sábado, 18 de março de 2017

Justificação como imputação: afirmações de John Piper


Em consideração à “base exegética convincente” para a visão tradicional do Protestantismo fornecida por John Piper. Respondendo à tese de Robert Gundry, temos uma análise exegética repleta de informações que auxiliarão a posição defendida e se a mesma concorda com a doutrina da Bíblia.

Para Gundry a fé de Abraão consistiu em sua justiça, mesmo não sendo obra. Dessa forma, explica Piper, a imputação não é creditar algo externo, como defende a doutrina protestante, “mas contar algo que ele tem, a saber fé, para ser sua justiça.” (Piper, p. 56)

Piper percebe que há algo “externo” na estrutura apresentada por São Paulo, enquanto que na proposição de Gundry o que está afirmado é que a própria fé é contada como justiça, o que configura uma interpretação de uma coisa interna que o próprio Abraão possuía.

O verso 4 afirma: “Ora, o salário não é gratificação, mas uma dívida ao trabalhador.” O salário é algo externo que o trabalhador recebe por uma obra realizada com esse fim. Portanto, quando a obra é feita ela é do que a realizou, e o salário é creditado a ele por parte do patrão. Nessa comparação, quando Abraão apenas teve fé, acreditando na promessa de Deus, o Senhor deu-lhe o salário como se a sua fé fosse algo realizado, embora ele não tivesse obra alguma. Dessa forma, a fé foi imputada como se fosse sua justiça, passando como se uma obra tivesse sido feita e ele merecesse agora a retribuição, ou seja, o salário. Mas, agora, na realidade um dom, já que ele não mereceu.

O vero 5 afirma: “Mas aquele que sem obra alguma crê naquele que justifica o ímpio, a sua fé lhe é imputada em conta de justiça”. O homem não tendo obra nenhuma para apresentar a Deus, crendo que Ele justifica o ímpio, “a sua fé” é reputada como justiça.

“O salário não é gratificação”, diz a Escritura, “mas uma dívida”. Portanto, não havendo obra, apenas crendo, na promessa, contra toda esperança (v. 18), como conclui o verso 22: “Eis por que sua fé lhe foi contada como justiça”. Está oferecendo a razão pela qual Abraão teve a fé considerada como justiça.

Essa parece ter sido a conclusão de Gundry, a qual Piper refuta como sendo a apreciação que Gundry pensou ter encontrado em Paulo. Então, adiante questiona: “Would not the wording of verse 4 rather tell us that in Paul’s mind “faith being credited for righteousness” is shorthand for faith being the way an external righteousness is received as credited to us by God—namely, not by working but by trusting him who justifies the ungodly?” (Piper, p. 57)

Piper responde que Deus não credita algo que temos como justiça, mas credita uma justiça que não temos “para ser nossa pela graça através da fé.”

Santo Tomás afirma que Abraão não recebeu a justificação pelas obras da Lei, mas pela fé. As obras do homem não produzem o hábito da justiça que Deus requer, “(...)  pelo contrário, o coração do homem precisa primeiro ser justificado interiormente por Deus, para que ele possa realizar obras proporcionais à divina glória.” (S. Tomás de Aquino, Comentário de Romanos)

Santo Tomás cita 1 Macabeus 2,52. E a magnífica exposição da doutrina: “Then (v. 5) he shows how the eternal award is related to faith, saying, but to one who does not work outward works, for example, because he does not have time to work, as in the case of one who dies immediately after baptism, but believes in him who justifies the ungodly, namely, in God, of whom he says below (8:33): "It is God who justifies," his faith is reckoned, i.e., faith alone without outward works, as righteousness, so that in virtue of it he is called just and receives the reward of justice, just as if he had done the works of justice, as he says below (10:10): "Man believes with his heart and so is justified," according the purpose of the grace of God, i.e., accordingly as God proposes to save men gratuitously: "Who are called according to his purpose (Rom 8:28); "He accomplishes all things according to the counsel of his will" (Eph 1:11).”. Adiante, Santo Tomás esclarece ainda que “not that he merits justice through faith”, e que o ato de crer e o primeiro ato de justiça que Deus realiza nele.

Na incrível exegese do texto de Romanos 4, 5 e 6, Piper afirma que a justificação é a imputação positiva da justiça sem as obras. Com isso, ele tenta refutar a ideia de que a fé estaria sendo tratada com justiça e afirma, pelo contrário, que a justiça externa está sendo imputada pela fé.

Tal consideração é estranha ao texto bíblico lido correntemente, mas fica interessante após a análise de Piper, e não introduz, em linhas gerais, um erro, já que a justiça de Deus é externa ao homem, e essa justiça é aplicada no homem, conforme será visto mais adiante. Então, nessa perspectiva as energias gastas por Piper em sua obra não serão eficazes para fazê-la resistir em seu ponto fulcral, e, pelo que está posto, ela será abalada.

A justiça de Deus

No primeiro capítulo de Romanos, no verso 17, está escrito: “Porque nele se revela a justiça de Deus, que se obtém pela fé e conduz à fé.” Por essas palavras, a Escritura está mostrando que há a justiça de Deus extrínseca ao homem, e que é comunicada ao homem por meio da fé. Por essa visão, a fé é um instrumento para receber a justiça de Deus, e que a mesma justiça divina conduzirá o homem à fé.

Posto assim, é correto o que Piper defende, que a fé é “o instrumento pelo qual alguém é justificado: Romanos 3,28.30; 4,11; 5,1.2; 9,30”. Ao mesmo tempo, porém, o que é afirmado por Santo Tomás é de extrema importância: a fé não merece a justiça, mas que o ato de crer é o primeiro ato de justiça que Deus realiza nele, ou seja, no interior do homem.

Dessa forma, está harmonizada a fé como justiça imputada por Deus para o recebimento da justiça de Deus, que não está no homem, mas que vem de Deus, sendo a fé um instrumento apenas e não uma obra que mereça pagamento, ao mesmo tempo em que essa fé é um ato de Deus que pela justiça conduz à fé para que o homem vida da fé.

Em Romanos 5,15 está escrito que “o dom de Deus e o benefício da graça” é concedido a todos. O verso 16 fala do “juízo de justificação” que é atraído pela graça, e o verso 17 afirma que “receberam a abundância da graça e o dom da justiça”. Essa recepção por parte do justificado é uma realidade. Ele é contado como justo porque a graça atraiu o juízo de justificação para ele, que por sua vez recebeu a graça e a justiça de Deus.

Assim como o pecado é uma realidade no homem, e não somente uma imputação, e que reina para a morte, assim também a graça reina pela justiça de Deus que está no homem. A graça no homem reina através da justiça para a vida eterna (Romanos 5,21)

Que a justiça vem de Deus, e não está no homem, fica mais claro no capítulo 10, versículo 10: “É crendo de coração que se obtém a justiça...”. Algo que é obtido não pode já estar de posse daquele que o obtém. Assim, a justiça vem de Deus ao homem justificado.

A ideia de que a fé é a justiça dentro de nós sendo essa imputada por Deus é o primeiro erro. Da mesma forma, é um erro pensar que pelo instrumento da fé Deus imputa uma justiça exterior que não nos é comunicada. Ambos os erros devem ser combatidos.

Gundry parece estacionado na primeira asserção, e Piper na segunda. Para o último, a justiça recebida pelo homem seria por meio da imputação apenas, a justiça de Cristo somente contada como sendo do homem. Essa é a posição energicamente posta em relevo por John Piper.[1]

No entanto, a justiça de Deus é comunicada ao homem por meio da fé, pela Palavra da fé que é pregada. (Romanos 10, 5-6.8) Como também está em Gálatas 5,5: “Quanto a nós, é espiritualmente, da fé, que aguardamos a justiça esperada.”

 

A justificação e as boas obras na salvação

São Paulo inicia e termina sua exposição inspirada falando da “obediência da fé” (Rm 5,5; 16,26) Como o assunto da justificação pela fé transpassa toda a epístola, o tema da obediência é ponto central da doutrina. Cabe perguntar qual é a relação dessa acepção da vida cristã com a salvação.

O evangelho é a salvação de todo aquele que crê. (Rm 1,16) Ao mesmo tempo, a bondade de Deus convida ao arrependimento: “a bondade de Deus te convida ao arrependimento”. (Rm 2,4) É necessário crer e arrepender-se.

Por sua vez, o arrependimento está associado às obras, pois deve-se arrepender-se dos pecados cometidos, das más obras praticadas. Aliás, o juízo terá em conta as obras: “que retribuirá a cada um segundo as suas obras.” (Rm 2,16)

A base da justificação é o sangue de Jesus: “estamos justificados pelo seu sangue, seremos por ele salvos da ira.” (Rm 5,9) Esse foi o ato de justiça único pelo qual fomos salvos: “assim, por um único ato de justiça recebem todos os homens a justificação que dá a vida”. Por esse motivo, “pela obediência de um só todos se tornarão justos”. (Rm 5,18-19)

A obediência exigida do cristão é fundamentada na base de sua justificação, que é o sangue de Jesus Cristo, por Seu ato de justiça, Sua obediência na cruz.

Assim como o pecado reinou para a morte, assim também a graça reinaria pela justiça para a vida eterna, por meio de Jesus Cristo, nosso Senhor.” (Rm 5,21)

O paralelo pecado > morte  x graça > justiça > vida eterna por Jesus Cristo é revelador. O pecado reina para a morte, enquanto que a graça reina para a vida eterna. Agora, é o momento de perguntar como é o reinado do pecado para que conduza à morte, e como se dá o império da graça para que se obtenha a vida eterna.

Esse é o assunto do capítulo 6, com a resposta cristalina da Palavra de Deus. Inicia-se com pergunta retórica do verso 1 e a resposta no verso 2: “Então, que diremos¿ Permaneceremos no pecado, para que haja abundância de graça¿ De modo algum.

O pecado não deve mais reinar no corpo do homem salvo por Cristo, e não se pode mais obedecer aos seus apetites. (Rm 6,12) O reinado do pecado e a obediência de homem são aí mostrados. A exortação vem para afastar o homem salvo da queda no domínio do pecado.

A libertação da Lei e a intromissão sob o domínio da graça levou muitos a pensar que os cristãos podiam viver livres da Lei, e praticar o que fosse do seu agrado. A isso responde o verso 15, mostrando que devemos oferecer como servos a quem nos apresentamos para obedecer, se ao pecado ou à obediência. Ao pecado teremos como fruto a morte, à obediência receberemos a justiça.

Nesse desenvolvimento, os versos 21 e 22 são suficientes para mostrar a relação da obediência e das obras na salvação: “Que frutos produzíeis então¿ Frutos dos quais agora vos envergonhais. O fim deles é a morte. Mas agora, libertados do pecado e feitos servos de Deus, tendes por fruto a santidade; e o termo é a vida eterna.” Os frutos de antes levavam à morte, enquanto que o fruto da santidade tem como fim a vida eterna, ou seja, a salvação.

A doutrina bíblica é uma harmoniosa associação entre a fé e as obras, entre a fé e a obediência, entre as boas obras e a salvação.

2 Coríntios 5,21 e a imputação

Piper faz um paralelo de 2 Coríntios 5,21 entre Cristo sendo tornado pecado por nós e a justificação em termos de imputação apenas. Ele afirma que: “Ele foi contado como tendo nosso pecado; nós somos contados como tendo a justiça de Deus.”

É verdade que Cristo não pode pecar jamais, nem ter o pecado realmente nEle, em Sua Pessoa, como sendo dEle mesmo, pois não pode moralmente ser um pecador como o homem. Dessa forma, Jesus padeceu por nós levando sobre Si os pecados do mundo inteiro sobre o madeiro, o pecado de outros, suportando a punição do pecador enquanto Ele é Santo e Justo.

Com relação ao homem, ele pode ser moralmente justo, mas não com a justiça de Deus, que não pode produzir, e por isso a justiça de Cristo é imputada a nós, e nós a recebemos para ofertarmos em Cristo e produzirmos a justiça para Deus. Não é somente uma imputação.

Portanto, essa passagem não prova a imputação somente. Outra passagem de Romanos pode esclarecer isso. São Paulo ensina que como Adão pecou todos pecaram, assim como pela obediência de Jesus Cristo todos são feitos justos: “Assim como pela desobediência de um só homem foram todos constituídos pecadores, assim pela obediência de um só todos se tornarão justos”. A palavra todos significa justamente todos, sem qualquer exceção.

Não foram todos os homens que comeram do fruto do paraíso, desobedecendo a Deus. Mas em Adão, como chefe e cabeça da humanidade, todos pecaram, pois herdam a culpa original, perdida pelos primeiros pais. Não se trata de mera imputação, pois há uma real afetação da natureza do homem pelo pecado original.

Assim, também, em Cristo todos se tornarão justos, não somente por simples imputação, mas tendo o próprio ser atingido pela graça e pela justiça de Deus em Jesus Cristo, pelo poder renovador do Espírito Santo.

Justificação e santificação

Piper afirma que a justificação no pensamento de Paulo nunca refere-se à santificação. Pode até usar palavras semelhantes, mas não é interpretada a justificação nesse sentido.
Do Livro: Counted Righteous in Christ. John Piper.
 
Gledson Meireles.



[1] Na perspectiva protestante tradicional, como essa defendida por John Piper, a imputação da justiça poderia ser dita como “recebida” pelo homem, certamente, mas não comunicada, aplicada, derramada no coração do homem, já que tal afirmação doutrinal do Protestantismo tem o caráter apenas extrínseco, declarativo, em Cristo e não no homem. A linguagem poderia ser que a justiça é “do” homem, mas, nos moldes protestantes é entendida por “imputada como se fosse do homem”. Essa doutrina não é encontrada nas Escrituras.

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