder a maior das bênçãos, que é a salvação, e, portanto, pode haver verdadeiros crentes que voltam atrás e negam a fé.
Gledson Meireles.

quarta-feira, 22 de julho de 2020

O que não procede da fé é pecado: o que isso significa?

Em Romanos 14, 23 está escrito que tudo o que não provem da fé é pecado. Isso tem um significado profundo, mas há uma interpretação que tem levado a erros sérios, que pode levar a verdadeiras heresias, pode-se dizer, e é pregado por pessoas de conhecimento teológico considerável, e de bastante influência.

De fato, não há no texto nada que possa levar a essa direção, mas o texto sem o contexto é um pretexto para a heresia, como afirma ditado muito conhecido.

O texto deu margem a sugerir que pessoas não convertidas a Cristo pecam em tudo o que fazem, ainda que as suas obras sejam humanamente boas. Se tudo o que não provem da fé é pecado, e uma pessoa não tem fé, então tudo o que faz é pecado. O pecado aqui considerado como a fonte de todas as ações. Essa seria uma intepretação da passagem.

No entanto, essa intepretação não tem respaldo do contexto geral da Bíblia. Ainda, a interpretação verdadeira tem que fluir naturalmente, e estar de acordo com a Bíblia. A leitura correta de qualquer passagem bíblica não precisa de explicações que mudem o seu sentido. Essa é uma das características da verdadeira intepretação.

Antes de prosseguir com a exegese do texto, é preciso afirmar que o Concílio de Trento condenou a doutrina semelhante, no decreto sobre a Justificação cânon 25.

Para John Piper, o texto de Hebreus 14,23 apresenta “a mais penetrante e devastadora definição de pecado”. Isso porque ele entende que todas as ações que não estão radicadas na fé, ou, em outras palavras, como ele as usa, que “faltam confiança em Deus”, são pecados. A explicação é um tanto sedutora, quando afirma que as ações boas e morais diante dos homens são nesse caso pecados diante de Deus, que sonda o interior.

Analisando o contexto, Piper afirma que Paulo está “redefinindo o pecado”.

Em outro artigo, sobre o mesmo ponto, tratando-o de forma mais direta, o autor leva em consideração interpretações contrárias à sua, a começar por São João Crisóstomo.

Ele argumenta que o ponto específico tratado nessa passagem revela um ponto universal. Todas as ações fora da fé seriam pecados, citando Rm 4, 20; 1 Cor 10,31; Hb 11, 6. Citando Santo Agostinho, afirma que até as virtudes dos incrédulos são pecados.

Tudo parece fluir de uma lógica equilibrada, a partir de passagens bíblicas. Mas, será mesmo? Tudo o que não procede da fé é pecado. Até mesmo uma boa ação seria pecado, uma ofensa a Deus, merecedora de castigo?

A Bíblia ensina que as ações dos incrédulos, que vivem fora da graça santificante de Deus, e por isso vivem longe de Deus, sabendo que esses não agem em amor a Deus, não têm fé, e não estão no agrado de Deus, pode-se afirmar que a sua vida não é santificada pela graça salvadora, e que suas ações, por melhor que sejam, não possuem mérito para serem premiadas, ou galardoadas. Essa é a verdadeira intepretação da passagem. Por que negar a interpretação de Piper? Porque afirma que todas as ações são pecaminosas, não por estarem contra a Lei de Deus, mas porque não são feitas na fé.

Essa visão confunde a vida de alguém que está fora do reino de Deus com todas as suas ações, mesmo aquelas que estão de acordo com a Lei de Deus. Sabemos que Deus recompensa um bem feito por qualquer pessoa, assim como a chuva cai sobre bons e maus, o que significa que a graça geral de Deus está sobre todos. Portanto, não é correto afirmar que todas as ações dos incrédulos são pecados.

Para refutar essa doutrina com mais robustez, deve-se ter atenção às seguintes razões: o texto é interpretado fora do contexto, partindo de um ponto específico e sugerindo que esse está dentro de um ponto universal. É algo que faz um salto do contexto para algo geral, embora o texto em si não afirme isso, nem o seu contexto.

Ainda, os demais textos que são apresentados para reforçar essa interpretação também não afirmam o que foi concluído. Em Romanos 4, 20 é dito que Abraão foi forte na fé e deu glória a Deus. Afirmar com isso que todos os que não têm fé estão a todo o momento desagradando a Deus com todas as ações é algo que não vem do texto, mas de um princípio criado que está acima dele.

Em 1 Cor 10, 31 ensina que tudo o que o cristão faz deve fazê-lo para a glória de Deus. Isso não está ensinando que todos os incrédulos estão sempre desagradando a Deus em todas as suas práticas, porque não estão dando glória a Deus. Obviamente, suas vidas não agradam a Deus, por suas obras más. Porém, na Escritura não está escrito que todas as suas obras são más, mas aquelas que desagradam a Deus, que não estão de acordo com Sua Lei expressa.

Mais, ainda, em Hebreus 11, 6 está escrito que sem fé é impossível agradar a Deus. Isso quer dizer que os incrédulos não podem agradar a Deus, ter a vida de Deus em si mesmos, e viver de acordo com a Vontade de Deus. Significa, então, que não estão salvos, e que a fé é a raiz para tudo o possa agradar o Senhor. Assim, mais uma vez, não significa que um incrédulo faça algo humanamente bom e seja tido como mal.

Obviamente, o Senhor sonda os corações, e mesmo uma ação boa pode ter uma má intenção, e ser pecado. No entanto, não se pode afirmar biblicamente que todas as ações dos incrédulos sejam pecaminosas e merecedoras da ira de Deus. Isso é algo que o texto não afirma.

Diante de tudo isso, vamos agora para a interpretação correta da passagem. São Paulo escreve que tudo o que não procede da fé é pecado. O contexto afirma que são coisas feitas contra aquilo que a pessoa tem consciência, uma obra que é praticada em oposição a um dado da consciência.

Para ficar mais claro, basta pensar que fé é o mesmo que crença, pois exercer fé é crer. Ter fé é acreditar, é o ato de crer. Dessa forma, tudo o que não provem daquilo que o cristão crê é pecado. O que não provem da crença é pecado. Comer carne com a consciência de estar fazendo algo errado é pecado, porque o que come o faz contra aquilo que ele pensa ser correto.

Já resolvida a questão, outra coisa pode ser adicionada à refutação. De fato, a tradição apostólica afirma que o texto não está tratando de um princípio geral, não é uma definição de pecado, e tem uma esfera limitada de acordo com o que foi explicado acima. Assim é que São João Crisóstomo explica que o texto não se refere a tudo.

O comentário protestante de Ellicott afirma que em Romanos 14, 23 há um princípio geral para esse caso tratado, e afirma que Santo Agostinho errou ao inferir que mesmo as boas ações são pecado. Barnes argumenta que a passagem não ensina que todos os atos de um incrédulo são pecados, embora ele creia nessa doutrina. Afirma que a passagem não trata disso.

Enfim, Santo Tomás tratou da questão e ensinou que o que procede da incredulidade é pecado. Ensina que a razão natural pode direcionar a intenção a bens naturais. Somente a fé direciona ao bem sobrenatural. Por isso, mesmo os que não têm fé podem fazer o bem pela luz da razão, em um nível natural.

A prova bíblica cabal está em Atos 10, 4-31, apresentada por Santo Tomás, em que Cornélio tem suas obras aceitas por Deus, o que não seria possível sem a fé, mesmo que implícita, e ao mesmo tempo refuta a doutrina que toda obra de um incrédulo é pecado. Cornélio era ainda incrédulo, e suas obras não eram pecaminosas em geral.  Ele era um incrédulo em relação ao evangelho, mas não um incrédulo que não possuísse uma fé implícita, que dirigia suas intenções ao bem.

Em consideração a Rm 14, 23, argumentando com 1 Cor 10, 31, Santo Tomás afirma que a relação do fiel com o bem é diferente daquela dos infiéis com o mal. Não há condenação na vida do cristão que tem a fé viva. No entanto, na vida do incrédulo há o bem da natureza. Quando ele age de acordo com a razão sem um fim mal, “ele não peca”, afirma Santo Tomás.

Mas, explica o grande teólogo, o bem que o incrédulo faz não tem mérito diante de Deus, pois não é proveniente da graça. Ele explica que nada é bom sem Deus, nenhum bem é meritório sem a graça, e a melhor virtude é falsa. Fora da graça todo bem praticado contra a fé ou contra a consciência é pecado. Essa é a explicação correta, equilibrada, escriturística.

Essa realidade é um tanto mal compreendida entre os que abraçam o antigo erro de que tudo o que o infiel faz é pecado. A mente e o coração corrompidos não podem agradar a Deus. Isso não quer dizer que nada pode sair de bem, temporalmente falando, sem fins para a vida eterna, de um coração mal. Assim é que os maus podem agir para o bem do mundo, e isso é reconhecimento pela teologia reformada. E isso é o que Santo Tomás está afirmando.

Também, o mérito diante de Deus pelas obras praticadas pelos que têm fé não significa uma salvação por obras, já que as obras em si não contêm nada que possa produzir mérito. Por isso Santo Tomás explica que somente os atos que nascem da graça de Deus, estão envoltos pela graça.

O sentido correto que ajuda a traçar essa linha divisória entre a heresia e a verdade é que a verdade harmoniza-se com a Escritura e com a razão, enquanto a heresia esbarra-se em ambas.

Quando se pensa que a melhor das virtudes ou das boas obras são pecados, quando praticadas por um incrédulo, está apenas afirmando que elas nascem de uma natureza corrompida e fora da graça, por não agradarem a Deus, por não unirem o homem a Deus, pode não ajuntarem méritos para a vida eterna.

Essa realidade não pode chegar ao ponto de destruir a natureza humana, e a razão, afirmando que todo e qualquer ato é pecado, pois uma vez que a natureza humana foi criada por Deus, é boa em si, embora corrompida, ela não foi completamente corrompida em toda a sua essência, mas apresenta a corrupção em todas as suas partes. Por isso, ao afirmar que a razão ainda pode agir bem naturalmente, e por isso praticar obras que não sejam pecados, está afirmando que embora essas obras não mereçam de Deus a graça, elas não O ofendem por serem praticadas por um infiel.

Esse assunto é bastante complexo e profundo. Que o Senhor nos ajude a compreendê-lo. Louvado seja nosso Senhor Jesus Cristo.

Gledson Meireles.

domingo, 19 de julho de 2020

Notas sobre o Arminianismo

O Arminianismo surgiu como um partido dentro do Calvinismo, no século dezessete. Jacó Armínio (Oudewater, Holanda, 1560) foi a voz que iniciou tudo isso. Em 1586 viajou para Roma. Disseram que estava influenciado pelos católicos jesuítas.
Mais tarde, ensinou o que ficou resumido em cinco proposições dos Remonstrantes.
No século dezoito influenciou o Metodismo, dividindo-o os seguidores de John Wesley, arminiano, e George Whitefield, calvinista.
Augustus Toplady (1740-1778) escreveu atacando o arminianismo, defendendo o calvinismo como a doutrina correta, e o arminianismo como falsa, porque não ensina a predestinação e defende o livre-arbítrio, e afirmando que essa leva a Roma. Isso ele escreve em ataque a John Wesley, fundador do Metodismo.
Fonte: Catholic Encyclopedia e site Monergism.
Gledson Meireles.

sexta-feira, 17 de julho de 2020

Sobre o Livro A Providência de Deus, de Paul Helm

Pelo que o autor propõe-se a fazer, como expresso no primeiro capítulo, é considerar a providência divina como o controle total das coisas do mundo em harmonia com a responsabilidade humana, utilizando os dados fornecidos pela Revelação bíblica, através de uma atividade racional que respeite os limites desse material sagrado, e não caia em deduções exageradas.

Nega o fatalismo, e apresenta boas razões, ao mesmo tempo em que explica que o controle divino total não significa impelir a criatura a fazer algo contra sua vontade própria. Considera o mistério da providência, pois há questões intrincadíssimas.
Helm usa a linguagem da permissão, falando de coisas que Deus permite. Já sinalizou que investigará o controle divino por causas segundas. Pode-se notar até o momento que o autor não insinuou tratar do livre arbítrio, com essa ênfase e termo, mas da questão da responsabilidade.
Já afirmou controle total da providência divina, exemplificou-a com a diminuição da responsabilidade de um governado por um governo humano, e garantiu a existência da responsabilidade ainda que sob o controle total de Deus.
Esse controle total, conforme já aludido por Paul Helm, consequentemente destrói o livre-arbítrio, e por isso o autor não toca diretamente nesse conceito, como já mencionado antes.
Prefere falar da responsabilidade, algo que parece ser o mais comum entre os teólogos reformados quando tratam da questão da liberdade. Parece um modo de evitar o tratamento do livre-arbítrio, por concebê-lo destruído. Ainda é cedo dizer mais sobre o pensamento do autor nessa obra. Esclarecimentos virão no estudo dos próximos capítulos.
A análise do livro terá como foco mostrar o que a doutrina reformada tem em conformidade com a Bíblia, e a razão, e o que não, com motivos bíblicos, racionais e históricos.
Mais uma série de estudos da doutrina reformada, com outro autor, Paul Helm, o que, a essa altura, já virou um livro. Por isso oportunamente revisarei o texto, organizarei de modo a tornar melhor a leitura e a apresentação mais sistemática dessa análise da teologia reformada.
Gledson Meireles.

quinta-feira, 16 de julho de 2020

Controvérsias calvinistas e Paul Helm


Aqui serão compartilhadas algumas notas de estudo da teologia reformada considerando as explicação de Paul Helm, eminente teólogo protestante.
Primeiro, uma breve visão das discussões entre protestantes a respeito do pensamento de Calvino. Depois, apresentação também breve do teólogo citado.
Serão publicadas posteriormente algumas notas comentando uma obra do autor, em continuação ao estudo da doutrina reformada.
Paul Helm responde objeções do Dr. Kendall, o qual demostraria pouca preocupação em sua análise, é considerado trabalho que falta erudição, com sentenças fora de contexto e falha em observar a mudança de pensamento de Calvino.
O Dr. Kendall, prolífico escritor, em um artigo afirma que ele nunca foi tão claro em sua vida quanto à sua tese de que Calvino não cria na expiação limitada.


Na revisão do trabalho do Dr. Kendall, Tony Lane afirma que é pacífico que entre Calvino e o Calvinismo há mudança. A questão da controvérsia é sobre os pontos apresentados pelo Dr. Kendall.

Em um artigo, que é capítulo de um livro, é afirmado que a linguagem de Calvino é indefinida, mas crê que Paul Helm prova que Calvino cria na expiação limitada.

Isso mostra um pouco das controvérsias que os reformados enfrentam sobre o pensamento de Calvino em pontos importantes da teologia reformada. Trata-se de interpretações dos documentos reformados, incluindo a obra de João Calvino e a Confissão de Fé de Westminster.

Paul Helm é um filósofo e teólogo reformado, dos mais abalizados, uma autoridade no pensamento de Calvino e do Calvinismo, e por isso deve ser considerado quando o assunto é a teologia reformada.




quinta-feira, 9 de julho de 2020

Calvinismo: comentando apresentação de Michael Horton


Segue um comentário sobre a apresentação do Calvinismo por Michael Horton, no seu livro For Calvinism.
Horton afirma que, na polêmica envolvendo a Ceia do Senhor, foi usado em 1558 pela primeira vez o termo calvinismo. 

Podemos afirmar, pelas informações de Horton, que Igrejas haviam recebido esse nome por associação ao seu fundador Lutero, mas as Igrejas protestantes fundadas por Zuínglio, Calvino e outros ficaram sob o nome de Reformadas.

Alguns reclamam dessa designação, pois parece restringir a reforma apenas às igrejas que tiveram maior influência das doutrinas de Calvino.

É claro que, em sentido geral, os calvinistas afirmam que as doutrinas que seguem não são de Calvino, mas são as doutrinas da graça, doutrinas do evangelho, que teriam sido redescobertas por muitos na historia da Igreja, como Santo Agostinho, Lutero, e, especialmente, por Calvino. Há calvinistas que citam Santo Tomás como sendo alguém com quem Calvino concordou em essência na doutrina da predestinação.

Creem quem não estão ensinando a doutrina de um homem, mas entendem que Calvino em linhas gerais foi um bom intérprete das Escrituras e que reestabeleceu, com os demais reformadores, os pilares da Reforma, e que foi o maior sistematizador da doutrina protestante.

Como Michael Horton observa, as Igrejas Reformadas não incluem os escritos de João Calvino na sua doutrina oficial. Isso é feito pelas Igrejas Luteranas quanto aos escritos de Lutero, e nas Metodistas, que subscrevem escritos de John Wesley. Talvez asseverando isso já de início, o teólogo reformado dá um sinal de que a mensagem reformada não tem a intenção de seguir um líder humano. Mas, assim dito, essa é a mesma posição dos luteranos e dos metodistas citados, não havendo diferença quanto à sua ligação aos respectivos reformadores e aos reformadores protestantes do século dezesseis em geral.

Calvino foi o mais influente reformador. As diversas confissões, como a francesa, a escocesa, a belga, a helvética, explica Horton, nasceram devido à diversidade de experiência, mas têm a mesma essência.

As Igrejas Reformadas do Continente, explica o teólogo, abraçaram a Confissão Belga, o Catecismo de Heidelberg e os Cânones do Sínodo de Dort. Pode-se afirmar que, a última confissão, de 1648, a Confissão de Fé de Westminster, é de um grande resumo da fé reformada e calvinista.

Há pastores que apresentam a síntese de sua fé como expressa na Confissão de Westminster, por compreender que essa testemunha a fé cristã como ensinam as Escrituras. De fato, esses são documentos de suma importância para entender a doutrina reformada. Na Inglaterra a Igreja Reformada segue os 39 Artigos da Religião.

Outra característica, e uma curiosidade, é que as igrejas reformadas possuem certa divisão organizacional. Parece que o modo presbiteriano é o original, mas as igrejas da Inglaterra e Hungria, por exemplo, são episcopais. Ainda, mais tarde, surgiram os congregacionais, mantendo a doutrina reformada, que chamam as doutrinas da graça.

As Igrejas Batistas que mantiveram a doutrina proposta pelo calvinista, ou ex-calvinista, já que negou pontos importantes da doutrina de Calvino, embora muitos afirmem que no restante ele continuou concordando com o calvinismo.

Jacob Armínio discordava daqueles que mantiveram a doutrina calvinista nos pontos criticados. Há entre os batistas aqueles que não seguem nem as ênfases de Armínio nem as de Calvino. Propõem uma visão mais radicalmente batista, distinta da reformada. Assim também os luteranos expressam a sua fé como essencialmente luterana, não sendo calvinistas nem arminianos. Por aí vemos as diversas linhas de divisão que existem entre os protestantes, e que tocam doutrinas importantes.

Essas discordâncias são vistas por muitos como não justificativas de brigas e divisões, chamando a todos à humilde unidade. Dessa forma, procuram a unidade nas doutrinas contidas nos credos antigos e nos pontos defendidos na Reforma Protestante, para que as demais divergências não sejam tão exaltadas a ponto de levar um protestante a considerar o outro como herege. Nesse caso, há aqueles que explicam a unidade nos dois conjuntos mencionados e liberdade quanto às doutrinas que distinguem as denominações, propondo que os erros teológicos não são divisores, mas somente as heresias, que são doutrinas que tocam o fundamento da fé cristã.

Conhecendo esse cenário geral, continuemos à exposição da fé reformada, conforme Michel Horton. Ele esclarece o que é o novo calvinismo, que apresenta-se como Reformado, embora esteja também em ambiente não reformado, e afirma que a maioria das igrejas reformadas e presbiterianas ignoram ou rejeitam seus distintivos calvinistas. Por isso, há um crescente desejo de revitalização das doutrinas calvinistas, reformadas, de modo que muitos protestantes de outras persuasões estão abraçando a doutrina de Calvino. E, como sempre repetido, a fé reformada é mais do que os cinco pontos do calvinismo.

A tradição reformada tem raízes em Lutero, pois é reconhecido que Calvino foi influenciado pelos escritos luteranos, assim como por Martin Bucer. Calvino era amigo de Melancton. Outros como Heinrich Bullinger, John Knox, e etc., também formaram a tradição reformada. As primeiras expressões da doutrina nos catecismos reformados distinguiam a doutrina em contraposição com o Catolicismo e os anabatistas.

Outra afirmação é que Calvino enfatizou mais o amor e benevolência de Deus em Cristo do que a soberania e autoridade.

Horton mostra que a ênfase na doutrina da predestinação é um fruto histórico, e vem à tona por meio das controvérsias. E que o calvinismo não tem um dogma central.
O autor afirma que o calvinismo tem sido caricaturado e distorcido, assim como o arminianismo. Essa é um boa constatação, e é fruto de quem está engajado em estudos como esses, que se relacionam com os debates entre calvinistas e  arminianos.

Gledson Meireles.