terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

Livro: A lenda da imortalidade da alma, sobre 2 Cor 12, 1-4.

 A respeito do tópico: estar fora do corpo.

Na concepção mortalista, onde não existe dualidade, mas o ser humano é entendido como fundamentalmente um ser holista, no qual cada parte, material e espiritual, é apenas aspecto do ser e não algo que se separe, que possa ser separada. Com isso, o significado de “fora do corpo” seria apenas o da imaginação ou de uma experiência ocorrida “no corpo” mas onde se vê algo como se fosse do corpo, distante.

Assim, o arrebatamento de São Paulo ao céu teria sido material, onde o apóstolo foi de fato levado em corpo e alma ao céu, ou teria sido apenas uma experiência mística, onde o mesmo viu coisas do céu em espírito, estando na terra, pois não poderia nunca “sair” e estar “fora” do corpo, já que no monismo holista defendido no livro essa possibilidade não existe. Do contrário, afirma o autor, conceber que algo seja possível fora do corpo seria explicar o texto na perspectiva platônica, onde almas saem do corpo, e que na concepção bíblica isso seria impossível.

Dessa forma, afirma: “Por «fora do corpo», os imortalistas entendem que Paulo só podia estar falando da sua alma ou espírito que teria abandonado o corpo e se projetado em outra dimensão (algo que os espíritas e adeptos da Nova Era chamam de “projeção astral”). Mas isso é o que os imortalistas imaginam partindo do pressuposto do dualismo entre corpo e alma, não o que o apóstolo tinha em mente.

Mas, o mortalismo explica a expressão “fora do corpo” em 2 Cor 12, 2-4 afirmando que o contexto não indica a imortalidade da alma, mas que deve ser entendido como são os textos que falam de “fora do corpo” em 1 Cor 6, 18, ou “fora de si” em Mc 3, 21, ou “em espírito” em 1 Cor 5, 4.

Se o texto grego aqui for de valor para o mortalista, saiba que ele serve para fortalecer o argumento da imortalidade da alma. Pois bem, o texto de 1 Cor 6, 18 foi citado para explicar a expressão “fora do corpo”: “Qualquer outro pecado que o homem comete é fora do corpo, mas o impuro peca contra o seu próprio corpo”. Aqui vemos que o próprio contexto explica que o pecado é “fora do corpo” no sentido de que é cometido contra algo que não está no corpo, mas está no mundo, fora do corpo.

Assim, a impureza, a porneia, a fornicação, é cometida “contra” o próprio corpo. O grego traz a partícula “eis”, que significa que o pecado é feito “ao” corpo, para o corpo, portanto, contra o corpo.

Dessa forma, o próprio corpo sofre com o pecado descrito acima, enquanto que os demais pecados são feitos em relação a outras coisas.

Vejamos agora que o texto grego diz: “ἐκτὸς τοῦ σώματός”, traduzido literalmente como “fora do corpo”. Textos como Mateus 23, 26 traz o termo ektos para falar do que está fora do prato. Em Atos 26, 22 o termo tem o sendo de “senão”, e em 1 Cor 14, 5 significa “exceto”. Portanto, ektos tou somatos e algo exterior ao corpo. Isso confirma o que está no contexto acima explicado.

Mas, eis que em 2 Cor 12, 4, a expressão usada é “χωρὶς τοῦ σώματος”, onde o termo “choris” traduzido por “fora” significa “sem”. Assim é que em Mateus 13, 24 diz que Jesus não fala sem parábolas. Em Mateus 14, 21 choris significa além: cinco mil homens, além das mulheres ou seja, sem contar as mulheres. Em Lucas 6, 49 a expressão “sem fundamento” é expressa com o termo choris.

Portanto, quando São Paulo afirma que não sabe se estava no corpo ou fora do corpo, o sentido mais literal foi que não sabia se estava no corpo ou sem o corpo, o que torna a doutrina da imortalidade da alma mais expressiva para explicar a passagem. Na concepção do apóstolo, é possível experimentar espiritualmente algo sem o corpo.

Porém, há o argumento de que se Paulo estivesse fora do corpo e “jamais teria dúvida” disso. Isso seria algo impossível de não ser notado. Então, São Paulo não sabia se estava no céu fisicamente ou apenas houve um êxtase, onde seus sentidos foram arrebatados, como em Atos 11, 15.

Essa explicação é plausível, é possui em si certa força. Assim, parece um ponto em que é possível explicar sem a doutrina da imortalidade da alma, mas o leitor pode perceber que nela não há nada contra a imortalidade da alma. Pelo contrário, há algo que se explica perfeitamente também pela doutrina da imortalidade da alma. Portanto, pode ser uma passagem neutra nessa discussão. E pelo que foi explicado acima usando o contexto e o texto grego, a posição mortalista se enfraquece ainda mais.

Agora, vejamos explicação que temos do texto citado de Atos 11, 5 com o fundamento da doutrina da imortalidade da alma. Vemos que São Pedro afirma que foi “arrebatado em espírito” e que teve “uma visão” onde algo como uma grande toalha “descia do céu até perto de mim”, diz o apóstolo. Isso significa que ele tinha completa certeza de que estava tendo uma visão do céu, onde um elemento vinha do céu até perto dele.

O verso 8 afirma que ele ouviu a voz que vinha “do céu” e que depois que tudo “tornou a ser levado ao céu” (v. 10). Portanto ele sabia que estava na terra, e que tudo foi um êxtase.

Isso é completamente diferente do que aconteceu com São Paulo, pois ele afirma que foi “arrebatado até o terceiro céu”, ou seja, que esse home foi até o terceiro céu e lá viu coisas impossíveis de serem descritas pela linguagem humana. Houve então um transporte dele até o céu e não um arrebatamento dos sentidos. Não foi nada que veio do céu até ele, mas que ele foi ao céu.

A dúvida então fica no seguinte: se no corpo ou fora do corpo, ou como vimos, se no corpo ou sem o corpo.  Essa expressão aparece duas vezes no verso 2 e 3. Da mesma forma, o fato do arrebatamento ao céu aparece no verso 2 como “arrebatado ao terceiro céu” e no verso 4 como “arrebatado ao paraíso”, afirmando que “ouviu palavras inefáveis”. Portanto, de alguma forma é dito que houve arrebatamento da pessoa mostrando que a mesma esteve lá, só não sabendo como isso foi realizado.

De fato, foram visões e revelações do Senhor (1 Cor 12, 1), mas o apóstolo cede à dúvida se isso foi no corpo ou fora dele, o que é bastante curioso. Ele não estava na terra tendo visão do céu, mas sentiu-se no próprio céu.

Caso não existisse nada possível fora do corpo, apenas o êxtase, como afirma o monismo holista defendido no livro, o apóstolo diria que não sabia se foi ao céu fisicamente ou se teve apenas uma visão do céu. Mas, caso algo fora do corpo seja possível, então o mesmo sabe que esteve no terceiro céu, não sabendo apenas se estava fisicamente lá ou em espírito, ainda que vivo. Esse modo de estar em algum lugar sem o corpo é algo sobrenatural.

A dúvida se explica por ter sido uma experiência muito real, de forma que ele não sabia se estava lá fisicamente ou não. Em um êxtase ele não estaria no terceiro céu, mas apenas estaria vendo coisas do terceiro céu. Essa é a força da interpretação tradicional, já que o apóstolo afirma ter estado no céu, que foi até (ἕως) o terceiro céu.

Tudo converge para a interpretação tradicional, e ainda que a explicação de que foi apenas um “êxtase” seja plausível, ela cria problemas, como foi mostrado, e mostra-se mais fraca.

Gledson Meireles.

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