O cristão católico deve crer na doutrina que o Senhor entregou aos santos (Jd 3). Com relação ao pecado original, esse assunto foi definido, com grande precisão, no século dezesseis, quando a Reforma Protestante ensinava algo diverso sobre esse ponto importante da fé cristã. Neste capítulo vamos entender melhor o que é o pecado original e em que sentido afetou a natureza do homem. E entender o livre-arbítrio.
A doutrina católica ensina
que pelo pecado original Adão perdeu a santidade e a justiça que vinha de Deus,
morreu espiritualmente, ficou sob o império do Demônio, e pela ofensa de
prevaricação sua natureza foi mudada no corpo e na alma para o pior. Esse
pecado é propagado a todo ser humano, pois pecamos em Adão. Todos pecaram (Rm
3, 23). O pecado original causou desordem na natureza, criando a
concupiscência.
A concupiscência é a
inclinação para o pecado, e é na Escritura algumas vezes chamada de pecado, não
porque seja um pecado como falta pessoal presente na natureza, mas porque é
pecado por nascer do pecado e levar ao pecado. No nascido de novo não há pecado
original, apenas concupiscência. A concupiscência não poder ser confundida com
o pecado original. Ela provém do pecado original, é uma consequência dele, e
está sempre na natureza humana decaída. O pecado original, por sua vez, é
perdoado por Jesus Cristo. A concupiscência permanece.
Pelo pecado original o
livre-arbítrio não foi perdido. Entretanto, o livre-arbítrio foi atenuado,
enfraquecido, e escravizado pelo Maligno. Isso não significa que foi extinto.
Também não é verdade que todas as obras que o homem faz, antes de ser salvo,
sejam pecados. O que Romanos 14, 23 afirma é que tudo o que não é feito na fé é
pecado, não significa que todos os atos dos não justificados são pecados, mas
que todos os atos feitos contra a fé, não de acordo com a consciência, são
pecados. Quem não discerne o que está fazendo, peca. Existiu até mesmo a ideia
de que as boas obras feitas pelos justificados são pecados. Essas heresias
foram condenadas no Concílio de Trento.
Dessa forma, a natureza
humana foi radicalmente corrompida, de modo que o homem não pode por suas
próprias forças fazer algo agradável a Deus. A concupiscência corrompeu toda a
natureza humana. É como afirmar que toda a natureza humana está corrompida, mas
não está corrompida completamente. De
fato, podemos compreender as verdades religiosas, as verdades da fé. Também
podemos fazer atos moralmente bons. Da mesma forma, podemos conhecer a Deus com
certeza pela razão. Por isso, não é correto afirmar que a natureza foi
totalmente corrompida. O Catecismo, no parágrafo 405, ensina que a natureza
humana “não é totalmente corrompida”.
Se assim fosse, a natureza
do homem teria uma essência de pecado, e não uma natureza manchada pelo pecado.
Para a teologia reformada a razão e o entendimento estão cegos, e os
sentimentos pervertidos. Charles Hodge afirma que Adão foi “inteiramente e
absolutamente arruinado”.
A questão não é fácil de ser
resolvida, visto que as explicações católicas são sempre negadas pelas
teologias não católicas. Alguns chegaram a pensar que a Igreja Católica negasse
o pecado original, por afirmar que a concupiscência não constitui o pecado.
Então, o silogismo seria assim:
1. A concupiscência não é
pecado no homem nascido de novo.
2. A regeneração não muda a
natureza humana.
Então, a concupiscência não
é pecado nos não regenerados.
No entanto, o que foi dito
acima desfaz essa confusão, porque ensina que a concupiscência é consequência
do pecado, e não o próprio pecado. Dessa forma:
1. A
concupiscência não é pecado em si, mas resultado do pecado original.
2. O
pecado original é perdoado por Cristo.
Então,
os regenerados não têm o pecado original (mas possuem concupiscência).
Pelo menos uma das
dificuldades está resolvida, que seria mostrada como inconsistência doutrinal.
O
que então é a depravação total?
Embora a total inabilidade
da natureza humana seja dita como objeto da ira, inadequada para a graça,
inclinada ao mal, morta em pecados, escrava do pecado, como está no artigo 3 do
Sínodo de Dort, afirma também, no artigo 4, que há certa luz de natureza, mesmo
após a queda. Então, o homem tem noções sobre Deus, das coisas naturais, da diferença
entre bem e mal, o desejo para o bem, embora isso não seja suficiente para
chegar à salvação. Ainda, a teologia reformada nega o livre-arbítrio, que teria
sido extinto no pecado original.
No entanto, mesmo que não
afirmando que a liberdade do homem seja é forçada ou determinada ao bem ou ao
mal, mas que o homem faz isso livremente, e que na salvação pela graça o homem
é libertado do pecado, mas continua nele a corrupção do pecado, é preciso
entender mais, para conhecer a doutrina reformada ou calvinista. Isso pode ser
feito pelo contraste com alguns pontos da doutrina católica.
Afirmando esse tipo de
liberdade, o cristão reformado livra-se da acusação de determinismo moral e de
fatalismo. No entanto, no seu debate com o arminianismo a doutrina reformada
nega a habilidade do homem de recusar a
graça.
O silogismo arminiano seria
o seguinte:
1. O homem pode aceitar e
recusar a graça.
2. Se cooperar será salvo,
se não cooperar será condenado.
Então o homem poder afirmar
que é mais justo que o seu próximo por ter feito a coisa certa, e tem algo para
gloriar-se.
E como a Sagrada Escritura
afirma que somos salvos gratuitamente pela graça, e ninguém pode gloriar-se
(cf. Ef 2,8-9), o reformado rejeita essa doutrina arminiana.
Por isso, a doutrina
reformada ensina que:
1. O
homem não pode recusar a graça.
2. Deus
põe a fé no coração, liberta e inclina o homem para Cristo.
Então, o homem é eficazmente
salvo, e não pode gloriar-se, pois o ato é somente de Deus. Essa doutrina será
analisada mais adiante.
A ideia de que o homem vai a
Cristo, livremente, mas deve ser compelido a ele, do contrário não irá, e que
Deus deve atrair, no sentido de arrastar o homem a Cristo, é algo que pode ser
entendido como contra a vontade, embora o calvinismo afirma que Deus muda a
vontade do homem de modo que ele queira ir. A vontade livre de coerção seria
escrava do pecado. Então, Deus efetivaria algo na vontade. Desse modo, torna-se
impossível resistir à graça finalmente, pois ela sempre vence e é eficaz. O
homem pode, e frequentemente resiste, até que eficazmente é transformado e
levado a Jesus.
Por isso, Charles Spurgeon
afirma que a liberdade é auto-determinada. Ninguém exerce coerção sobre a
vontade do homem, mas ele mesmo faz o que quer fazer. Estando o homem morto em
pecado, sua escolha é sempre contra Deus e a graça divina.
Será que o homem pode ou não
recusar a graça? Poder aceitar livremente constitui fundamento para gloriar-se?
São essas perguntas que devem ser feitas, mas com frequência reformados não são
convencidos pelas respostas: o homem pode recusar a graça, e o simples gesto de
receber um presente não é fundamento de mérito! Ninguém pode jactar-se de ter
sido salvo gratuitamente. E isso faz sentido. Mas, não é só por isso que a
doutrina reformada é refutada.
Pelo contrário, sabemos que
o homem pode agir livremente porque não perdeu o livre-arbítrio Se ele não o
perdeu, está no dever de responder à graça de Deus, afirmando e aceitando ou
negando e recusando. A graça vivifica, atrai, liberta, capacita o homem para
que responda ao chamado. Essa graça é suficiente, e uma vez que é aceita pode
tornar-se eficaz. Ainda assim, o homem continua livre, cooperando com a graça.
Spurgeon afirma que antes da
conversão somos livres para pecar, e após a conversão somos livres para pecar e
obedecer a Deus. Agora, como pode o ser humano ser livre para pecar e ser
impossibilitado de pecar a ponto de cancelar a relação com Deus?
Como o pecado é possível
após a regeneração, justificação e salvação quando não há possibilidade de cair
da graça? De fato, afirmar que o homem não pode recusar a graça revela a premissa
errada. Todo o edifício cai. O homem tem livre-arbítrio.
Se a liberdade de coerção é
a única que o homem possui, segundo Charles Spurgeon, então deve-se responder
com Santo Afonso, que essa liberdade até as bestas possuem. Os animais fazem o
que querem, segundo seus instintos, não sendo levadas a nada senão sua própria
inclinação.
O livre-arbítrio é a
condição de poder fazer e deixar de fazer, fazer qualquer coisa e também o
oposto, o bem ou o mal. Só não pode escolher a Deus se não for auxiliado pela
graça.
Outra verdade que deve ser
bem entendida é que Deus é a causa primeira de tudo o que existe, e o homem é
causa secundária. Assim, o homem pode produzir ações a partir de si mesmo, pois
lhe foi dada por Deus essa liberdade.
No entanto, Deus é soberano
absoluto de todas as coisas, e age em toda ação humana. Isso é profundo: Deus
age em todos os atos humanos, mas não nos atos humanos. Ele age no homem quando
o homem faz o bem, aperfeiçoando e orientando sua bondade, efeito da graça e
obediência.
Mas, quando o homem peca Deus
age usando seu próprio pecado para punir e transformar sua maldade em um bem.
As duas ações, de Deus e do homem, coexistem. Deu pode efetuar o bem, não
interferindo no livre-arbítrio humano. No entanto, Deus não efetua a ação má no
homem, pois isso é impossível por causa da Sua santidade. Nem determina atos
morais maus. Ele pode agir no homem enquanto esse faz um ato mal, sendo
responsabilidade única do homem, enquanto Deus pune e faz do mal um bem.
Desse modo, quando os irmãos
de José venderam-no para os ismaelitas, Deus agiu ao mesmo tempo orientado
aquela maldade para um bem, levando José ao Egito para que futuramente salvasse
seu povo. Deus não foi o determinante da ação de vender José. Foram atos
livres, partindo dos irmãos de José. Deus agiu ali para determinar o resultado
segundo Seu plano. As ações de Deus são sempre para o bem.
Quando o Faraó endureceu o
coração, Deus agiu ali também fazendo com que aquele pecado, endurecendo o
coração como punição, pois o Faraó já era um homem de duro coração, para que
servisse para a libertação do povo. E assim aconteceu.
Em 2 Timóteo 2, 25-26 está
escrito: “É com brandura que deve corrigir os adversários, na esperança de que
Deus lhes conceda o arrependimento e o conhecimento da verdade, e voltem a si,
uma vez livres dos laços do demônio, que os mantém cativos e submetidos aos
seus caprichos.”
Primeiro a correção. Depois,
esperar que Deus conceda a graça do arrependimento e conhecimento da verdade.
Então, libertado assim, o homem poderá responder. Tudo isso supõe o
livre-arbítrio (possibilidade de correção) e a graça (esperança em Deus). É
possível também ler essa passagem sob a ótica reformada. A correção é usada
como instrumento da graça de Deus. Assim, o ato soberano da graça liberta o
homem.
Essa leitura concorda com a
doutrina católica de que o homem sozinho, pelas próprias forças, não sai dos
laços e do cativeiro do Maligno. Concorda que o homem responde livremente.
Concorda que uma vez liberto poderá servir a Deus, mas ainda poderá cometer
pecados. Discorda, porém, que poderá perder a graça.
Negando o livre-arbítrio
essa é a consequência: de escravo do Demônio o homem passa a ser escravo de
Deus, não no sentido cristão católico, mas como escravo que não pode, ainda que
pecando gravemente, sair da comunhão com Deus, pois o ato soberano divino teria
determinado essa condição.
O livre-arbítrio é expresso
em 1 Coríntios 7, 37, “sem nenhum constrangimento e com perfeita liberdade de
escolha”, e também em 1 Cor 15, 10. São
Paulo fala do “seu” trabalho, e o atribui à “graça”, mas volta a esclarecer
novamente que é “a graça de Deus comigo”.
Além de falar da ação humana e da graça, cooperando, sinergisticamente, afirma
a possibilidade da graça ser vã: “a graça que ele me deu não tem sido inútil”.
Essa noção só é possível reconhecendo o livre-arbítrio. Como ensina Santo
Afonso, Deus quer que trabalhemos um pouco. No artigo que trata da eleição
incondicional o livre-arbítrio é mais uma vez comentado.
Gledson Meireles.
Hm, não conhecia essa posição arminiana oposta ao calvinismo, citada no texto. Você já escreveu algo sobre o arminianismo?
ResponderExcluirOlá Rômulo. Ainda não. Mas, no estudo da doutrina reformada haverá algo em relação ao Arminianismo também.
ExcluirAté mais.