domingo, 25 de setembro de 2016

Início da Igreja Católica Apostólica Romana


No início da Igreja Católica, após a descida do Espírito Santo em Pentecostes, os seguidores de Jesus eram unânimes na doutrina ensinada pelos apóstolos.

Isso podemos ler em Atos 2,41-47. É verdade que a Igreja começou com o ministério de Nosso Senhor Jesus Cristo de aproximadamente três anos e meio, onde muitos discípulos receberam a Palavra do Evangelho e seguiram a Cristo, e desses 12 foram escolhidos como apóstolos, as testemunhas da ressurreição e o grupo eleito para organizar a Igreja Católica incipiente na terra.

Portanto, o que ocorreu em Pentecostes foi a inauguração da Igreja para o espalhamento do Evangelho em termos nunca dantes visto e fora das fronteiras de Israel, com a força do Espírito Santo em todos os membros da Igreja, à convocação de todos a seguir a Jesus Cristo.

As pessoas que acolhiam a Palavra pregada pela Igreja eram batizadas e tornavam-se membros dela. Nesse aspecto a Igreja deu seus primeiros passos, pois, em Jerusalém, após a cruz e o batismo do Espírito Santo. Ela já havia nascido desde o ajuntamento dos primeiros discípulos, mas foi ativa em sua forma atual após o Pentecostes.

Os elementos de perseverança dos cristãos naquele momento eram: 1) a doutrina dos apóstolos, 2) as reuniões em comum, 3) a fração do pão e 4) as orações.

Os apóstolos realizavam prodígios e milagres, e tal fato enchia de temor de Deus os corações de todos. (v. 43) A unidade era uma marca, e mesmo os bens materiais eram possíveis servir a todos de comum acordo. (v. 44)

Ainda, é preciso notar que não foi a conversão a Jesus Cristo uma ruptura com o Judaísmo, pois os cristãos continuavam a frequentar o Templo “todos os dias”. (v.46) Mas, as reuniões próprias da fé cristã eram feitas nas casas (v. 46), não por causa de um princípio do Evangelho, mas pelas circunstâncias que cercavam a Igreja, e que impediam a disseminação da doutrina de forma livre. Então, os cristãos louvavam a Deus e aos poucos cativavam o povo. (v. 47)

Vemos aqui o começo da pregação do Evangelho na cidade de Jerusalém, e os primeiros dias da Igreja como um corpo reunido diante dos homens. Antes estava sob a liderança visível de Jesus o Senhor, no momento de formação do colégio apostólico, e o início do presbitério no grupo dos setenta discípulos.

Assim, viviam a paz interna na comunidade de crentes, reuniam-se com frequência, realizavam os serviços litúrgicos juntos, frequentavam o Templo sem problemas, e no “partir do pão”, que era o sacramento deixado por Cristo, o realizavam nas casas.

A partir da descida do Espírito Santo, que marca o início do ministério do Espírito Paráclito, os apóstolos constituíam o grupo de autoridade visível suprema na Igreja. Os cristãos perseveravam “na doutrina dos apóstolos”. Não havia divisões. Os milagres e prodígios acompanhavam a pregação da fé, e todos eram estimulados à piedade por ver o que os apóstolos faziam. (v. 43)

Dessa forma, a porta de entrada na Igreja é o batismo, após a conversão do coração. (v. 41) Muitos recebiam a palavra e faziam parte da Igreja. Eram obedientes à doutrina dos apóstolos, e ainda não havia sido ordenado nem presbíteros e nem diáconos. Logo isso foi feito, após a eleição de Matias para compor o lugar vago de Judas Iscariotes.

Essa eleição foi feita por inspiração do Espírito Santo a São Pedro, o primeiro líder cristão geral da Igreja, o verdadeiro primeiro papa do Cristianismo. Foi Pedro que fez o primeiro sermão em Pentecostes.

De fato, a Escritura afirma: “Em um daqueles dias, levantou-se Pedro no meio de seus irmãos, na assembleia reunida que constava de umas cento e vinte pessoas, e disse.” (Atos 1,15)

A expressão “levantou-se Pedro no meio de seus irmãos” é semelhante àquela quando o Concílio de Jerusalém, no ano 49, em Atos 15, reuniu-se para resolver a questão judaizante. No versículo 7 está escrito: “Ao fim de uma grande discussão, Pedro levantou-se e lhes disse: “Irmãos, vós sabeis que já há muito tempo Deus me escolheu dentre vós, para que da minha boca os pagãos ouvissem a palavra do Evangelho e cressem”.

Por isso, o sermão primeiro aos judeus foi feito por Pedro, e também os pagãos deviam ouvir em primeiro lugar de Pedro a palavra de salvação. É por isso que falando o período apostólico, em especial dos 5 anos do período de Pentecostes até o martírio de santo Estêvão, diz o historiador protestante, Jesse Lyman Hurlbut, no livro História da Igreja Cristã: “A leitura dos primeiros seis capítulos do livro dos Atos dos Apóstolos dá a entender que durante esse período o apóstolo Simão Pedro era o dirigente da igreja.” Embora o autor não cresse que Pedro fosse papa: “Isso não significa que Pedro fosse papa ou dirigente oficial nomeado por Deus.” E as razões que dá para não reconhecer o primado de Pedro são essas: “Tudo acontecia como resultado da prontidão de Pedro em decidir, de sua facilidade de expressão e de seu espírito diretivo.”

 

Mas, sempre surge nesses casos o que chamo de “lampejos da verdade”, e um desses é quando o autor reconhece que pouco governo humano era necessário nesses tempos: “Em uma igreja comparativamente pequena em número, todos da mesma raça, todos obedientes à vontade do Senhor, todos na comunhão do Espírito de Deus, pouco governo humano era necessário.” Isso explica que não vemos a necessidade da expressão do poder jurídico de Pedro.

 

Podemos ver um pouco disso sobre o grupo dos apóstolos, que eram venerados (louvados, engrandecidos, do grego ἐμεγάλυνεν (emegalynen)) pelo povo. Estamos em um período muito cedo para que aparecessem sérias heresias. No entanto, essas não tardariam a aparecer.


É notória a influência poderosa do Espírito Santo no crescimento vertiginoso da Igreja nesses dias, mas é inverídica a afirmação de que em Pentecostes todos os 120 cristãos foram igualmente pregadores do Evangelho, e que não havia distinção entre clérigos e leigos. Assim como hoje, todos podemos pregar a salvação, falar de Cristo, ensinar, mas nem por isso cada um cristão torna-se igual a um ministro ordenado.  Em nenhum lugar encontramos essa realidade nas Escrituras, e quando vemos o ministério de Estêvão, um cristão leigo proeminente, esse não passou a pregar e realizar prodígios senão após ser um clérigo, pois era um diácono ordenado pelos apóstolos em Atos 6, 6.

Antes disso, os demais cristãos que comungavam do sacerdócio dos crentes não eram vistos como iguais aos apóstolos. Eram distintas as autoridades e os cristãos leigos.
 
Gledson Meireles.

 
 
 

sábado, 24 de setembro de 2016

São Justino e a imortalidade da alma


Com o assunto sobre a investigação da Divindade por parte dos filósofos, inicia-se a questão sobre a alma, levada a cabo por São Justino no Diálogo com Trifão.

E São Justino comenta sobre a opinião de alguns de que a alma é imortal e imaterial, e que por essa razão, embora muitos cometam atos maus, esses não recebem a punição, já que a alma sendo imaterial não é sensível, e como também é imortal não necessitaria de Deus. Esse é o contexto da investigação de São Justino a respeito da alma. E mais adiante essa questão será resolvida.

Vendo que a afirmação de que os maus não serão punidos porque a alma é imaterial e imortal, e a sua consequente independência de Deus, supostamente, é claro, podemos ver que tais crenças não são cristãs, e por isso são Justino irá combatê-las. Se alguém pensa que essa é a doutrina da Igreja Católica está em engano, totalmente enganado, e irá ficar surpreso por saber que não é.

Mais perto do tema da alma, propriamente dito, no capítulo quatro, o Velho pergunta a são Justino se a alma é “também divina e imortal”, confirmando o contexto apresentado acima. Isso significa que sua questão gira em torno da alma como uma parte de Deus, ou seja, se é também uma divindade, ou que possui imortalidade por si mesma, como Deus a possui. É preciso muita atenção nesse contexto para entender o que São Justino irá argumentar na sua resposta.

Logo depois, o Velho pergunta se as almas dos homens e dos animais são diferentes. A isso São Justino responde que não, mas que as almas são todas semelhantes. Sendo assim, argumenta o Velho, os animais poderão ver a Deus. A isso são Justino responde que não, pois muitos homens não verão a Deus, mas somente os que viverão justamente, purificados pela justiça, e pelas virtudes.

Dessa forma, a justificação aqui é vista como interconectada com a prática das boas obras, e que somente verão a Deus aqueles que praticarem a justiça, vivendo santamente. Os demais que não procedem dessa forma não poderão ter a visão de Deus.

São Justino explica, adiante, que os animais possuem um corpo que os impossibilita ver a Deus. Esse é o contexto para entender sua argumentação. Então o Velho pergunta se a alma vê a Deus enquanto está no corpo ou depois que o deixa. Essa questão tem como pressuposto comum a distinção alma e corpo, sua possível separação, e presume a imortalidade da alma. Aliás, é uma ideia posta ao sistema holista apregoado atualmente.

Diante disso, São Justino continua o raciocínio sem negar o pressuposto básico. Por essa razão, temos que toda a argumentação de São Justino no Diálogo tem a imortalidade da alma como base.

De fato, esse seria o momento para São Justino negar a imortalidade da alma, de forma radical, e afirmar que ela é como a dos animais, mortal e corruptível, e que não poderia permanecer depois da morte. Mas, o que ele diz é contrário a tudo isso. Ele alude ao momento quando a alma é libertada do corpo. Não poderia isso estar de acordo com aquilo que os “holistas” afirmam. Mas, ainda a questão está longe de ser tão clara. O que São Justino afirma durante o diálogo irá tornar esse tema ainda mais radiante.

No capítulo cinco, o Velho alude à doutrina da alma não-criada e imortal. São Justino conhece essa doutrina, mas afirma não concordar com seus proponentes. Aqui é mais outro lugar em que muitos baseiam-se para afirmar que São Justino era um “mortalista”, pois não concorda que a alma é imortal.

Mas, tenhamos calma, pois o caso das almas “semelhantes” entre homens e animais, como visto acima, e que é usado como argumento pelos mortalistas, foi dissolvido, e esse também será o caso.

Diante da pergunta do Velho, se as almas são imortais, São Justino afirma que não, pois as mesmas são criadas como é o mundo. Parece que São Justino está aqui negando a imortalidade da alma, de forma categórica. Porém, o que o Velho diz a seguir não deixa isso no ar. Ele afirma que não está dizendo que todas as almas morrem, e explica que algumas almas estão em um lugar melhor, e outras em um pior, à espera do julgamento, e que esse durará enquanto Deus quiser que dure e que essas almas existam.

Essa doutrina lembra aquilo que os mortalistas afirmam do castigo. A diferença fundamental é que para o Velho as almas não morrem, mas ficam à espera do galardão ou do juízo em lugares diferentes, e que no fim elas receberão o justo castigo de Deus.

São Justino afirma que a alma é corruptível, e que somente Deus é não-criado e imortal. Essas afirmações são tidas por muitos como incompatíveis com a doutrina da imortalidade da alma. De fato, a fé católica ensina que a alma é imortal. Mas, o que São Justino está dizendo é que Deus e a alma humana não são da mesma natureza, o que é verdade. Deus é imortal como fonte de toda imortalidade. A alma não. E isso é doutrina da Igreja Católica.

Em outras palavras, comparemos com os anjos, que possuem imortalidade, mas são criaturas, não tendo a imortalidade em si mesmos, sendo esse atributo dado a eles por Deus. Também a alma humana, sendo criada, não pode ter a mesma natureza de Deus, e por isso sua imortalidade vem de Deus.

Isso veremos ao continuar o diálogo. Nesse sentido, as almas morrem, ou seja, podem morrer, se isso fosse a Vontade de Deus, e são de fato punidas. Pense bem: Deus é imortal, e assim é impossível que morra ou possa ser destruído. A alma não. Ela é imortal porque Deus a fez assim, da mesma forma que os anjos. Doutra maneira, se fosse a vontade de Deus ambos poderiam deixar de existir. São essas as afirmações de São Justino que parecem consubstanciar a doutrina dos mortalistas, mas que, na verdade, não o fazem.

O Velho elabora um pensamento importante. Ele afirma que a alma é ou tem vida. Que ela vive ninguém nega, afirma. Então diz também que ela vive não como sendo a própria vida, mas participante da vida. Isso por vontade de Deus.

A estrutura de corpo, alma e espírito encontra-se na explicação do Velho. Na morte, a alma deixa o corpo, e o homem deixa de existir. Quando a alma deve deixar de existir, afirma o Velho, o espírito a abandona, e ela volta para onde veio. Assim, a vida do corpo é a alma, e a vida da alma é o espírito, segundo essa explicação. Também não é o mesmo que o holismo ensina, estamos mais apropriado para a explicação imortalista, sendo esclarecimento da natureza da alma, mostrando em que sentido ela é imortal: o espírito de Deus não a deixa morrer.

Dessa forma, a fé cristã sempre teve em consideração a alma como imortal, ainda que faça uma separação, como nessa obra de São Justino, entre a imortalidade de Deus e a imortalidade da alma. Essa última é um dom concedido ao homem.

Ainda, no capítulo oito da obra sobre a ressurreição, São Justino mostra que Deus também salva o corpo. Essa argumentação já é uma prova quanto à imortalidade da alma, pois muitos pensavam que somente a alma iria ter o reino. Essa é a posição pagã ensinada pela filosofia helenista.

Mas, São Justino ensina que o homem é corpo e alma. No capítulo dez ele afirma que o corpo é a casa da alma, e a alma a casa do espírito. Essa mesma estrutura é mostrada na argumentação do Velho, como foi provado acima. Agora, podemos ter certeza da doutrina de São Justino, que ensina a imortalidade da alma.

Portanto, diante de tudo isso, a doutrina de São Justino é que a alma é imortal, mas que sua imortalidade vem de Deus, que colocou espírito vivificante na alma. São Justino ensina a distinção corpo e alma, ensina que a alma pode viver à parte do corpo, e que, portanto, é imortal, e será reunida ao corpo na ressurreição.

Havia no tempo de São Justino os que negavam a ressurreição, como visto na carta de São Paulo aos coríntios. A razão que colocavam, contra a verdade da ressurreição, seria que o corpo corrupto não poderia mais ser restaurado, entre outras coisas.

Usando a linguagem física entendida pelos filósofos pagãos, por causa da incredulidade deles, São Justino, em sua obra Sobre a Ressurreição (On the Ressurrection), faz comparações para provar a ressurreição. Dessas podemos colher a verdade da imortalidade da alma.

Então, São Justino afirma sobre a alma e o corpo que, cada um sozinho não pode fazer nada. Ao falar da ressureição da carne, argumenta que se Cristo quisesse uma ressurreição apenas espiritual, teria feito isso mostrando o corpo vivendo sozinho à parte, e a alma vivendo sozinha à parte. Essa é uma maneira estranha de ver, mesmo nos moldes a que estamos acostumados. A ressurreição é de ambos, corpo e alma.  Mas, tal coisa não quer dizer que a alma morreu. Apenas está frisando que na ressurreição a alma volta à sua união intrínseca com o corpo.

No capítulo 9 escreve: “Se a ressurreição fosse apenas espiritual, seria necessário que Ele, ao ressuscitar os mortos, devesse mostrar o corpo deitado à parte, por si só, e a alma vivendo separada por si só. Mas agora ele não fez asim, mas levantou o corpo, confirmando a promessa de vida.[1]

Diante disso, a seguir São Justino afirma que a ressurreição é aquela da carne que viveu, pois o espírito não morre, e que a alma deixa o corpo na morte: “A ressurreição é uma ressurreição da carne que morreu. Pois o espírito não morre; a alma está no corpo, e sem uma alma ele não pode viver. O corpo, quando a alma abandona-lo, não existe mais. Para o corpo é a casa da alma; e a alma a casa do espírito”.[2]

Em sua Apologia 1, no capítulo 18, São Justino, falando da morte, afirma que a sensação permanece em todos os que viveram, e parte desse fato para apresentar ao rei a doutrina quanto ao juízo de condenação, considerando que que a alma não deixa de ter sensação na morte. Para isso, ele mostra ao rei que ele tem exemplos (na própria crença pagã do rei), através da necromancia, adivinhações, evocações das almas dos falecidos, e outras, de que a alma já sofre as consequências da condenação.

São Justino usa exemplos que mostram ao rei que o juízo já começa a ter suas repercussões na morte, portanto, na alma, através da alma. E no capítulo 19 ele trata da ressurreição da carne. Então, passa a fazer analogias, e assim afirma no capítulo 20: “e enquanto nós afirmamos que as almas dos ímpios, sendo providas de sensação mesmo depois da morte, são punidas, e que aqueles dos bons sendo libertos da punição passam uma existência bem-aventurada...”. Mais provas são produzidas por São Justino, no cap. 21, mas essas já são suficientes.

São Justino, na mesma obra, capítulo 44, concede que muito do que os filósofos e poetas gregos aprenderam, foi através de Moisés, e um desses ensinos foi sobre a imortalidade da alma: “E o que quer que ambos os filósofos e poetas têm dito a respeito da imortalidade da alma, ou punições após a morte, ou a contemplação das coisas celestiais, ou doutrinas da mesma espécie, que tenham recebido tais sugestões dos profetas, como lhes permitiu compreender e interpretar estes coisas. E, portanto, parece haver sementes da verdade entre todos os homens; mas eles são acusados ​​de não compreender com precisão [a verdade] quando afirmam contraditório”.[3]

No Diálogo com Trifão, São Justino chega à conclusão de que o mundo foi criado por Deus, não se trata de algo “não-gerado” e eterno, e por conseguinte a alma não é imortal. Eis o verdadeiro sentido doutrinal.

Essa é a conclusão coerente, pois significa que somente Deus é imortal. Mas, o que devemos perceber é que São Justino cria que a imortalidade é um dom de Deus, não sendo um atributo da alma da mesma forma como o é de Deus.

São Justino esclarece que a alma não é por si mesma imortal, mas por causa da Vontade de Deus, que deu a ela imortalidade. O que é discutido no capítulo 5 gira em torno da eternidade da alma, da sua imortalidade, supostamente por não ter sido criada, sobre o conceito de ter uma origem não-gerada, o que a tornaria absolutamente imortal. Por isso, essa ideia é combatida por São Justino. De fato, não é essa a doutrina cristã católica.

O que deve ser entendido sobre a alma, mais diretamente e de forma cristã, é apresentado no Diálogo um capitulo antes, no número 4, e alguns passam despercebido por ele, indo logo ao capítulo 5, onde está afirmado que a alma não é imortal, no sentido que foi mostrado acima. Então, com isso passam uma ideia errônea sobre a doutrina ensinada por São Justino.

Quando chegamos ao capítulo 80, a questão já é conhecida de que São Justino defendia a doutrina bíblica de que a alma não pode morrer. Então, as suas afirmações que envolvem esse assunto devem ser contextualizadas.

Nessa passagem da obra, São Justino trata da questão do reino milenar, após a reconstrução de Jerusalém, a partir da Parusia, a vinda de Jesus. Ele e muitos outros cristãos, como o mesmo afirma, acreditava nessa doutrina, estava persuadido de sua validade e verdade. Talvez as coisas não eram tão claras a esse respeito, e, sabemos, não havia um pronunciamento oficial da Igreja quanto ao milênio, de forma que a intepretação de São Justino não é apresentada como de origem apostólica.

Dessa forma, não era uma posição dogmática. Assim, ele afirma que “muitos que pertencem à pura e piedosa fé, e são verdadeiros cristãos, pensam de outra forma”. Não diria isso se considerasse a negação da doutrina uma heresia. Desse modo, sabemos que não eram todos os cristãos que criam e ensinavam o milenarismo, e mesmo assim São Justino afirma que esses eram verdadeiros e piedosos.

Temos então a prova de que a crença no milenarismo era tolerada na Igreja, mas não fazia parte da tradição apostólica, sendo uma opinião piedosa e plausível de muitos. O tempo passou e essa doutrina foi mais e mais desacreditada.

Então, depois dessas clarificações, desses esclarecimentos necessários, São Justino fala dos falsos cristãos, ou seja, os hereges. E afirma: “Porque, se você caiu com alguns que são chamados cristãos, mas que não admitem isso [a verdade], e arriscam blasfemar o Deus de Abraão, o Deus de Isaac, o Deus de Jacó; que dizem que não há ressurreição dos mortos, e que suas almas, quando morrem, são levadas para o céu não imagino que eles são cristãos...” Essa heresia afirmava que as almas já estão no céu, e que não haveria mais ressurreição. Por isso, São Justino a denuncia com energia.
 
Assim, esse texto não trata da imortalidade da alma em si, não nega o fato, pois esse era crido por São Justino, mas apenas apresenta a refutação da opinião de que não haveria ressurreição dos mortos. E isso é uma doutrina ímpia, e uma heresia das mais perniciosas. Por tudo isso, São Justino não era um mortalista, e essa questão está refutada.
 
Para acompanhar a reflexão acesse: Parte 1 , Parte 2 , Parte 3.
 
Gledson Meireles.





[1] “If the resurrection were only spiritual, it was requisite that He, in raising the dead, should show the body lying apart by itself, and the soul living apart by itself. But now He did not do so, but raised the body, confirming in it the promise of life.”


[2] “The resurrection is a resurrection of the flesh which died. For the spirit dies not; the soul is in the body, and without a soul it cannot live. The body, when the soul forsakes it, is not. For the body is the house of the soul; and the soul the house of the spirit.” (http://www.newadvent.org/fathers/0131.htm, capítulo 10).


[3] “And whatever both philosophers and poets have said concerning the imortality of the soul, or punishments after death, or contemplation of things heavenly, or doctrines of the like kind, they have received such suggestions from the prophets as have enabled them to understand and interpret these things. And hence there seem to be seeds of truth among all men; but they are charged with not accurately understanding [the truth] when they assert contradictories.”

O sentido dos termos alma e espírito

Mais uma vez, tentemos aprofundar os sentidos das palavras alma e espírito, como usadas na Bíblia. Discutamos novamente o que foi colocado acima, de forma a esclarecer a questão, e afastar a heresia.

A alma é apenas a parte invisível do homem, a sua vida física que acaba na morte, ou é ela o seu espírito que sobrevive após a decomposição do corpo? É a alma apenas o conjunto de uma máteria (corpo) animada pelo espírito de Deus (fôlego) ou pode o termo alma ter outro sentido incluindo o de parte espiritual imortal do homem? Alguns dizem que não temos alma, mas somos alma. Assim, em certo sentido, o corpo seria o mesmo que a alma. Poderíamos então dizer que não temos corpo, mas, ao contrário, que somos corpo. Dessa forma, o corpo seria a alma. O corpo seria o aspecto tangível da alma e a alma o aspecto intangível do corpo. Em outras palavras, o corpo seria a alma visível enquanto a alma seria o corpo invisível.

Não há nada de errado nessa reflexão, a menos que alguém afirme que na morte a alma deixa de existir junto com o corpo. Assim, estará afirmando algo além do que foi o intuito do presente raciocínio.

Façamos uma reflexão bíblica e através dela usemos de comparações, as mais diversas possíveis, dentro do presente escopo, para tratar da natureza da alma, da sua relação com o corpo, da verdadeira doutrina cristã católica.

Nesse aspecto, o reverendo William G. Most[1] afirma que somos criaturas feitas de corpo e alma, ou seja, matéria e espírito. O espírito do homem é a alma imaterial, que não pode ser vista.  Para entender a realidade da alma que pode existir mesmo após a dissolução do corpo, o padre faz uma interessante comparação, mostrando que podemos pensar conceitos que não são capazes de serem mostrados materialmente. Assim, eles são espirituais, são próprios da alma, elementos que por sua própria natureza podem ser lidados por algo espiritual.

Na morte o homem fica à espera da consumação de todas as coisas, entrando no “tempo da memória”, conforme diz o padre Elílio, comentando o teólogo e cardeal Ratzinger. Tecendo comentário, segundo a doutrina verdadeira, ele acentua a unidade do ser humano, o “ser unitário”, mas é prudente em dizer que não se trata de um ser “monolítico”. Parece aqui já uma refutação do holismo ou monismo.

Então o padre Elílio cita as seguintes palavras: “A matéria como tal não pode ser o fator de permanência no homem: inclusive durante a vida terrena se encontra em contínua mutação. Nesse sentido é inegável uma dualidade que distingue o constante e o variável, dualidade exigida simplesmente pela lógica do assunto. Por esta razão resulta irrenunciável a distinção entre corpo e alma.  

Assim, não se trata de um dualismo, mas tenhamos em mente esse conceito com o termo dualidade para fazer a justa distinção. Pois, de certo: “Distinguir não significa separar”, afirma o padre Elílio. E explica o que antes ficou anunciado na citação última: “Entre o monismo inadmissível e o dualismo não-cristão, há a dualidade.” Dessa forma, a doutrina cristã não admite esse “monismo”, mas o dualismo como estamos vendo durante a presente reflexão, que contrasta com o “dualismo” dos pagãos, que não tem a mesma essência.

Então, o padre explica que a Bíblia não traz uma teologia sistematizada do homem, mas deixa os princípios pelos quais podemos entender a antropologia verdadeira. A Bíblia não apresenta o homem como o faz o dualismo grego, mas também é longe do holismo apregoado nos tempos atuais, e adotado por líderes cristãos protestantes. Não entendendo a doutrina bíblica, caíram numa posição herética.

Toda a Bíblia apresenta o homem inteiro, dentro da perspectiva judaica, sem lugar para falar da alma como os gregos faziam. Mas, não quer dizer isso que a mesma não existisse. O padre Elílio afirma acertadamente: “Nos textos mais antigos, a Escritura afirma que, enquanto o corpo é levado à sepultura, as sombras -refaim- do falecido juntam-se à sua parentela no sheol. Às sombras não compete uma vida consciente, mas uma existência espectral e despersonalizada”. Isso é algo que estritamente não poderia ser chamado de vida.

Então, é importante ter o conhecimento do significado mais específico dos termos. Na Bíblia da edição Ave Maria há um índice doutrinal, onde os conceitos de alma e espírito são resumidos de forma satisfatória. A alma é a vida (cf. Lv 17,11), o ser vivo em geral e em particular do homem (cf. Jó 10,1; Sl 6,5), e sinônimo de espírito imortal (cf. Jó 14,22; Mt 10,28). Essa é a parte mais profunda do homem.

Por sua vez, o espírito é a respiração, o sinal de vida (cf. Gn 6, 17), o vento (cf. Gn 8,1), o vigor da alma ou da mente (cf. Gn 45,27). Também as realidades invisíveis, como anjos e demônios, e mesmo o espírito dos homens, sendo nesse caso sinônimo de alma. Abaixo estão as partes mencionadas dessas passagens, conforme estão na Tradução do Novo Mundo, edição bíblica das Testemunhas de Jeová:

“Pois a alma da carne está no sangue” (Lv 17,11), portanto a alma está aqui no sentido de vida. É o mesmo que afirmar que a vida está no sangue.

“Minha alma certamente se enfada da minha vida. Vou externar a minha preocupação comigo mesmo. Vou falar na amargura da minha alma!” (Jó 10,1). Nessa passagem, a alma significa o eu. Por exemplo, a amargura da minha alma é a “minha amargura”.

“Apenas a sua própria carne, enquanto estiver nele, continuará a sentir dores, e a sua própria alma, enquanto estiver nele, continuará a prantear”. (Jó 14,22). A Bíblia Ave Maria traduz a última parte desse verso como: “e sua alma só se lamenta por ele”.

Nessa passagem, a alma é aquilo que está no íntimo do homem, é a parte que sente a tristeza que foi mencionada. O texto fala da carne que sofre com as dores e da alma que lamenta esse sofrimento. É a revelação do sentido mais profundo do termo alma. É o espírito imortal, como foi afirmado acima.

Segundo as Testemunhas de Jeová, de acordo a explicação de tópicos bíblicos na Tradução do Novo Mundo das Escrituras Sagradas, edição de 1983, página 1517, a alma é o homem (cf. Gn 2,7), os animais têm alma (cf. Nm 31,28), e que a alma tem sangue, come e pode morrer. (cf. Jr 2,34; Lv 17,18; Ez 18,4). Isso é o que resume sua doutrina tirada de muitos textos bíblicos. Não há espaço para o conceito de alma distinguível do corpo, como espírito imortal.

Quanto ao espírito, ensinam que esse é a força vital movendo a alma, conforme o que podemos ver em Sl 146,4 e 104,29, e que essa força vital volta a Deus na morte, como está em Ecl 12,7, e que somente Deus pode ativá-la, aludindo à ressurreição que está retratada em Ez 37,12-14. Em síntese, a alma seria somente a pessoa viva, e o espírito seria o sopro de Deus movendo a pessoa. Esse é o limite da sua doutrina. Tal sentido já foi refutado acima.

Em Gn 2,7 “o homem veio a ser uma alma vivente”. Isso somente quer dizer que o termo alma pode ser usado como sinônimo de pessoa, e não que o termo não possa ser também usado como espírito que não morre ou deixa de existir com o corpo, o que ficará mais claro durante o estudo.

No Salmo 104,29 é afirmado: “Se lhe tiras o espírito, expiram e retornam ao seu pó”, e no Salmo 146,4: “Sai-lhe o espírito, ele volta ao seu solo. Neste dia perecem deveras os seus pensamentos”.

Textos como esses afirmam que o espírito é a força vital de Deus que garante a existência do homem na terra. Sendo esse retirado, o homem morre, volta ao pó. O sentido de espírito nessas passagens não é o mesmo que o de alma imortal.

O texto de Gn 9,5 afirma que as almas tem sangue: “exigirei de volta vosso sangue das vossas almas”. É o mesmo que afirmar que exigirá a vida das pessoas, o que será exigida por Deus. A tradução Ave Maria traz o seguinte: “Pedirei conta de vosso sangue, por causa de vossas almas”.

Tendo isso em vista, os mortalistas ensinam que a alma quer dizer apenas ou a pessoa ou a vida que essa usufrui, não podendo ser o espírito imortal, nem o princípio de vida.

Com isso em mente, os textos como o de Ezequiel 18, 4 que diz: “A alma que pecar – ela é que morrerá”, seria entendido como a morte da alma, ou seja, que a alma poderia morrer, e não seria imortal, perecendo com o corpo. No entanto, esse texto apenas está referindo-se à pessoa (alma=pessoa), sendo esse o sentido do termo alma nessa passagem: “a pessoa que pecar – essa é que morrerá”, somente isso.

Não está aí o sentido de alma como espírito imortal, mas tampouco esse é negado, pois o termo possui vários sentidos como foi provado acima, e nisso podemos concordar.

No entanto, nesse significado ninguém poderá afirmar que a acepção de alma em Mateus 10,28 seria pessoa, ou que seria vida. A única acepção é que o significado de alma nessa passagem não está em nenhum desses sentidos anteriores, mas somente no de alma espiritual mesmo, na sua natureza imortal, pois essa não pode ser morta pelos homens. Essa passagem já foi referida acima. Devemos ter em mente que na Bíblia “o termo alma seja usado com certa flutuação e em diversos sentidos”.

quinta-feira, 22 de setembro de 2016

A criação do homem (Gênesis 2,7)

Nunca as heresias correram tão livremente e frutuosamente como nos tempos atuais. As velhas heresias renovam-se e dão lugar a outras heresias que brotam delas. É afirmado que isso tem a ver com a falta de conhecimento da Bíblia, por ter a Igreja proibido a sua leitura há séculos. É verdade que a Igreja proibiu temporariamente e em locais específicos a leitura da Bíblia em língua vernácula e sem a autorização do bispo, medida essa usada contra a proliferação de heresias. Isso ocorreu principalmente na França, no século 13.


Então, esses e outros exemplos são usados para atacar o Catolicismo como se o mesmo tivesse perseguido as Escrituras, por medo de que o povo descobrisse as supostas “lendas” que a Igreja estaria ensinando, e que essas viessem a ruir por isso.

O fato é que depois da divulgação bíblica em todo o orbe, tendo iniciado no século 15, por um católico que inventou a imprensa, e escolheu a Bíblia como primeiro livro a ser impresso, a mesma doutrina continua a ser pregada hoje pela Igreja Católica, é anunciada a todos, e defendida com as Escrituras, o que depõe contra essa tese maléfica de que a Igreja tenha alguma vez se colocado contra a Bíblia.

A outra elucidação da falsidade dessa tese é que quanto mais os homens leem as Escrituras sem a orientação do Espírito Santo como membro da Igreja de Cristo, as heresias têm aumentado nos demais arraiais contrários à fé católica. Uma dessas heresias é a doutrina da mortalidade da alma ou imortalidade condicional.

Eis uma das doutrinas da antiguidade, surgindo pelos idos do século 4, com Arnóbio de Sica, e que hoje tem ganhado mais adeptos contra a fé cristã bíblica e tradicional. Ellen White afirmou que o primeiro sermão de Satanás foi feito no Éden, e o assunto foi o da imortalidade da alma. As palavras “não morrerreis”, que de fato denotam a mentira de Satanás (Gênesis 3,4), teria o sentido de que a alma não seria destruída na morte.

No entanto, o fato é que todos os pecadores morreram e morrem. O que Bíblia afirma a respeito da morte é referente ao homem. Com isso, está a definição básica da morte, que consiste na separação do corpo e da alma, e a doutrina da imortalidade da alma não desfaz esse sentido. Assim é que São Paulo, ainda que acreditando na imortalidade da alma, em primeiro lugar não desejava morrer. (cf. Fl 1,23; 2 Cor 5,8) A morte não é parte do plano de Deus para o homem, mas foi uma possibilidade permitida por causa do pecado.

Possuir alma que é imortal não é o mesmo que estar livre da morte. Essa ideia não é o que podemos tirar das palavras da serpente infernal. A vida é apresentada na Bíblia como a participação da existência neste mundo, desde o Éden, e assim a morte significa o fim da existência aqui. A morte seria o fim da vida na terra e não o fim de toda a pessoa em absoluto. É um erro supor que a morte significa entrada na inexistência. Pensar que o Demônio estivesse introduzindo outro sentido de morte, afirmando que o homem deixaria de viver na terra e entraria numa vida incorpórea, como se isso denotasse a mentira de Satanás, é introduzir o princípio de que já havia noção conhecida da morte, e que essa seria a total inexistência, ou o sono, como ensinam alguns, e que o homem logo pensou, diante da sugestão do Diabo, que mesmo perdendo o dom da vida no mundo ganharia a vida em uma dimensão espiritual. Esse seria o conteúdo do engano.

Contudo, se a inexistência fosse o que Deus tivesse ensinado ao falar da morte, e a permanência da existência na morte constituísse o ensino de Satanás, isso significaria que homem contentou-se em viver somente em seu espírito, abrindo mão da vida no mundo. Porém, o que mais de acordo está com o texto bíblico é que sendo a vida a realidade experimentada, desde a criação, na existência material nesta terra, no meio do belíssimo Jardim criado por Deus, a morte seria a cessação da vida no mundo. Somente isso. Apenas em um sentido mais profundo entra o pensamento a respeito da natureza da morte, e nisso é que deve entrar as indicações do texto bíblico.

Para os “mortalistas” é suficiente pensar que a morte seria a volta à inexistência. Uma vez que o homem não existia antes da criação e foi criado pela junção da matéria e do sopro de Deus, a morte seria a retirada do sopro, tido como mera energia de vida, onde o corpo retornaria ao pó, deixando de existir a pessoa total. Não existindo antes da criação, o homem passaria a não existir após a morte.

O entendimento de que a morte é a separação da alma e do corpo é mantido aí em certo sentido, não como duas realidades distintas, mas como uma realidade meramente material energizada pela força de Deus, que deixa de receber essa energia, o sopro de Deus.

Porém, uma vez que o homem foi criado à imagem de Deus, e que tem a promessa de vida eterna, é preciso pensar que algo deve ter sido criado no homem para que o mesmo mantenha sua personalidade intransmissível e que continue existindo. E o que vemos na Escritura é que há uma parte do homem que não é desfeita na morte. E, quando voltando ao plano original de Deus, vemos que a vida eterna foi preparada por Deus para o homem.

Portanto, ainda que a alma continue consciente após a dissolução do corpo, não é isso que é a vida. A vida a que refere-se a Bíblia e que é o que foi garantido pela árvore da vida no Paraíso, é a vida do homem criado no mundo físico, na Terra, mais especificamente, a vida no corpo. Esse contraste entre a vida da alma após a morte e a vida do homem inteiro neste mundo, deve ser distinguido aqui para entender a mentira do Demônio e os efeitos do fruto da árvore da vida no paraíso terrestre. (cf. Gn 3,22)

Entendido isso, sabemos que o homem é um ser mortal, mas possui uma alma imortal. Essa parte do seu ser continua a existir por Vontade de Deus. O fruto da árvore da vida não daria ao homem uma alma imortal, que ele já possuía, mas garantiria que não poderia mais morrer, o que significa que seu corpo e sua alma jamais seriam separados.

É preciso lembrar que a morte não existia. De fato, antes de ser criado Adão não estava em lugar nenhum, pois ainda não existia também. Assim, a sua morte era a cessação da sua existência pela separação do sopro de Deus da sua matéria proveniente da terra. Dessa forma, o homem não mais poderia viver no Jardim do Éden e contemplar a criação e a Deus. O que a morte significa, além disso, não é possível apreender da simples leitura e das especulações que provêm da enganação do Demônio quando disse: “não morrereis”.

Para Ellen White a morte seria a cessação total da existência, não havendo mais qualquer parte do ser após esse ter morrido. E, por isso, dessa concepção ela tirou a conclusão de que se houvesse a alma após a morte o homem “não” teria morrido, e isso seria o que Satanás teria pretendido ensinar.

Por outro lado, essa leitura não encontra suporte na narração bíblica, em nenhum lugar, pois o que Satanás afirmou foi que a morte não seria o resultado da desobediência, mas que Adão e Eva continuariam a viver no Éden e seriam ainda mais abençoados, o que de fato não ocorreu, pois a morte foi realmente o fruto da desobediência, a cessação da vida. Não há lugar para negar a existência da alma imortal nessa passagem.

Há a objeção de que a imortalidade sendo um atributo divino não poderia ser encontrada no homem. Se assim o fosse, o conhecimento do bem e do mal também não poderia ter sido alcançado por nós. É um argumento fraco, já que a imortalidade será dada a todos os salvos, e isso não seria possível se a imortalidade não pudesse ser compartilhada com o homem.

Além do fato de que, conhecer o bem e o mal é uma característica de Deus que recebe importância no texto para essa questão. O homem antes da queda não conhecia nada mais senão o bem. O mal para ele não havia existência, pois ainda não tinha desobedecido a Deus, e nem visto as consequências que advém da escolha pelo caminho contrário àquele que Deus aprova. Assim, o homem é considerado como “um de nós”, ou seja, comparado às pessoas de Deus quanto ao conhecimento que, após o pecado, ele adquiriu do bem e do mal. Isso é expresso em Gênesis 3,22.

Dessa maneira, sendo um atributo de Deus que o homem participa ao conhecer o bem e o mal, a objeção de que a imortalidade da alma seria um atributo que somente Deus poderia ter não é um argumento bíblico, mas algo arranjado para atacar uma doutrina que, se bem entendida, tem esse argumento como inócuo.

 
O verdadeiro ensino da passagem de Gênesis 2,7

O Senhor Deus formou, pois, o homem do barro da terra, e inspirou-lhe nas narinas o sopro da vida e o homem se tornou um ser vivente”.

Os elementos que Deus usou na criação do homem são o "barro da terra" e o "sopro de vida" que vem do próprio Deus. Então, o homem tornou-se uma ‘alma vivente’, que é o mesmo que ‘ser vivo’.

A vida que vivifica o homem não é como a energia que faz um robô movimentar-se. De fato, a energia do robô é uma força, que dá movimento a uma máquina e nada mais. O espírito de Deus, no entanto, que é chamado nessa passagem de neshamah, não apenas movimenta a imagem de barro, mas dá-lhe personalidade, transforma sua forma de apenas terra para carne e osso, e faz aparecer no seu interior a inteligência, a vontade e os afetos, com sensibilidade, com sentimentos, emoções, desejos etc., de uma forma individualizada, o que mostra não ser apenas uma energia que perpassa pelos fios de um aparelho. A energia que dá a vida na criação é como aquela que também o faz na ressurreição, como mostra a Ezequiel 37.

Entretanto, em Gênesis o espírito de Deus é uma força criadora. O espírito de Deus cria um espírito dentro do homem. Esse espírito é individual, e não uma força coletiva. De fato, a força de Deus que mantém a criação é a força que todos experimentam, sendo distribuída sobre a criação inteira, e a vida dessa força de Deus é comunicada a homens, animais e vegetais, mas o espírito criado em cada pessoa é particular. Por isso, Deus é chamado de Pai dos espíritos. (Hebreus 12,10)

Embora Deus tenha dado o Seu espírito de vida a todos os seres, os quais foram feitos almas viventes, que significa simplesmente seres vivos, há uma diferença entre a constituição do homem e a constituição do animal. Isso já é pensado no livro do Eclesiastes, quando o Espírito Santo faz refletir sobre o destino do espírito do homem e o do animal: “Quem sabe se o sopro de vida dos filhos dos homens se eleva para o alto e o sopro de via dos animais desce para a terra? (Eclesiastes 3,21)”[1]. Por esse motivo, a criação do homem é como que a coroação da criação e é enfatizada, como está em Gênesis 1,26 e 2,7. Os animais, por sua vez, não possuem a inteligência e a vontade livre como o homem.

Em Gênesis 1,24 Deus ordena que “a terra produza seres vivos segundo a sua espécie”. Por isso, a vida do animal é produzida juntamente com seu corpo. Em relação ao homem, o v. 26 mostra Deus dizendo: “Façamos o homem”, e não apenas ordenando que o homem apareça da terra, e seja produzido pela terra, como foram os animais. Assim, toda a criação é constituída da terra, e das águas, mas o homem foi criado possuindo algo diferente, para poder reinar sobre a criação. Essa é a característica de ter ele só, somente ele, a imagem e a semelhança de Deus.[2]

Antes de Deus dar o sopro de vida, a imagem de terra bem modelada era apenas barro. Ao receber o espírito de vida tornou-se homem. Esse segundo elemento indica que no ato de criação a inspiração de Deus criou o espírito do homem para animar o seu corpo. A força de Deus formou o corpo material, e também Seu espírito fez sua alma espiritual. É verdade que não foi apenas um movimento da imagem de argila, mas uma verdadeira criação de algo diverso, um ser vivo de carne e osso. Deus usou dois passos para fazer o homem, enquanto que, naquilo que se refere aos animais vemos Deus apenas produzindo seres vivos da terra. Assim, diante desse cenário o homem foi chamado alma-vivente de acordo com o nome da sua parte mais importante, que é a alma. E essa alma é espiritual. Assim, a alma do homem não é como uma força ligada totalmente ao corpo, e deixando de existir juntamente com o corpo. Ela possui a força do Espírito de Deus para sobreviver à destruição do corpo na morte. Esse é o ensino que a Bíblia revela. Por isso, ao homem vivo é dado também o nome de alma. Dessa mesma forma, ao homem morto as Escrituras chamam corpo.

Muitos leem essa passagem do livro do Gênesis como se o espírito de Deus fosse apenas a vida animando um corpo, e que a morte faria a vida cessar e o ser inteiro cair na inexistência. Mas, tal leitura não provém do texto de Gn 2,7, mas é um entendimento equivocado do mesmo. Vemos que a passagem evidencia outra realidade.

Ninguém pode negar que o sopro de Deus em Gênesis tenha criado no homem uma alma. O fato do homem ser chamado “alma vivente” não impede que ele tenha em si a alma, que é o termo usado para identificar a parte espiritual do homem, e que por isso pode ser chamado igualmente e de alma significando sua pessoa. Ainda, o próprio sopro ali pode ser a infusão da alma criada naquele instante por Deus, animando o corpo recentemente criado.[3]

Porém, ainda há uma objeção, como a que foi feita acima, mas de uma forma mais direta, e que afirma que o homem não é dito ter recebido uma alma, mas que é uma alma. Essa objeção nasce da constatação apenas do termo usado para o homem criado. A isso, podemos averiguar na passagem em questão, que o espírito de Deus soprado na imagem de argila fez o homem uma alma vivente. Isso mostra que o sopro de Deus fez algo no homem, para que fosse tornado alma vivente.[4] Em outras palavras, o fôlego de vida que Deus pôs no homem criou algo dentro dele. E transformou a terra criando o corpo material. É esse elemento da natureza do homem que chama-se alma ou também espírito.

Para começar o estudo, nós cremos na imortalidade da alma, que foi criada diretamente por Deus, e cremos que ressuscitaremos no último dia. Aquele que parte do pressuposto de que o sopro de Deus não fez nada mais do que dar vida à imagem de barro, e que a alma é somente a pessoa viva, então terá que provar isso em inúmeras passagens, que são usadas como objeções contra a imortalidade da alma.[5] E é um indicativo de erro o fato de que uma doutrina encontre fortes obstáculos na Bíblia, a mesma fonte onde procura estabelecer.

Para nós que cremos na doutrina cristã católica, desde os tempos de Cristo e dos apóstolos, portanto, na doutrina verdadeira, veremos que a Bíblia apresenta sempre os sinais da existência de que o homem tem dentro de si a alma que não morre.

Para provar essa asserção, poderá ter-se sempre em mente as duas noções que são contrapostas, as quais são o sopro de Deus como apenas uma energia de vida, ou como a alma sendo infusa, que é praticamente o mesmo que o Espírito de Deus como o princípio criador da alma. A Bíblia apresenta essa última, ou melhor, que foi criado o homem com uma parte espiritual e uma parte material, que podem ser separadas, e que a espiritual permanece. Isso será o que o presente estudo irá provar.

Para quem abandonou a fé na imortalidade da alma, e que agora é um mortalista convicto, se durante o estudo quiser testar a doutrina que acredita, deverá partir dessa verdade de que na criação o sopro de Deus criou a alma humana. Assim, poderá reconhecer esse fato em toda a Escritura. Por outro lado, quando parte do pressuposto de que o sopro de Deus não criou nada no interior do homem, mas que o homem é a própria alma, então terá sérios problemas a resolver. Essa já é uma indicação de que o pressuposto é falso. E não conseguirá resolver os problemas quando esses são analisados detidamente. Essas dificuldades ele pensa ter resolvido, ou que pode resolvê-las, mas o presente estudo provará que não estão resolvidas na concepção mortalista, e que assim não podem ser solucionadas. Na verdade, essa doutrina será refutada.

Depois, em toda argumentação desta obra, veremos que a imortalidade da alma não é o fim que desejamos e esperamos vivenciar na eternidade, mas sim a ressurreição da carne. A Bíblia anuncia que todos seremos ressuscitados. Dessa forma, ao tratar da ressurreição também será ressaltada a verdade da alma imortal.

Mais uma palavra, para maior esclarecimento, sobre o texto de Gênesis 2,7, com um enfoque diverso. Vemos aí a criação do homem com pormenores. Nessa passagem, temos primeiramente que o Senhor Deus formou o homem da argila da terra, modelando uma forma humana. Depois disso, soprou-lhe um fôlego de vida nas narinas, de forma que aquela imagem de barro, antes inerte, tornou-se uma alma vivente. Para provar que o homem não teria uma alma imortal, muitos apontam essa expressão “alma vivente”, afirmando que não foi dada ao homem uma alma, mas que ele tornou-se uma alma, como já exposto antes.

Dessa narração, contudo, temos identificados o corpo do homem e o espírito (neshamah) que foi soprado por Deus para dentro dele, e nos é dito que ele tornou-se uma alma (nephesh). Assim, o homem é uma alma vivente (nephesh), conforme esse texto. No entanto, não é esse termo usado nas Escrituras com um sentido apenas, o que prova que muitas vezes o mesmo pode ser usado como sinônimo de espírito do homem, expressando aquilo que é a sua parte mais recôndita.

Todos sabem que o termo possui outros sentidos, mas os mortalistas afirmam que os demais sentidos são somente usados na acepção daquilo que pensam ser, ou seja, que nenhum deles afirma a existência da alma imortal. Mas, não é o que vemos na Bíblia. Também podemos afirmar que não apenas temos um corpo, mas somos um corpo. Mas as Escrituras não usam jamais a palavra corpo para indicar um ser humano vivo, pois geralmente tal designação tem a ver com um cadáver. A linguagem humana é limitada para denotar toda a unidade corpo e alma e garantir ao mesmo tempo a sua divisibilidade. É esse o ponto fulcral das diferenças entre a doutrina cristã e o apregoado sistema holista.

Voltando à leitura mortalista, o espírito (neshamah) seria apenas a força de vida que temos enquanto respiramos e vivemos aqui. Repito isso para frisar bem o que estamos a analisar. Em uma usada comparação, para o mortalista, o homem seria como uma lâmpada, a qual recebe energia para espalhar a luz, e quando a energia é desligada a lâmpada deixa de iluminar.

Contudo, essa leitura está errada, por não estar completa. É uma meia verdade, que em última análise é uma total mentira. O homem possui o espírito de Deus, como lemos nas Escrituras. Além disso, como está escrito em Zacarias 12,1, o profeta afirma ainda que Deus “firmou” os céus e “formou” o espírito do homem dentro dele.

Nessa passagem não é dito que apenas uma energia foi transferida para o interior do homem, ou que a energia foi-lhe emprestada até que a morte chegasse, mas que há dentro do homem algo criado por Deus, e que é chamado espírito. Por isso, Santo Tomás afirma que o espírito de Deus soprado em Gênesis 2,7 fez o espírito do homem. Esse espírito de Deus fez a nossa alma.

Caso o espírito de Deus fosse apenas a força vital impessoal que energizasse toda a criação, talvez esse fosse também usado no singular. Mas, as Escrituras afirmam, como vimos, que Deus é o pai dos espíritos, o que explica Gn 2,7 e Zc 12,1 mais especificamente.

Em Zacarias, o original traz o seguinte: מַשָּׂ֥א (O peso) דְבַר־ (da palavra) יְהוָ֖ה (do Senhor) עַל־ for יִשְׂרָאֵ֑ל (Israel) נְאֻם־ (disse) יְהוָ֗ה (o Senhor) נֹטֶ֤ה (estende) שָׁמַ֙יִם֙ (os céus) וְיֹסֵ֣ד (e estabelece as bases da terra) וְיֹצֵ֥ר (e forma) רֽוּחַ־ (o espírito) אָדָ֖ם (do homem) בְּקִרְבּֽוֹ׃ (dentro).

A análise do texto mostra que o termo hebraico וְיֹצֵ֥ר (weyoser) é um verbo que significa formar.[6] [7] Comparado à colocação da fundação dos céus, o que significa a sua criação, o texto mostra que Deus formou no íntimo do homem o espírito. Nessa passagem, espírito não é o mesmo que está em Gn 2,7, no sentido de que está mais especificado, de forma a podermos distingui-lo daquele sentido de apenas o sopro de Deus. Agora, o espírito é mais explicitamente o efeito do sopro de Deus dentro do homem, que é igualmente chamado espírito.

No entanto, para fins de melhor distinção, notamos que o termo espírito usado em Gn 2,7 é neshamah, e o espírito que está em Zc 12,1 formado no homem é ruah. Esse também possui vários usos, conforme o contexto. Nesse em particular, a palavra tem o sentido de espírito do homem criado por Deus. Nesse caso, pode-se afirmar que o homem não é um espírito, mas tem um espírito.

Em especial, neshamah é o fôlego ou espírito (בְּקִרְבּֽוֹ׃ nis-mat) criador do espírito humano. Com esse espírito o homem tornou-se uma alma (nephesh), no sentido de pessoa. Nesse caso, também o homem tem um espírito ou ele tem uma alma.[8]

A palavra neshamah é usada em várias passagens, a saber: Gn 2,7; 7,22; Prov 20,27; Is 30,33. O termo hebraico nephesh de Gn 2,7 é usado inúmeras vezes. Basta consultar a Strong´s Concordance. A palavra hebraica para espírito (ruah), mais comumente usada, aparece frequentemente, assim como o termo alma na Bíblia. De fato, nephesh (נָ֫פֶשׁ) é alma, ser vivo, vida, ser, pessoa, desejo, paixão, apetite, emoção, de acordo com a definição 5135 da Strong´s Concordance.

Na concepção cristã, a alma é principalmente a parte do homem, parte da natureza humana, que é completa somente com o corpo. Assim, o corpo não é prisão da alma, e por isso essa não é libertada na morte, pois nunca esteve presa. Tal doutrina é platônica e não cristã. Muitos criticam essa concepção grega pagã pensando estar tratando da doutrina cristã, atacando um espantalho ao invés da correta doutrina que cremos.

A propósito do termo nephesh (alma) que aparece no fim do verso 7, na criação do homem, esse uso não é o único na Bíblia. Assim, Jesus afirma que os homens não podem matar a alma, e para isso usa esse mesmo termo. Esse uso não está, de forma alguma, no mesmo sentido que aparece em Gn 2,7, pois enquanto naquela passagem a alma quer dizer a pessoa inteira viva, em Mateus 10,28 a alma é o espírito que não pode ser morto, e por isso é distinto do corpo: os homens podem matar o corpo, mas não a alma. Alma aqui é parte do ser humano. Em outras palavras, colocando o sentido de Gênesis 2,7 no lugar de Mateus 10,28, teríamos que os homens poderiam matar a “alma” vivente, mas tendo em mente o significado apenas de Mateus 10,28, o contraste é manifesto, pois ali os homens não tem poder de matar a alma. Por ora isso basta.

O Dr. Samuele Bacchiocchi tentou uma explicação mortalista para essa passagem, onde alma significaria a vida eterna. Ele contribui com uma exegese interessante, mas não surtiu o efeito que desejava.  Devido a isso, ao longo do presente estudo poderemos ver que essa visão é claramente forçada. De fato, Jesus afirma sobre a morte identificando e separando o corpo e a alma. Seria estranho afirmar que os homens não podiam matar a vida eterna, mas que Deus podia. Não faz sentido. A tentativa do Dr. Bacchiocchi foi infeliz.






[1] O sopro de vida nessa passagem revela algo mais que uma mera energia vital, e relaciona-se mais com a individualidade de cada ser. Se fosse simples energia, essa seria idêntica em tudo que necessita dela para viver, e não teria sentido pensar na diferença entre o destino do sopro que teria vivificado um homem ou um animal. Embora fale referindo-se à forma plural, “homens” e “animais”, há diferenciação entre o espírito de uns e de outros. Portanto, é ao espírito individual de cada homem e de cada animal que o texto tem alguma referência. No entanto, não no sentido de que cada ser humano volta a Deus, e de que cada animal é condenado. A linguagem mostra que o espírito tendo a possibilidade de subir ou descer tem um significado muito importante. Não poderia referir-se a uma energia, já que isso sugeriria uma energia para animar o homem diferente da do animal. Isso não é plausível. De fato, o próprio texto do Ecl 3,19 afirma que: “A ambos foi dado o mesmo sopro. A vantagem do homem sobre o animal é nula, porque tudo é vaidade.” Mas, ao mesmo tempo, não poderia ser dito que todos os homens sobem a Deus na morte, o que redundaria em dizer que todos são salvos, já que o texto do Eclesiastes não discrimina salvos e condenados nessa passagem, e nem ao menos sugere isso. Também não há a concepção de espírito individual voltando a Deus, pois no Antigo Testamento os mortos descem ao sheol, e não sobem ao céu. Dessa forma, o sopro do homem e o sopro do animal, que em princípio são iguais, possuem um tratamento diferente: o do homem retorna a Deus. É verdade que, o espírito nessa passagem pode significar a vida, mas tem um significado ainda mais profundo, pois em Ecl 12,7 é afirmado que o espírito retorna a Deus. Isso é o mesmo que dizer que ele sobe ao céu. O certo é que o fato de haver possibilidade de elevar-se ao alto o sopro de vida indica que há um cuidado especial de Deus para com o espírito do homem. Esse voltar do espírito de todos a Deus indica que no homem algo permanece, o que não ocorre com os animais. O fato de Deus tomar o espírito dos homens a Si, nos remete a pensar que há algo no homem que o distingue dos animais mesmo na morte, e que tal não pode referir-se ao corpo, pois todos sofrem a corrupção. Deve referir-se obrigatoriamente, então, ao espírito. Uma possibilidade que o mortalista tem é interpretar essa guarda do espírito por parte de Deus, como referindo-se à segurança da ressurreição, enquanto os animais não terão isso garantido, não possuindo essa promessa. Mas, problema será que nessa leitura o espírito está sendo igualado em ambos os grupos, e em Ecl 12,7 é dito que o espírito volta a Deus, já deixando implícita, nesse caso, a ressurreição de todos, o que é verdade, mas também denotando veladamente que todos os homens estão no agrado de Deus, o que é heresia. Ainda, a verificação de que o homem é inegavelmente diferente do animal em suas potências espirituais é uma evidência de que o espírito humano é de natureza diversa dos animais. O que é mais notório é que a afirmação de que o espírito humano retorna a Deus, e o dos animais não, é que nesse cuidado há indicação de que o espírito humano seja conversado consciente. O dos animais deixa de existir. De fato, as almas descem ao sheol, e o espírito de Deus é guardado na Sua fonte, que é o próprio Deus. Mas, diferentemente os animais tem o seu espírito descendo à terra, e não retornando a Deus. Assim, visto que fora de Deus não há conservação dessa força, afirma-se assim que Deus a descartou, apagando-a, e o ser que a possuía caiu na inexistência. Isso não é o que ocorre com o homem.


[2] Não é simplesmente interpretar sopro de vida = alma, mas ver as nuances que a palavra espírito e alma vão ganhando em todo o relato, e naquilo que a Bíblia nos leva a concluir. Como a polissemia do termo é reconhecida, deve-se ter cuidado quando se afirma que um certo sentido não faz parte do uso bíblico.


[3] Cf. http://haydock1859.tripod.com/id328.html.


[4] Antes da inspiração do neshamah havia apenas uma imagem de argila.


[5] Essencialmente falando, pois ninguém afirma que o corpo humano seja barro, como uma estátua se movimentando. Sabemos que houve criação, e o barro tornou-se carne, osso, sangue, órgãos. O sopro vital criou o homem e deu-lhe vida. Essa vida está radicada na alma. Por isso, o homem é alma-vivente.


[6] http://biblehub.com/text/zechariah/12-1.htm


[7] http://biblehub.com/hebrew/veyotzer_3335.htm


[8] O Dr. Samuele Bacchiocchi afirmou que o ruah é mais amplo que o neshamah a partir da leitura de Gn 7,22, em referência ao estudo de Basil F. C. Atkinson. (Disponível em: http://www.truthaccordingtoscripture.com/documents/death/immortality-or-resurection/immortality-or-resurection-ch2.php#.V9WNyc9THIU. Acesso 11 setembro 2016.) O que fiz aqui a partir de Gn 2,7 e Zc 12,1 teve resultado contrário, pois concluí que o ruah foi efetivado no neshamah, o espírito criador. Essas referências mostram que os termos podem ser usados em diversos sentidos nas diferentes passagens da Escritura.