Em consideração à “base exegética
convincente” para a visão tradicional do Protestantismo fornecida por John
Piper. Respondendo à tese de Robert Gundry, temos uma análise exegética repleta
de informações que auxiliarão a posição defendida e se a mesma concorda com a
doutrina da Bíblia.
Para Gundry a fé de Abraão
consistiu em sua justiça, mesmo não sendo obra. Dessa forma, explica Piper, a
imputação não é creditar algo externo, como defende a doutrina protestante,
“mas contar algo que ele tem, a saber fé, para ser sua justiça.” (Piper, p. 56)
Piper percebe que há algo
“externo” na estrutura apresentada por São Paulo, enquanto que na proposição de
Gundry o que está afirmado é que a própria fé é contada como justiça, o que
configura uma interpretação de uma coisa interna que o próprio Abraão possuía.
O verso 4 afirma: “Ora, o salário
não é gratificação, mas uma dívida ao trabalhador.” O salário é algo externo
que o trabalhador recebe por uma obra realizada com esse fim. Portanto, quando
a obra é feita ela é do que a realizou, e o salário é creditado a ele por parte
do patrão. Nessa comparação, quando Abraão apenas teve fé, acreditando na
promessa de Deus, o Senhor deu-lhe o salário como se a sua fé fosse algo
realizado, embora ele não tivesse obra alguma. Dessa forma, a fé foi imputada
como se fosse sua justiça, passando como se uma obra tivesse sido feita e ele
merecesse agora a retribuição, ou seja, o salário. Mas, agora, na realidade um
dom, já que ele não mereceu.
O vero 5 afirma: “Mas aquele que
sem obra alguma crê naquele que justifica o ímpio, a sua fé lhe é imputada em
conta de justiça”. O homem não tendo obra nenhuma para apresentar a Deus,
crendo que Ele justifica o ímpio, “a sua fé” é reputada como justiça.
“O salário não é gratificação”,
diz a Escritura, “mas uma dívida”. Portanto, não havendo obra, apenas crendo,
na promessa, contra toda esperança (v. 18), como conclui o verso 22: “Eis por
que sua fé lhe foi contada como justiça”. Está oferecendo a razão pela qual
Abraão teve a fé considerada como justiça.
Essa parece ter sido a conclusão
de Gundry, a qual Piper refuta como sendo a apreciação que Gundry pensou ter
encontrado em Paulo. Então, adiante questiona: “Would not the wording of verse
4 rather tell us that in Paul’s mind “faith being credited for righteousness”
is shorthand for faith being the way an external righteousness is received as
credited to us by God—namely, not by working but by trusting him who justifies
the ungodly?” (Piper, p. 57)
Piper responde que Deus não
credita algo que temos como justiça, mas credita uma justiça que não temos
“para ser nossa pela graça através da fé.”
Santo Tomás afirma que Abraão não
recebeu a justificação pelas obras da Lei, mas pela fé. As obras do homem não
produzem o hábito da justiça que Deus requer, “(...) pelo contrário, o coração do homem precisa
primeiro ser justificado interiormente por Deus, para que ele possa realizar
obras proporcionais à divina glória.” (S. Tomás de Aquino, Comentário de
Romanos)
Santo Tomás cita 1 Macabeus 2,52.
E a magnífica exposição da doutrina: “Then (v. 5) he shows how the eternal
award is related to faith, saying, but to one who does not work outward
works, for example, because he does not have time to work, as in the case of
one who dies immediately after baptism, but believes in him who justifies
the ungodly, namely, in God, of whom he says below (8:33): "It is God
who justifies," his faith is reckoned, i.e., faith alone without
outward works, as righteousness, so that in virtue of it he is called
just and receives the reward of justice, just as if he had done the works of
justice, as he says below (10:10): "Man believes with his heart and so is
justified," according the purpose of the grace of God, i.e.,
accordingly as God proposes to save men gratuitously: "Who are called according
to his purpose (Rom 8:28); "He accomplishes all things according to the
counsel of his will" (Eph 1:11).”. Adiante, Santo Tomás esclarece ainda
que “not that he merits justice through faith”, e que o ato de crer e o
primeiro ato de justiça que Deus realiza nele.
Na incrível exegese do texto de
Romanos 4, 5 e 6, Piper afirma que a justificação é a imputação positiva da
justiça sem as obras. Com isso, ele tenta refutar a ideia de que a fé estaria
sendo tratada com justiça e afirma, pelo contrário, que a justiça externa está
sendo imputada pela fé.
Tal consideração é estranha ao
texto bíblico lido correntemente, mas fica interessante após a análise de
Piper, e não introduz, em linhas gerais, um erro, já que a justiça de Deus é
externa ao homem, e essa justiça é aplicada no homem, conforme será visto mais
adiante. Então, nessa perspectiva as energias gastas por Piper em sua obra não
serão eficazes para fazê-la resistir em seu ponto fulcral, e, pelo que está
posto, ela será abalada.
A justiça de Deus
No primeiro capítulo de Romanos,
no verso 17, está escrito: “Porque nele
se revela a justiça de Deus, que se obtém pela fé e conduz à fé.” Por essas
palavras, a Escritura está mostrando que há a justiça de Deus extrínseca ao
homem, e que é comunicada ao homem por meio da fé. Por essa visão, a fé é um
instrumento para receber a justiça de Deus, e que a mesma justiça divina
conduzirá o homem à fé.
Posto assim, é correto o que
Piper defende, que a fé é “o instrumento pelo qual alguém é justificado:
Romanos 3,28.30; 4,11; 5,1.2; 9,30”. Ao mesmo tempo, porém, o que é afirmado
por Santo Tomás é de extrema importância: a fé não merece a justiça, mas que o
ato de crer é o primeiro ato de justiça que Deus realiza nele, ou seja, no interior do homem.
Dessa forma, está harmonizada a
fé como justiça imputada por Deus para o recebimento da justiça de Deus, que
não está no homem, mas que vem de Deus, sendo a fé um instrumento apenas e não
uma obra que mereça pagamento, ao mesmo tempo em que essa fé é um ato de Deus
que pela justiça conduz à fé para que o homem vida da fé.
Em Romanos 5,15 está escrito que
“o dom de Deus e o benefício da graça” é concedido a todos. O verso 16 fala do
“juízo de justificação” que é atraído pela graça, e o verso 17 afirma que
“receberam a abundância da graça e o dom da justiça”. Essa recepção por parte do
justificado é uma realidade. Ele é contado como justo porque a graça atraiu o
juízo de justificação para ele, que por sua vez recebeu a graça e a justiça de
Deus.
Assim como o pecado é uma
realidade no homem, e não somente uma imputação, e que reina para a morte,
assim também a graça reina pela justiça
de Deus que está no homem. A graça no homem reina através da justiça para a
vida eterna (Romanos 5,21)
Que a justiça vem de Deus, e não
está no homem, fica mais claro no capítulo 10, versículo 10: “É crendo de coração que se obtém a
justiça...”. Algo que é obtido não pode já estar de posse daquele que o
obtém. Assim, a justiça vem de Deus ao homem justificado.
A ideia de que a fé é a justiça
dentro de nós sendo essa imputada por Deus é o primeiro erro. Da mesma forma, é
um erro pensar que pelo instrumento da fé Deus imputa uma justiça exterior que
não nos é comunicada. Ambos os erros devem ser combatidos.
Gundry parece estacionado na
primeira asserção, e Piper na segunda. Para o último, a justiça recebida pelo
homem seria por meio da imputação apenas, a justiça de Cristo somente contada
como sendo do homem. Essa é a posição energicamente posta em relevo por John
Piper.
No entanto, a justiça de Deus é
comunicada ao homem por meio da fé, pela Palavra da fé que é pregada. (Romanos
10, 5-6.8) Como também está em Gálatas 5,5: “Quanto a nós, é espiritualmente, da fé, que aguardamos a justiça
esperada.”
A justificação e as boas obras na salvação
São Paulo inicia e termina sua
exposição inspirada falando da “obediência da fé” (Rm 5,5; 16,26) Como o
assunto da justificação pela fé transpassa toda a epístola, o tema da
obediência é ponto central da doutrina. Cabe perguntar qual é a relação dessa
acepção da vida cristã com a salvação.
O evangelho é a salvação de todo
aquele que crê. (Rm 1,16) Ao mesmo tempo, a bondade de Deus convida ao
arrependimento: “a bondade de Deus te convida ao arrependimento”. (Rm 2,4) É
necessário crer e arrepender-se.
Por sua vez, o arrependimento
está associado às obras, pois deve-se arrepender-se dos pecados cometidos, das
más obras praticadas. Aliás, o juízo terá em conta as obras: “que retribuirá a cada um segundo as suas
obras.” (Rm 2,16)
A base da justificação é o sangue
de Jesus: “estamos justificados pelo seu
sangue, seremos por ele salvos da ira.” (Rm 5,9) Esse foi o ato de justiça único
pelo qual fomos salvos: “assim, por um
único ato de justiça recebem todos os homens a justificação que dá a vida”.
Por esse motivo, “pela obediência de um
só todos se tornarão justos”. (Rm 5,18-19)
A obediência exigida do cristão é
fundamentada na base de sua justificação, que é o sangue de Jesus Cristo, por
Seu ato de justiça, Sua obediência na cruz.
“Assim como o pecado reinou para a morte, assim também a graça reinaria
pela justiça para a vida eterna, por meio de Jesus Cristo, nosso Senhor.”
(Rm 5,21)
O paralelo pecado > morte x graça
> justiça > vida eterna por Jesus Cristo é revelador. O pecado
reina para a morte, enquanto que a graça reina para a vida eterna. Agora, é o
momento de perguntar como é o reinado do pecado para que conduza à morte, e
como se dá o império da graça para que se obtenha a vida eterna.
Esse é o assunto do capítulo 6,
com a resposta cristalina da Palavra de Deus. Inicia-se com pergunta retórica
do verso 1 e a resposta no verso 2: “Então,
que diremos¿ Permaneceremos no pecado, para que haja abundância de graça¿ De
modo algum.
O pecado não deve mais reinar no
corpo do homem salvo por Cristo, e não se pode mais obedecer aos seus apetites.
(Rm 6,12) O reinado do pecado e a obediência de homem são aí mostrados. A
exortação vem para afastar o homem salvo da queda no domínio do pecado.
A libertação da Lei e a
intromissão sob o domínio da graça levou muitos a pensar que os cristãos podiam
viver livres da Lei, e praticar o que fosse do seu agrado. A isso responde o
verso 15, mostrando que devemos oferecer como servos a quem nos apresentamos
para obedecer, se ao pecado ou à obediência. Ao pecado teremos como fruto a
morte, à obediência receberemos a justiça.
Nesse desenvolvimento, os versos
21 e 22 são suficientes para mostrar a relação da obediência e das obras na
salvação: “Que frutos produzíeis então¿
Frutos dos quais agora vos envergonhais. O fim deles é a morte. Mas agora,
libertados do pecado e feitos servos de Deus, tendes por fruto a santidade; e o
termo é a vida eterna.” Os frutos de antes levavam à morte, enquanto que o
fruto da santidade tem como fim a vida eterna, ou seja, a salvação.
A doutrina bíblica é uma
harmoniosa associação entre a fé e as obras, entre a fé e a obediência, entre
as boas obras e a salvação.
2 Coríntios 5,21 e a imputação
Piper faz um paralelo de 2
Coríntios 5,21 entre Cristo sendo tornado pecado por nós e a justificação em
termos de imputação apenas. Ele afirma que: “Ele foi contado como tendo nosso pecado; nós somos contados como tendo a justiça de Deus.”
É verdade que Cristo não pode
pecar jamais, nem ter o pecado realmente nEle, em Sua Pessoa, como sendo dEle
mesmo, pois não pode moralmente ser um pecador como o homem. Dessa forma, Jesus
padeceu por nós levando sobre Si os pecados do mundo inteiro sobre o madeiro, o
pecado de outros, suportando a punição do pecador enquanto Ele é Santo e Justo.
Com relação ao homem, ele pode
ser moralmente justo, mas não com a justiça de Deus, que não pode produzir, e
por isso a justiça de Cristo é imputada a nós, e nós a recebemos para ofertarmos
em Cristo e produzirmos a justiça para Deus. Não é somente uma imputação.
Portanto, essa passagem não prova
a imputação somente. Outra passagem de Romanos pode esclarecer isso. São Paulo
ensina que como Adão pecou todos pecaram, assim como pela obediência de Jesus
Cristo todos são feitos justos: “Assim como pela desobediência de um só homem
foram todos constituídos pecadores, assim pela obediência de um só todos se
tornarão justos”. A palavra todos significa justamente todos, sem qualquer
exceção.
Não foram todos os homens que
comeram do fruto do paraíso, desobedecendo a Deus. Mas em Adão, como chefe e
cabeça da humanidade, todos pecaram, pois herdam a culpa original, perdida
pelos primeiros pais. Não se trata de mera imputação, pois há uma real afetação
da natureza do homem pelo pecado original.
Assim, também, em Cristo todos se
tornarão justos, não somente por simples imputação, mas tendo o próprio ser
atingido pela graça e pela justiça de Deus em Jesus Cristo, pelo poder
renovador do Espírito Santo.
Justificação e santificação
Piper afirma que a justificação
no pensamento de Paulo nunca
refere-se à santificação. Pode até usar palavras semelhantes, mas não é
interpretada a justificação nesse sentido.
Do Livro: Counted Righteous in Christ. John Piper.
Gledson Meireles.