Quando falamos sobre a
Bíblia e a tradição, muitas coisas surgem como divisores entre católicos e
reformados. E todos os protestantes, em geral. Parece que os protestantes
entendem que, aderir à tradição como regra de fé infalível é somar algo à
Bíblia, tê-la até mesmo como menor na escala de regras.
É compreensível que os
protestantes, sabendo da inspiração da Bíblia, não queiram acreditar assim, e
venham a recusar tamanho apego à tradição. Tradição “extra-bíblica” é vista com
muita cautela, muita desconfiança. É sobretudo negada. Por isso, para o
protestante a Escritura é também a sua tradição. Em termos teóricos, é claro.
Assim o é, pois a prática desse conceito é impossível, o que demonstra erro na
teoria. O problema é que, para o cristão católico, a tradição não é extra-bíblica,
no sentido de ser algo diferente ou mesmo contrário a ela, mas a tradição é a
própria Palavra de Deus que não foi escrita na Bíblia.
É o que diz São Paulo em 2
Ts 2,15, onde os cristãos são instados a crer no que está escrito e no que foi
ensinado por via oral. Agora pense: se os apóstolos ensinaram tudo por via
escrita, por que o mandamento de reter as tradições? Se tudo o que mais tarde a
Igreja deveria crer e praticar estaria na Escritura, por que não o disse ali
mesmo, aos cristãos que liam a carta, pois se deviam obedecer ao que estavam
aprendendo por via escrita e oral, deveria a parte oral logo ser escrita para
não ser perdida e esquecida.
O
exemplo do batismo infantil. Para o cristão reformado
tudo o que é necessário foi escrito, a tradição de que fala o apóstolo está na
Escritura. Para o cristão católico, o que foi ensinado oralmente, e que os
apóstolos não escreveram, foi mais tarde escrito por outros, cristãos
primitivos, ficando na tradição. Permaneceu em escritos não inspirados, pois a
única revelação escrita inspirada é a Bíblia. Dessa forma, deve-se estudar a
tradição para conhecer nela a Palavra de Deus. Nem todas as tradições são
palavras de Deus, mas apenas o que desde o princípio foi reconhecido assim. Por
exemplo, o batismo de crianças. Está na Bíblia, de forma implícita, e está na
tradição, explicitamente. Mas a tradição prova que a prática é bíblica. Os
batistas seguem o sola scriptura e
não aceitam o batismo infantil. Mas há quem continue com o sola scriptura e creia dessa forma, batizando bebês. Já são duas
tradições aqui, todas com credos e confissões corroborando a sua intepretação.
Sendo assim, para o cristão
reformado batista, não há possibilidade de mudar sua posição por meio da
leitura bíblica e ao mesmo tempo fundamentá-la na tradição batista. Acontece o
contrário para o cristão reformado presbiteriano, que aceita o batismo de
crianças pequenas, e não pode interpretar essa doutrina de outro modo se deseja
conformar-se à sua tradição reformada. E praticamente é, pelo menos, quase
impossível que aconteça um desses casos.
Outra coisa que o Protestantismo
ensina é a total possibilidade de qualquer um ir à Escritura e entender o que
está ali para a nossa salvação. Isso parece negar que o católico possa entender
esse ensino tão perspicaz, tão claro, de forma que nenhum cristão possa errar
sobre ele. Será pelo fato dos reformados negarem comunhão com os católicos, ou
pensam que os católicos entendem o ensino básico da salvação, mas adicionam
algo à fé, como a tradição por exemplo?
Para os católicos, ninguém
pode interpretar a Bíblia como bem entende, segundo o próprio parecer. Isso
está proibido em 2 Pedro 1,20-21. Mas, eis que os protestantes entendem isso
como se o próprio magistério fizesse interpretação ‘particular’, coisa proibida
no texto. O mesmo texto usado por cristãos católicos contra o livre-exame é
usado pelos cristãos reformados contra o magistério eclesiástico. Formidável. Contudo,
o protestante deve concordar com um dado. Ninguém pode querer fundamentar o que
bem entende na Bíblia. Kevin Vanhoozer afirma, falando da perspicácia da
Bíblia, que não há carte blanche
interpretativa.
Como resolver isso, se o
protestante vai à fonte e entende que o texto confronta a ideia de magistério
infalível? Certamente o melhor é compreender a posição do reformado, voltar ao
texto é verificar se é isso mesmo que a Bíblia ensina.
O cristão reformado entende
que sua posição de cristão o possibilita beber da fonte, ler a Escritura e dela
ter Palavra de vida eterna, sem intermediários. O magistério eclesiástico seria
um empecilho, e seus membros seriam como que um corpo que procura ser superior
à Palavra, por conceder autoridade e sentido à Bíblia, dando à sua
interpretação o caráter normativo. Assim, magistério estaria fazendo uma
interpretação toda sua, o que não obrigaria a ninguém mais. Seria só mais uma
interpretação particular. Se esse é o caso, não há como ser obediente ao
magistério.
No entanto, o magistério
eclesiástico é aquele que deve zelar pela interpretação correta a Escritura,
onde o sentido bíblico original é compreendido e ensinado, e por isso o
magistério tem o dever de proteger contra falsas intepretações, aquelas que
negam o sentido verdadeiro da Bíblia. Por isso, o magistério é servo da Bíblia,
e não aquele que confere autoridade a ela, pois a autoridade da Bíblia é
intrínseca, dela mesma, proveniente da sua natureza de Palavra de Deus.
O cristão católico respeita
a Bíblia com a maior das reverências, e tem sua tradição, e o cristão reformado
a tem também. A aproximação dela é que é diferente.
Os
judeus de bereia. Em Atos 17,11 está escrito que os judeus de
Bereia foram mais nobres que os de Tessalônica, por examinarem as Escrituras
para certificar-se se as coisas eram da forma que São Paulo estava pregando.
Esse é um dos textos básicos do Protestantismo, citado por teólogos,
interpretado na tradição protestante como exemplo do livre-exame. Dessa forma,
uma interpretação contrária a isso está contrariando a tradição reformada.
O cristão católico não
interpreta Atos 17,11 assim. A razão é que os apóstolos eram inspirados,
ensinavam oralmente e por escrito a mesma fé, e não aceitariam ser confrontados
por interpretações particulares.
Os bereanos não tinham o
Novo Testamento, para lerem e interpretarem as palavras de um apóstolo em
comparação com outro ou com o restante da Bíblia, analisando se estava tudo
correto, antes de aceitar o conteúdo da fé. O que tinham era o Antigo
Testamento. Quando Paulo pregava, iam às Escrituras e verificavam se o apóstolo
estava de fato ancorado nelas. Antes de converterem-se. Antes de serem
convertidos. Muitos deles, fazendo isso, foram convertidos. Portanto, eram
judeus não-convertidos fazendo exame das Escrituras, e não cristãos. Basta ler
todo o capítulo e verá que essa é a intepretação correta da passagem, que não
ensina o livre-exame.
Outro
texto é o de 2 Tm 3,14-15. A Escritura é toda inspirada. Não está
escrito que só ela é a regra de fé. As interpretações que assim o fazem vão
além do que está escrito. Nada obsta que exista a tradição que explique a
Escritura, o que não faz da Escritura algo menos que Palavra de Deus. A
passagem não nega a tradição. Afirmar que a Escritura é inspirada, útil e que prepara para toda boa obra não nega a tradição. A
tradição não pode ensinar nada que não esteja na Escritura, ou que seja
contrário a ela. Portanto, o texto alinha-se com a existência da tradição.
Gledson Meireles.
Nenhum comentário:
Postar um comentário