domingo, 28 de agosto de 2022

Livro: A lenda da imortalidade da alma, estudo sobre os rephaim, capítulo 6

 Os rephaim ou as “sombras” no Sheol

Será que rephaim seria apenas o cadáver? Seria apenas uma forma poética de falar dos mortos? Há algum texto que liquida a questão de que a palavra possa ser empregada no sentido de alma imortal ou espírito? Pois bem. É um termo que substancia um bom argumento bíblico sobre a imortalidade da alma, e que dificilmente pode ser entendido como o faz o mortalismo.

Então, como diz o autor do livro, esse seria o único argumento usado por teólogos “mais sérios”, um argumento não utilizado comumente na apologética. Esses teólogos da mais fina cultura, os melhores, que trariam o seu mais forte argumento contra o mortalismo, seriam os que apresentam tais textos para provar sua doutrina de “sono da alma”, a chamada psicopaniquia.

Para começar, deve-se dizer que, então, esses não são os teólogos mais corretos, não têm essa prerrogativa de portadores dos melhores argumentos do imortalismo, e não são os que estão na nata da pesquisa teológica acadêmica por não poderem chegar a mais do que perto de um “sono” para a alma nas páginas do Antigo Testamento.

Essa visão posta em circulação a partir de Lutero, se bem que nem esse fosse coerente quanto a isso, tem sido mais difundida no século dezenove em diante, por teólogos de renome no Protestantismo, e por denominações importantes como a Igreja Adventista do Sétimo Dia.

Os textos onde o termo rephaim aparece são: Jó 26:5; Sl 88:10; Pv 2:18, 9:18, 21:16; Is 14:9, 26:14, 19. A ideia de “sombras” como existência fraca no sheol é combatida nesse tópico do livro.

Se os rafaim, ou rephaim, tremem debaixo da terra, não se pensa apenas nos corpos dos mortos, ainda que seja algo metafórico isso possibilita pensar em algo mais “debaixo” da terra. Será mesmo que os rephaim são apenas uma forma de falar dos cadáveres? Ou são de fato uma forma de referir-se ao que sobrou do ser na morte, o que equivale à noção de alma imortal?

O túmulo e o abismo são paralelos. Não será o túmulo lugar da destruição do corpo e o abismo da destruição, ou perdição, das almas? De fato, abbadon é no Apocalipse o nome do Anjo do Abismo, de cujo fosso saíam espíritos que afligiam os seres humanos. A ideia é de um lugar espiritual. Assim é que em Provérbios 9, 18 os rafaim estão no fundo do sheol. Será isso somente o fundo do túmulo? Parece mais para ser lido como profundezas desse lugar espiritual.

Em Provérbios 21, 16 fala-se da assembleia dos rephaim. Pode-se aqui entender de alguma forma, em linguagem poética, dos mortos na sepultura, mas é mais provável das almas no sheol.

A ideia de que a sombra seria uma réplica do eu, ou que não seria corpo ou alma, não seria mais a pessoa, podendo ser uma sombra que permanece no lugar da personalidade que deixou de existir, como explicado nas citações do livro, é algo importante para o estudo da questão. Ela é uma noção que aponta para a imortalidade da alma, e não o contrário.

Ao afirmar que a pessoa não existe, que a personalidade acabou, que uma existência permaneceu em lugar sombrio, isso é existência de algo da pessoa, e não inexistência. Dessa forma, essas explicações de eruditos mantem contato com a imortalidade da alma, e não com a sua inexistência.

Dessa forma, o que esses teólogos protestantes propõem podem chegar a um “sono” da alma e não da inexistência dela, uma ideia que corrobora a fé na imortalidade da alma.

Portanto, de forma geral percebe-se que a mortalidade da alma não é a doutrina da maioria dos protestantes e nem é a que predomina no meio acadêmico.

Contudo, deve-se dizer que a ideia de que as sombras não possuem força, vida, etc., e que dormem, não é o mesmo que dizer que podem ser ativadas apenas na ressurreição, se se tem o caso do profeta Samuel, que sobe do mundo dos mortos, afirmando que estava antes em repouso, sendo perturbado pelo chamado da necromante. Dessa forma, a sombra de Samuel podia agir de alguma forma, o que é idêntico ao conceito de alma.

Desse modo, a alma permanece em estado de trevas, sem atividade, no silêncio, sem a comunicação, como afirma o teólogo Ratzinger, mas não sem qualquer possibilidade de ação. Não há sono, muito menos inexistência.

Havia portanto permanência da personalidade, da consciência, da existência, na espera em Deus, pelo dia da salvação em Cristo. Isso explica o caso do desejo de Jacó de descer ao sheol, da aparição de Samuel, dos reis mortos no sheol em Is 14, da pregação aos espíritos em prisão, etc. Tudo faz sentido.

Por isso, não há nem o sono da alma, nem sua morte e existência, mas uma existência imperfeita no sentido ontológico. Por isso a morte é de fato um castigo. Na inexistência não haveria como sentir a morte, ela seria algo neutro.

A ideia do sofrimento da morte para os salvos não é comparada ao inferno, mas à própria natureza de castigo da morte, que é perder sua vitalidade como plano original de Deus, e a vida na terra.

No entanto, na doutrina católica há felicidade para as almas dos santos do Antigo Testamento, felicidade essa que permitiu a espera do Messias e ainda almeja a ressurreição dos mortos. Entende-se assim o aguilhão da morte. Esse problema não é encontrado na teologia católica, mas nas explicações protestantes.

A morte dos justos é acompanhada da felicidade na sua espera em Deus. No entanto, o estado de morte não é almejado pelos vivos. No mortalismo isso não faz sentido pelo fato de que a morte é inexistência, e uma vez morto o salvo apenas notaria que tudo mudou de uma hora para outra, quando ressuscitasse, não sentindo nada da morte. Desse modo, para a doutrina mortalista a morte não é logicamente nada de trevas e sombras.

Quando Deus diz que o salvo descansaria, isso é verdade (cf. Dn 12, 13). Lembra-se Samuel afirmou estar em repouso, descansando? E ele pôde ouvir o chamado e aparecer na terra.

Assim, há de fato o repouso, e haverá de fato a ressurreição. Naquela cena Samuel está morto, é portanto um rephaim. Para o mortalismo o repouso dos justos e injustos é igual em todos os sentidos, e não apenas no sentido físico metafórico, onde os corpos são desfeitos.

E ainda que os textos que se refiram aos mortos como sombras, como rephaim, sejam poéticos, eles identificam algo que existe. Da mesma forma que o sopro é uma metáfora para o curto período da vida, ele remete à ideia de vida, que existe. A sombra traduz o que é a alma na morte, algo que existe e não apenas uma figura de linguagem. Ela é linguagem simbólica que explica uma realidade em termos poéticos da mesma forma que o sopro explica a vida como acima descrito.

A vida em si não é um sopro. A alma em si não é uma sombra. Para ficar mais claro, perceba que a vida é comparada a um sopro no Salmo 144, 4 para falar da sua rápida duração. Um sopro pode durar milésimos de segundos. A vida é poeticamente comparada a um sopro sem se tornar literalmente um sopro.

A sombra é usada para falar da alma não no sentido literal que a alma é agora uma sombra, mas para falar de sua dependência física, como a sombra depende do corpo para formar-se ao impedir parcialmente a passagem integral da luz. Poeticamente sombra, dessa forma, não significa que a alma não existe, mas pelo contrário, assim como o sopro não é negação da vida, a sombra na linguagem poética não nega a alma.

Quando os mortalistas interpretam o sopro como comparado à vida, onde o sopro deixa de existir, e a vida física também, essa comparação não destrói o ser, mas a vida do ser na terra. É uma comparação bastante apropriada.

As sombras comparadas às almas também servem para mostrar que os mortos não são mais como os vivos, já que perderam o corpo e a vida total que foi dada por Deus. Sua existência está envolvida pelo estado da morte, que é salário do pecado e que será vencida na ressurreição.

O próprio texto de Isaías 14, 9-10 usa o termo rephaim para tratar dos mortos, afirmando que os mesmo existem.

O verso 11 explicaria toda a passagem significando apenas a morte física e o corpo do rei? De fato não é isso exigido, já que ir ao sheol é repetido na passagem, onde também se fala da putrefação do corpo, mas no v. 20 o rei é mostrado como nunca se reunindo aos mortos na sepultura. Se ele desce ao sheol no verso 15, não entra na sepultura no verso 20. É portanto mais claro que o corpo ficou sobre vermes na terra e a alma no sheol, no mais profundo do abismo. De fato, sheol e mais profundo abismo são paralelos em Isaías 14, 15.

Os rephaim são os mortos em condição deplorável. De fato. Mas o mortalismo lê isso de modo materialista, já que o corpo está em condição deplorável, e que o ser não mais existe. Mas para o imortalismo, onde os rephaim indicam as almas dos mortos, estes “vivem” em condição deplorável, experimentam a morte, embora saibamos que ainda assim estão nas mãos de Deus, e esperam a vida que há de vir.

E quando o termo rephaim é paralelo a cadáver (muth), isso não é totalmente claro de que o mesmo exclui a noção de alma. Isso pode ser dito também de Isaías 26, 19. “a terra dará luz aos seus mortos (sombras-rephaim)”.

Os rephaim, para os mortalistas, seriam os mortos, os corpos, os cadáveres que estão no pó da terra. Na leitura imortalista eles são as almas dos mortos no sheol. Há mais elementos para a compreensão imortalista.

Dentro do escopo imortalista a compreensão sobre os rephaim como almas imortais cabe perfeitamente. Mesmo no texto de Prov 26, 19, onde o que brota da terra são os rephaim, que poderiam ser apenas alusão aos corpos dos mortos ressuscitando, não é exigência de que seja assim. E há passagens que provam que essa suposição, de que rephaim não se refere ao cadáver que jaz no pó da terra.

De fato, a noção de que os mortos estão no sheol, que é a região subterrânea, não metafórica, nem literal no sentido material, como se pudesse chegar a ela cavando o chão, mas espiritual, ficando como que no fundo do abismo, é compreensível, e praticamente irrefutável, na passagem de 1 Sm 28, 13, onde o profeta Samuel aparece: “E a mulher respondeu a Saul: “Vejo um deus que sobe da terra”.

Ainda que se tratasse de um espírito demoníaco passando-se por Samuel, a fé daquele povo, do povo de Deus, era de que os mortos podiam ser invocados e responder, e que subiriam da terra, não os corpos, porque não ressuscitariam para comunicar-se, mas as almas imortais. Portanto, ainda no cenário de que o espírito que apareceu poderia não ter sido Samuel, toda a cena diz que foi realmente o profeta, e tudo o que diz está conforme a fé judaica sobre o estado dos mortos no sheol, com todos os elementos que explicam o que se entendia por rephaim, mostrando que rephaim é a própria alma imortal em outra linguagem.

O termo aparece em verso onde pode-se ter a ideia de paralelismo com mortos e com corpo, mas isso não é plenamente fora de dúvida. As explicações foram bastante interessantes, mas não põem fim no problema. O que foi mostrado aqui, refuta toda a argumentação mortalista sobre o tema, que passa sobre a sua significação e emprego poético e sobre o paralelismo com mortos e cadáver. Foi algo louvável, o estudo do autor do livro, mas não é uma refutação à interpretação imortalista.

Gledson Meireles.

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