quinta-feira, 28 de maio de 2020

A doutrina do batismo

O batismo cristão é um sacramento fundamental, necessário para a salvação. Sua doutrina é clara, extensamente  nas Escrituras, e é altamente valorizado na Igreja Católica.
Por isso, o apologista protestante Norman Geisler, que sempre lembrava ser conhecedor da doutrina católica, afirma que se a doutrina do batismo, como entendida no catolicismo, se fosse refutada a Igreja Católica teria mais a perder do que as demais. Isso ele afirmou considerando a doutrina da regeneração batismal que é também ensinada pelos luteranos, anglicanos e metodistas. No entanto, a posição católica é única. Pois bem. Será que Geisler pôde refutar esse ponto do Catolicismo?
Vejamos. Geisler afirmou que a posição reformada e batista é mais consistente. Isso talvez seja devido à pouca compreensão do que realmente a doutrina católica do batismo representa, apesar de alguém afirmar que tem familiaridade com o Catolicismo. Nas questões de fé é preciso crer para compreender. E, não devemos nos esquecer, compreender para crer.



Se o batismo é necessário para a salvação?

Objeção 1: Parece que o batismo não é necessário para a salvação. Pois a Escritura afirma que o novo nascimento vem pelo ouvir a Palavra de Deus (1 Pedro 1, 23), e os que são batizados em Atos 2, 41 ouviram a Palavra. Portanto, não é necessário o batismo para ser salvo.

Objeção 2: Em Atos 2:38 parece que o sentido do texto “para a remissão” dos pecados seria “por causa da remissão” dos pecados. Portanto, o batismo não é necessário para a salvação, mas porque houve a salvação.

Objeção 3: A Escritura afirma que aquele que crê será salvo (Rm 1, 16; Jo 3, 18). Em nenhum lugar está escrito que aquele que não for batizado será condenado. Assim, somente a fé seria necessária.

Objeção 4: O apóstolo Paulo afirmou que foi enviado para pregar e não para batizar (1 Cor 1, 17). E o evangelho é o poder de Deus para salvação daquele que crê. Portanto, o batismo não é necessário para a salvação.

Objeção 5: O batismo é obra de justiça (Mt 3, 15). Em Tt 3, 5 é dito que não somos salvos por obras. Dessa forma, o batismo não é necessário para a salvação.

Objeção 6: Muitos textos bíblicos apontam a salvação somente pela fé, como João 20, 31; João 3, 16; e 18, 36. Eles não falam do batismo.

Objeção 7: O texto de João 3, 5 é espiritual, pois em Tito 3, 5 não há referência à água do batismo, mas à regeneração espiritual do crente, usando figuradamente a “lavagem” espiritual, e não a salvação por obras como o batismo.

Objeção 8: O batismo vem depois da salvação. De fato, Paulo foi convertido em Atos 9, e foi enviado a Damasco apenas para receber o envio. Assim, ele recebeu o perdão no caminho de Damasco, e o batismo é referência a esse perdão.

Objeção 9: Parece que o batismo não é essencial, pois em 1 Pedro 3, 21 não é dito para limpar o pecado original, mas da má consciência.

Resposta à objeção 1: O texto de 1 Pedro 1,23 afirma que a regeneração se dá pela Palavra de Deus, que é semente da vida eterna. No entanto, Jesus afirmou que o novo nascimento acontece pela água e pelo Espírito (João 3, 5).  Por isso, o batismo é um meio da graça divina e realizado mediante a fé na Palavra. Consequentemente, o batismo é o sacramento que opera a remissão dos pecados e recebimento do Espírito.

Resposta à objeção 2: São Pedro acabava de ouvir a pergunta: “Que devemos fazer irmãos?”, e respondeu com a exigência do arrependimento e do batismo. Ainda, o contexto não mostra que eles já estavam salvos e que deveriam ser batizados para mostrar essa salvação, mas deviam ser batizados para a remissão dos seus pecados. Entretanto, os textos sobre o batismo mostram a remissão dos pecados no momento do batismo.

Resposta à objeção 3: Jesus ensinou que “quem crer e for batizado será salvo”. Somente quem não crê já está inapto a receber o batismo, e assim receber a salvação (Mc 16,16). Portanto, o batismo é necessário à salvação.

Resposta à objeção 4: Jesus enviou os apóstolos para pregar e batizar: Ide, pois, e ensinai a todas as nações; batizai-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo (Mt 28, 19). O que São Paula estava afirmando é que sua missão principal, como apóstolo inspirado, era pregar, pois outros podiam também batizar. O apóstolo afirmou não ter batizado nenhum deles. E o motivo de ter dito isso era por causa das divisões e daqueles que estavam dizendo “Eu sou de Paulo”.

Resposta à objeção 5: Jesus estava referindo-se ao cumprimento de toda a justiça que Ele veio cumprir. O batismo cristão é obra de Cristo em nós, e não obra nossa. Portanto, o batismo é necessário para a salvação.

Resposta à objeção 6: Os textos bíblicos devem ser lidos em sua inteireza, no contexto local e no contexto geral. Outros textos mostram a necessidade do batismo para a salvação, o que completa os textos que mostram a fé como pré-requisito para o batismo.

Resposta à objeção 7: Jesus afirmou que o nascimento é pela “água” e pelo “Espírito”. Em Tito 3, 5 o mesmo ocorre: “ele nos salvou mediante o batismo da regeneração e renovação, pelo Espírito Santo”. O banho referido já supõe a água, e a regeneração é o efeito batismal, operado pelo Espírito Santo naquele ato sacramental.

Resposta à objeção 8:  O texto afirma que o perdão foi dado no momento do batismo e não no caminho de Damasco. O Senhor enviou Ananias para curar e batizar Paulo. Ele recuperou a vista e foi batizado (Atos 9, 18). Ananias diz a Saulo: “Recebe o batismo e purifica-te dos teus pecados” (Atos 22, 16). Portanto, o batismo é o momento em que os pecados são perdoados.

Resposta à objeção 9: O texto de 1 Pedro 3, 21 é claro ao afirmar que o batismo salva. O texto compara a água do dilúvio com do batismo, portanto com a água batismal, e afirma que o mesmo salva. O pecado causa a má consciência, por causa da falta de paz com Deus (cf. Rm 5, 1.5), e por isso o perdão do pecado proporciona uma boa consciência.
 
Gledson Meireles.
 
 

quarta-feira, 20 de maio de 2020

Capítulo 6: Quem liderou o Concílio de Jerusalém?


Capítulo 6

Quem liderou o Concílio de Jerusalém?

 Este artigo refuta o capítulo 6 do livro A História não contada de Pedro.

Do Concílio de Jerusalém o livro ensina que foi um momento onde todos discutiram, em igualdade, dando seu parecer, sem existência de um papa. Haveria assim um espaço “democrático” na Igreja antiga, conforme interpreta o autor. Tudo no intuito de negar a presidência de São Pedro no Concílio de Jerusalém.

O argumento é que se Pedro fosse infalível deveria ter sido consultado antes de tudo, e resolvido a questão. Essa suposição revela desconhecimento da doutrina da infalibilidade. Isso é importante, e fundamental.

O autor quer provar que não havia liderança maior na Igreja primitiva, que não havia um “papa”, e que todos seriam iguais em autoridade, resolvendo democraticamente as questões doutrinais, e que mesmo Tiago não era um papa, mas alguém que naquele momento exerceu autoridade maior.

No entanto, pelas observações notadas em toda a argumentação, o autor, na ânsia de destronar Pedro, colocou Tiago, contra sua (do autor) intenção acima ressaltada, colocou São Tiago como o maior em autoridade, o que decidiu toda a questão, o que julgou, o que confirmou, o que encerrou, o que determinou toda a questão conciliar. Ele teria sido aquele que não poderia ter falado antes, por ser líder, pois quando o líder fala acaba a reunião.

“Tiago falou está falado. Tiago disse, questão encerrada”.

      Tiago teria proferido o discurso decisivo! Pedro e os demais teriam dado “opiniões”. Pedro “opinou” depois que outros falaram, e se fosse o chefe a reunião teria sido terminada. O chefe fala por último.

Com essas argumentações, o autor faz de Tiago um líder máximo, quando na verdade iniciou o assunto falando de democracia, onde todos têm igual autoridade. São Tiago ganhou status de juiz, determinante das opiniões tratadas na reunião, quando na mesma opinião do autor todos eram iguais na resolução do problema. Por que então não foi Tiago, nesses termos, impostos pela própria argumentação do autor, por que não foi ele inquirido pessoalmente e resolvido o problema? Por essa observação pode-se de antemão indicar que há erro importante nessa tese.

Sabe-se que são Tiago era bispo daquela Igreja, e que era uma das personalidades mais influentes da Igreja Católica, no primeiro século, sendo considerado como uma das colunas, junto com Pedro e João.

Dessa forma, não é estranho que no momento do Concílio sua posição fosse destacada. No entanto, não se pode afirmar que o mesmo “liderou” o Concílio.

Os critérios que o livro aponta para dirimir a questão de quem foi a autoridade principal do Concílio em Jerusalém não são satisfatórias uma vez que se analisa o contexto.

“Iremos analisar cada um dos pontos apresentados acima. Se o leitor tiver paciência e estiver com a mente aberta à verdade, verá que é necessário um verdadeiro assassinato e sepultamento da lógica para não colocar Tiago no papel de liderança do Concílio da Igreja, o que desmonta com a pretensão romanista de que Pedro era o papa e que foi aquele que liderou tal Concílio.” (p. 40)

Dessa forma, não se pode esperar, naturalmente, que o autor seja convencido pela presente resposta, uma vez que está convicto de ter apresentado toda a verdade sobre o assunto. Para quem não está fechado ao estudo, e como afirma o próprio livro, quem “estiver com a mente aberta à verdade”, é importante que leia e raciocine sobre cada ponto, e abrace o que for finalmente verdadeiro. Que o autor do livro esteja entre esses, pois para Deus nada é impossível. Por Nosso Senhor Jesus Cristo.

Isso se pode esperar, se o autor ler a presente resposta e a estudar com afinco.

Uma das razões que o livro aponta para a supremacia de Tiago no Concílio é que a pessoa mais importante discursa por último, porque “É aquela que dá a palavra final, a decisiva, a irrefutável.” (p. 40)

E explica: “No caso de Atos 15, vemos que Pedro já havia discursado nos versos 7 a 11, mas mesmo assim a questão ainda não havia sido decidida e nem a discussão dada como encerrada: “Depois de muita discussão, Pedro levantou-se e dirigiu-se a eles (...) Toda a assembléia ficou em silêncio, enquanto ouvia Barnabé e Paulo falando de todos os sinais e maravilhas que, por meio deles, Deus fizera entre os gentios (...) Quando terminaram de falar, Tiago tomou a palavra e disse: Irmãos, ouçam-me...” (Atos 15:7,12,13)” [ênfase do autor]

No entanto, contrariamente ao que foi apresentado acima, deve-se ter em mente que a questão foi decidida no verso 7:

E, havendo grande contenda, levantou-se Pedro e disse-lhes: Homens irmãos, bem sabeis que já há muito tempo Deus me elegeu dentre nós, para que os gentios ouvissem da minha boca a palavra do evangelho, e cressem.

Assim, “Então toda a multidão se calou....

Houve um silêncio após Pedro falar. Pedro LEVANTOU-SE. Prestemos atenção a essas palavras, a esses sinais no texto sagrado. Depois desse silêncio não houve mais discussão, não ouviu-se nenhum barulho, mas apenas as narrações de Barnabé e Paulo, e depois Tiago:

E, havendo-se eles calado, tomou Tiago a palavra, dizendo...

Que ponto fundamental foi decisivo? A resposta é clara, pois se trata da eleição de São Pedro como aquele que abriu as portas do Evangelho da salvação aos gentios:

Homens irmãos, bem sabeis que já há muito tempo Deus me elegeu dentre nós, para que os gentios ouvissem da minha boca a palavra do evangelho, e cressem. (v. 7) E, ainda, que Deus “não fez diferença alguma entre eles e nós, purificando os seus corações pela fé”. (v. 9)

Essas palavras são retomadas por são Tiago, não como quem as aprova e lidera a reunião (o autor discorda), mas como concordância (nisso o autor concorda), seguida pela mesma opinião de todos os presentes: “Simão relatou como primeiramente Deus visitou os gentios, para tomar deles um povo para o seu nome.” (v. 14)

“Por isso julgo que não se deve perturbar aqueles, dentre os gentios, que se convertem a Deus.” (v. 19)

Portanto, questionando sobre quais palavras dirimiram a questão, não se pode afirmar outra coisa que não a sentença dos vv. 7 e 9. O mesmo ensino foi acatado por são Tiago, em plena concordância, e sumariado na Epístola Conciliar.

v. 7: “E, havendo grande contenda, levantou-se Pedro e disse-lhes: Homens irmãos, bem sabeis que já há muito tempo Deus me elegeu dentre nós, para que os gentios ouvissem da minha boca a palavra do evangelho, e cressem.”

v. 8: “E Deus, que conhece os corações, lhes deu testemunho, dando-lhes o Espírito Santo, assim como também a nós;”

V. 9: “E não fez diferença alguma entre eles e nós, purificando os seus corações pela fé.”

V. 10: “Agora, pois, por que tentais a Deus, pondo sobre a cerviz dos discípulos um jugo que nem nossos pais nem nós pudemos suportar?”

V. 11: “Mas cremos que seremos salvos pela graça do Senhor Jesus Cristo, como eles também.”

V. 19: “Por isso julgo que não se deve perturbar aqueles, dentre os gentios, que se convertem a Deus.”

v. 28: “Na verdade pareceu bem ao Espírito Santo e a nós, não vos impor mais encargo algum...”

São Pedro falou autoritativamente: “por que tentais a Deus?”, contra os judaizantes naquele Concílio.

Basta pensar naqueles que tinham a opinião de que a circuncisão e a Lei eram necessárias para ser cristão. Suas palavras eram confirmadas pelas Escrituras. O verso 28 confirma o que está nos vv. 7 a 10, e que havia sido concordado por são Tiago no v. 19.

Assim, são essas as palavras fundamentais que resolveram a questão: os gentios convertidos devem ser circuncidados (e observar a Lei Mosaica) para serem salvos? Foram as palavras de São Pedro que disseram: Não. A questão foi resolvida.

A resposta foi negativa, e são Pedro afirmou que seria tentar a Deus impor a Lei sobre os pagãos. São Tiago concorda e cita as Escrituras no mesmo sentido. Quem poderia discordar disso, quando Deus havia escolhido Pedro como apóstolo dos judeus e gentios?

O verso 28 (e também o 29) conclui o mesmo que foi pregado pelo chefe dos apóstolos. Obviamente, o concílio define de modo infalível, por ser guiado pelo Espírito Santo. E com Pedro todos os presentes, em comunhão, anunciam a Palavra de Deus. É isso que é exigido para um concílio ecumênico infalível.

O livro afirma incorretamente: Porém, vemos que depois de Pedro ainda houve debate na assembleia (v.12), e foi somente quando Tiago tomou a palavra que a questão foi decidida. (ênfase no original.)

Mas, que debate houve após o v. 12? Onde está esse debate? Uma leitura objetiva não pode encontrar debate após esse verso.

Após o v. 11 definitivamente não houve debate. São Paulo e São Barnabé narram suas experiências no v. 12. Tiago fala do v. 13 ao 21, apenas confirmando o que havia sido dito por Pedro.

Contudo, onde houve discussão? Confirmação das palavras somente. Antes de chegarem a Jerusalém, os apóstolos Paulo e Barnabé discutiam com os judaizantes: “Tendo tido Paulo e Barnabé não pequena discussão e contenda contra eles” (v. 2)

O verso 3 revela que são Paulo e são Barnabé narraram a salvação dos gentios diante dos apóstolos, dos anciãos e demais cristãos em Jerusalém.

No entanto, mesmo com a autoridade do apóstolo dos gentios, e com a colaboração de São Barnabé, o que aconteceu quando falaram das suas experiências de evangelização entre os gentios? Foram ouvidos? De forma nenhuma.

Leia o v. 4: Alguns, porém, da seita dos fariseus, que tinham crido, se levantaram, dizendo que era mister circuncidá-los e mandar-lhes que guardassem a lei de Moisés.Pode-se imaginar o que São Paulo e São Barnabé disseram contra os judaizantes. Quantas argumentações, quantas provas tiradas da Palavra de Deus, quantas razões e justificações do seu apostolado!

Portanto, nem mesmo os testemunhos desses grandes apóstolos intimidaram os judeus cristãos de Jerusalém. Tiveram que reunir em concílio para definir a questão. (v. 5)

E, havendo grande contenda, levantou-se Pedro e disse-lhes(v. 7).

Assim, somente após muita contenda no Concílio é que Pedro falou. Após isso, não houve mais discussão. Pelo contrário, Paulo e Barnabé puderem contar novamente o que tinham dito antes do Concílio, e agora sem problemas. São Tiago reforça o que foi dito por São Pedro, e sugere medidas eclesiásticas conforme a decisão. Por isso, esses conselhos foram escritos na Carta Conciliar.

E o argumento do livro continua: “Se fosse Pedro o líder e Tiago fosse seu subordinado, então Pedro não precisaria ter esperado Tiago dar a decisão final, ainda mais sendo a opinião de Tiago tão semelhante à de Pedro!” (p. 41).

O que está escrito na p. 41 do livro (citação acima) está incorreto. Primeiro, Pedro não esperou Tiago falar e decidir. O texto bíblico não afirma isso. Afirma apenas que Tiago falou após Paulo e Barnabé. A opinião de Tiago foi a mesma de Pedro, não alguma outra semelhante: ele concordou com Pedro. Ele acatou a decisão de Pedro.

Ainda: “Note também que, após Tiago ter concluído seu discurso, ninguém mais ousou discordar dele e nem sequer levantar qualquer tipo de oposição!Ou ainda: “Depois que Pedro falou, a questão ainda teve que passar por Paulo e Barnabé, para depois chegar ao veredicto de Tiago e só então ser encerrada – com a palavra de Tiago, e não de Pedro!” (ênfase no original)

Não se sabe onde o autor leu isso no texto. Está claro que após o v. 7 não houve discussão, e não após Tiago falar. Quando são Tiago falou a discussão já havia terminado, com o silêncio seguido pelo discurso de são Pedro, indicando fim de debate. Na verdade, Pedro falou, questão decidida.

Paulo e Barnabé não acrescentaram nada, apenas contaram suas missões entre os gentios. Aliás, puderam contar o que tentaram contar antes, mas não tinham sido ouvidos.

O livro aponta as sugestões de são Tiago escritas na carta conciliar como prova de que as palavras de Tiago tiveram maior peso que as de Pedro. Isso é bastante pueril.

A questão já havia sido decidida, mas ficaram sugestões importantes, concordantes com a definição de que os gentios não deviam ser circuncidados. Eles não precisavam mais da circuncisão, e isso foi decidido pelas palavras de Pedro. Eles não precisavam mais do cumprimento da Lei, e isso foi decidido pelas palavras de Pedro. No entanto, para não causar problemas maiores, sabiamente São Tiago, e certamente com a aprovação de todos os apóstolos e presbíteros, incluiu algumas observações importantes. Como saberiam dessas sugestões se não fossem escritas? Por isso, são elencadas na carta, como algo acidental, não essencial, pois a essência foi dita por Pedro. Basta ver que na carta não é dito nada sobre a salvação pela graça, o que fundamentalmente dirime o assunto.

E continua: “A semelhança é irrefutável e mostra que a carta enviada às igrejas de Antioquia, da Síria e da Cicília é inteiramente baseada no discurso de Tiago, e não no de Pedro! Aliás, deve-se notar que o discurso de Pedro nem sequer consta na carta enviada às igrejas!” (p. 42) O discurso de Tiago não está na carta, mas suas sugestões. O que Pedro falou está na carta, pois é a resposta à questão principal. Já foi demonstrado acima. Essa afirmação, portanto, está refutada.

“Se Tiago estivesse somente relatando uma opinião particular – como fez Pedro – poderíamos não levar isso tão em consideração.” (p. 45) Para o livro Pedro fez apenas uma consideração pessoal, uma “opinião particular”. Não é isso que a Bíblia ensina, pois ele mostra que Deus o “elegeu” para pregar aos pagãos, um fato encontrado na Escritura, não opinião do apóstolo, e isso foi de importância fundamental para resolver a questão, e evitar toda ulterior discussão (v. 12)

“Mas quando vemos que as palavras de Tiago foram adotadas como as palavras do concílio, isto é, como a palavra do corpo apostólico, vemos que Tiago teve o poder de falar por todo o corpo de apóstolos, o que cremos que não seria possível se ele não passasse de uma “sombra” de Pedro!” (p. 45) Assim, o livro apresenta Tiago falando em nome de todos. Não parece uma leitura objetiva, mas uma suposição. À luz do que foi provado antes, essa suposição está refutada.

Ainda: “Pedro só foi começar a falar “depois de muita discussão” (At.15:7). A sua fala, ainda que importante, não foi decisiva. Precisou de Paulo e de Barnabé discursarem depois, com toda a assembleia em silêncio absoluto diante deles (At.15:12),” (ênfase no original). O livro só não explicou porque a assembleia estava em silêncio diante de Paulo e Barnabé. Já mostrado acima, mas repetindo aqui: porque Pedro havia discursado com tanta autoridade, mostrando sua eleição para decidir o assunto, e mostrando que quem pensa diferente estava tentando a Deus, somente após isso houve silêncio.

Nenhuma das posições levantadas por Pedro foram adotadas nas prescrições da carta enviada às igrejas e ele não foi o que mais discursou.” (p. 45)

O livro afirma diversas vezes que a Epístola Conciliar não teve qualquer palavra de Pedro, e assevera que: “Mas os apóstolos, em comum acordo, decidiram não escrever na carta nenhuma palavra dita por Pedro e ainda por cima colocaram exatamente as mesmas palavras proferidas por Tiago.” (p. 44)

Parte do ponto fundamental no discurso de são Pedro: Então, por que agora vocês estão querendo tentar a Deus, impondo sobre os discípulos um jugo que nem nós nem nossos antepassados conseguimos suportar?.

Ponto fundamental no discurso de são Tiago: Portanto, julgo que não devemos pôr dificuldades aos gentios que estão se convertendo a Deus.

Ponto fundamental da carta: Pareceu bem ao Espírito Santo e a nós não impor a vocês nada além das seguintes exigências necessárias....

As sugestões de Tiago deviam ser claramente escritas, pois doutro modo não seriam conhecidas, se a carta do concílio apenas afirmasse o fundamental, de que os gentios não tinham nada a seguir da Lei Mosaica para serem salvos.

Em todo o cenário fica portanto certo que o fundamental foi decidido por São Pedro, e que algumas medidas importantes foram sugeridas por São Tiago.

Ainda volta o livro a fazer a acusação de que a Igreja tenha criado lendas e mitos sobre Pedro: “A figura quase mitológica de Pedro tomou o lugar da figura real do Pedro bíblico, que não liderava concílios e que muitas vezes era colocado em segundo plano ou praticamente ignorado.” (p. 47)

Quem lê a Bíblia, a Patrística e os documentos históricos em geral, fica convencido de que são Pedro é figura maior entre os apóstolos, de forma alguma diminuído, muito menos sendo ignorado.

Ainda, o livro argumenta que são Tiago julgou as palavras de todos, sumariou, aprovou, e definiu fazendo a proclamação final, porque disse: julgo (krino) “que...”.

O Comentário da Bíblia Matthew Henry explica que Tiago deu sua opinião, seu parecer, “não tendo autoridade sobre o resto” (Atos 15,19). A expressão ‘ego krino’ [julgo] pode ser traduzida como apenas opinião. O verbo krino pode ter o sentido que o livro apresenta, mas não necessariamente. Por si só esse termo não define a questão.

O autor interpreta de outra forma: “Este “julgo” não está ali no sentido de “acho que”, mas sim no sentido de exercer juízo [veredicto] sobre um determinado tema.” [...] “Se Tiago estivesse somente dizendo “eu acho isso”, a sua opinião não teria maior valor que a dos outros e a discussão não iria se dar por terminada.” [ênfase no original](p. 47)

Da Homilia que São João Crisóstomo, sobre Atos 15, realizou a respeito do assunto, pode-se aprender que São Tiago era bispo de Jerusalém, por isso falou por último, para ser mais uma testemunha do que havia sido proclamado por são Pedro. Da passagem de Atos 15,19 são João Crisóstomo admite que trata-se naquele momento da autoridade de São Tiago, mas como sabemos, sendo Pedro cabeça dos apóstolos. Portanto, a autoridade de Tiago ali era inferior à de Pedro.

Portanto, o que o livro afirma não se impõe absolutamente: “Não há dúvidas de que Pedro também teve o seu papel no concílio, assim como Tiago e Barnabé também tiveram, mas não chegou nem perto da importância daquilo que foi o discurso de Tiago.” (p. 48)

Pelo contrário, são Tiago teve importância e autoridade, naquele momento, mas não comparadas ao papel de Pedro, pois o discurso de Pedro dirimiu a questão fundamental pela qual se deu o primeiro Concílio da Igreja Católica.

Mesmo diante disso, o livro afirma: “Pedro, porém, foi sombra de Tiago no concílio. Tiago estava longe de ser um “papa”, mas tinha autoridade suficiente para deixar Pedro em segundo plano em um debate.”.

Dever-se-ia ter mais calma ao pensar em escrever tamanha inexatidão. Essa afirmação acima não é fruto de exegese, nem do contexto de Atos 15, mas do pressuposto de que Pedro não exercia a primazia na Igreja. Percebe-se nas argumentações que sempre fica abaixo da superfície dos argumentos a figura de Pedro como de menor importância e autoridade nas ocasiões tratadas, tudo contrário ao texto bíblico. É claro o papel proeminente de Pedro, embora o livro tente virá-lo, contorná-lo e fazê-lo parecer o oposto. O que não conseguiu.

Pode-se perceber das argumentações em torno do papel de Tiago naquele momento, algo como que uma transposição dos modelos de reuniões modernas para os tempos antigos, especificamente da antiguidade das Escrituras do Novo Testamento, que podem ser distintos em pormenores. Sendo assim, como saber das específicas partes que desenrolaram-se no Concílio de Jerusalém, se as mesmas não estão claramente expostas?

Não importa, para o caso, visto que as linhas gerais são delineadas com clareza. Ao começar o Concílio o assunto é apresentado, e há debates com os cristãos judeus ali presentes, sendo ocasião inicial para discussões acirradas em torno da questão.

Após esse momento, “levantou-se” Pedro. O fato de falar em pé não significa em si mesmo autoridade sobre os demais, mas essa atitude é um sinal de autoridade, segundo as circunstâncias. Ademais, ao falar, Pedro lembra sua escolha para anunciar a salvação aos gentios, que Deus não faz acepção de pessoas, e mostra que a salvação é pela graça. Portanto, o discurso de Pedro falou mais em menos palavras que o de Tiago.

Por isso, afirmo mais uma vez, com a Bíblia, a tradição cristã, a história e o bom senso, que Tiago não apresentou a resposta à questão do concílio, não resolveu nada, como tentou apresentar o livro. Se os conselhos de São Tiago fossem mandados sem a decisão de que a circuncisão e a Lei não eram obrigatórias, teriam sido nulas, pois já contidas na pregação dos judaizantes. O que o livro deixou claro foi apenas o papel de autoridade de são Tiago no Concílio, como bispo da Igreja de Jerusalém, não sua autoridade sobre são Pedro. Não sua autoridade sobre a Igreja em geral.

Deve-se lembrar que todos os apóstolos estavam cheios do Espírito Santo, e ainda que fossem fracos, como todo homem, tinham o dom da infalibilidade para pregar e escrever a Bíblia. Nessas circunstâncias entende-se que são Pedro não necessitava de exercer seu poder jurisdicional sobre os apóstolos, embora possuísse esse poder. O que se verifica, porém, é seu primado entre os apóstolos, pressupondo já o seu direito jurisdicional.

Quanto a Gálatas 2,9 há variantes no original, como mostra a Bíblia de Jerusalém. Os Padres da Igreja usualmente também citam Pedro em primeiro lugar, seguido por Tiago e João. Nós códices originais, há vezes em que Pedro é citado primeiro, outras vezes ele não aparece como coluna, mas apenas João e Tiago. Mostraria assim, pelo menos, que não havia preocupação em colocar algum desses, nesse verso, como o primeiro, por se tratar de epístola, e do assunto em questão, e o mesmo não tocar a questão da liderança da Igreja em todo o mundo. No entanto, considerando a defesa de são Paulo do seu apostolado, frente aos judeus cristãos, parece a citação de são Tiago em primeiro lugar dever-se ao fato de ser uma figura destaque em Jerusalém, local de onde os judaizantes saíram. Como atribuíam suas atitudes à autoridade de Tiago, são Paulo mostra que o mesmo Tiago está em comunhão doutrinal com ele, assim como Pedro e João. Apenas para fins de informação. A doutrina do primado está estabelecida.

Cristo Jesus é o nosso único Senhor, Salvador, Legislador, Mestre, Pastor, Pontífice, Pedra da Igreja. É por Ele que Pedro exerceu seu primado, e pelo mesmo fazem os papas.
Gledson Meireles.

sábado, 16 de maio de 2020

O Cristão Reformado: a depravação total

Artigos comentando pontos da doutrina reformada:











O cristão católico deve crer na doutrina que o Senhor entregou aos santos (Jd 3). Com relação ao pecado original, esse assunto foi definido, com grande precisão, no século dezesseis, quando a Reforma Protestante ensinava algo diverso sobre esse ponto importante da fé cristã. Neste capítulo vamos entender melhor o que é o pecado original e em que sentido afetou a natureza do homem. E entender o livre-arbítrio.

A doutrina católica ensina que pelo pecado original Adão perdeu a santidade e a justiça que vinha de Deus, morreu espiritualmente, ficou sob o império do Demônio, e pela ofensa de prevaricação sua natureza foi mudada no corpo e na alma para o pior. Esse pecado é propagado a todo ser humano, pois pecamos em Adão. Todos pecaram (Rm 3, 23). O pecado original causou desordem na natureza, criando a concupiscência.

A concupiscência é a inclinação para o pecado, e é na Escritura algumas vezes chamada de pecado, não porque seja um pecado como falta pessoal presente na natureza, mas porque é pecado por nascer do pecado e levar ao pecado. No nascido de novo não há pecado original, apenas concupiscência. A concupiscência não poder ser confundida com o pecado original. Ela provém do pecado original, é uma consequência dele, e está sempre na natureza humana decaída. O pecado original, por sua vez, é perdoado por Jesus Cristo. A concupiscência permanece.

Pelo pecado original o livre-arbítrio não foi perdido. Entretanto, o livre-arbítrio foi atenuado, enfraquecido, e escravizado pelo Maligno. Isso não significa que foi extinto. Também não é verdade que todas as obras que o homem faz, antes de ser salvo, sejam pecados. O que Romanos 14, 23 afirma é que tudo o que não é feito na fé é pecado, não significa que todos os atos dos não justificados são pecados, mas que todos os atos feitos contra a fé, não de acordo com a consciência, são pecados. Quem não discerne o que está fazendo, peca. Existiu até mesmo a ideia de que as boas obras feitas pelos justificados são pecados. Essas heresias foram condenadas no Concílio de Trento.

Dessa forma, a natureza humana foi radicalmente corrompida, de modo que o homem não pode por suas próprias forças fazer algo agradável a Deus. A concupiscência corrompeu toda a natureza humana. É como afirmar que toda a natureza humana está corrompida, mas não está corrompida completamente.     De fato, podemos compreender as verdades religiosas, as verdades da fé. Também podemos fazer atos moralmente bons. Da mesma forma, podemos conhecer a Deus com certeza pela razão. Por isso, não é correto afirmar que a natureza foi totalmente corrompida. O Catecismo, no parágrafo 405, ensina que a natureza humana “não é totalmente corrompida”.

Se assim fosse, a natureza do homem teria uma essência de pecado, e não uma natureza manchada pelo pecado. Para a teologia reformada a razão e o entendimento estão cegos, e os sentimentos pervertidos. Charles Hodge afirma que Adão foi “inteiramente e absolutamente arruinado”.

A questão não é fácil de ser resolvida, visto que as explicações católicas são sempre negadas pelas teologias não católicas. Alguns chegaram a pensar que a Igreja Católica negasse o pecado original, por afirmar que a concupiscência não constitui o pecado. Então, o silogismo seria assim:

1. A concupiscência não é pecado no homem nascido de novo.

2. A regeneração não muda a natureza humana.

Então, a concupiscência não é pecado nos não regenerados.

No entanto, o que foi dito acima desfaz essa confusão, porque ensina que a concupiscência é consequência do pecado, e não o próprio pecado. Dessa forma:

1.  A concupiscência não é pecado em si, mas resultado do pecado original.

2.  O pecado original é perdoado por Cristo.

 

Então, os regenerados não têm o pecado original (mas possuem concupiscência).

Pelo menos uma das dificuldades está resolvida, que seria mostrada como inconsistência doutrinal.

 

O que então é a depravação total?

Embora a total inabilidade da natureza humana seja dita como objeto da ira, inadequada para a graça, inclinada ao mal, morta em pecados, escrava do pecado, como está no artigo 3 do Sínodo de Dort, afirma também, no artigo 4, que há certa luz de natureza, mesmo após a queda. Então, o homem tem noções sobre Deus, das coisas naturais, da diferença entre bem e mal, o desejo para o bem, embora isso não seja suficiente para chegar à salvação. Ainda, a teologia reformada nega o livre-arbítrio, que teria sido extinto no pecado original.

No entanto, mesmo que não afirmando que a liberdade do homem seja é forçada ou determinada ao bem ou ao mal, mas que o homem faz isso livremente, e que na salvação pela graça o homem é libertado do pecado, mas continua nele a corrupção do pecado, é preciso entender mais, para conhecer a doutrina reformada ou calvinista. Isso pode ser feito pelo contraste com alguns pontos da doutrina católica.

Afirmando esse tipo de liberdade, o cristão reformado livra-se da acusação de determinismo moral e de fatalismo. No entanto, no seu debate com o arminianismo a doutrina reformada nega a  habilidade do homem de recusar a graça.

O silogismo arminiano seria o seguinte:

1. O homem pode aceitar e recusar a graça.

2. Se cooperar será salvo, se não cooperar será condenado.

Então o homem poder afirmar que é mais justo que o seu próximo por ter feito a coisa certa, e tem algo para gloriar-se.

E como a Sagrada Escritura afirma que somos salvos gratuitamente pela graça, e ninguém pode gloriar-se (cf. Ef 2,8-9), o reformado rejeita essa doutrina arminiana.

Por isso, a doutrina reformada ensina que:

1.  O homem não pode recusar a graça.

2.  Deus põe a fé no coração, liberta e inclina o homem para Cristo.

Então, o homem é eficazmente salvo, e não pode gloriar-se, pois o ato é somente de Deus. Essa doutrina será analisada mais adiante.

A ideia de que o homem vai a Cristo, livremente, mas deve ser compelido a ele, do contrário não irá, e que Deus deve atrair, no sentido de arrastar o homem a Cristo, é algo que pode ser entendido como contra a vontade, embora o calvinismo afirma que Deus muda a vontade do homem de modo que ele queira ir. A vontade livre de coerção seria escrava do pecado. Então, Deus efetivaria algo na vontade. Desse modo, torna-se impossível resistir à graça finalmente, pois ela sempre vence e é eficaz. O homem pode, e frequentemente resiste, até que eficazmente é transformado e levado a Jesus.

Por isso, Charles Spurgeon afirma que a liberdade é auto-determinada. Ninguém exerce coerção sobre a vontade do homem, mas ele mesmo faz o que quer fazer. Estando o homem morto em pecado, sua escolha é sempre contra Deus e a graça divina.

Será que o homem pode ou não recusar a graça? Poder aceitar livremente constitui fundamento para gloriar-se? São essas perguntas que devem ser feitas, mas com frequência reformados não são convencidos pelas respostas: o homem pode recusar a graça, e o simples gesto de receber um presente não é fundamento de mérito! Ninguém pode jactar-se de ter sido salvo gratuitamente. E isso faz sentido. Mas, não é só por isso que a doutrina reformada é refutada.

Pelo contrário, sabemos que o homem pode agir livremente porque não perdeu o livre-arbítrio Se ele não o perdeu, está no dever de responder à graça de Deus, afirmando e aceitando ou negando e recusando. A graça vivifica, atrai, liberta, capacita o homem para que responda ao chamado. Essa graça é suficiente, e uma vez que é aceita pode tornar-se eficaz. Ainda assim, o homem continua livre, cooperando com a graça.

Spurgeon afirma que antes da conversão somos livres para pecar, e após a conversão somos livres para pecar e obedecer a Deus. Agora, como pode o ser humano ser livre para pecar e ser impossibilitado de pecar a ponto de cancelar a relação com Deus?

Como o pecado é possível após a regeneração, justificação e salvação quando não há possibilidade de cair da graça? De fato, afirmar que o homem não pode recusar a graça revela a premissa errada. Todo o edifício cai. O homem tem livre-arbítrio.

Se a liberdade de coerção é a única que o homem possui, segundo Charles Spurgeon, então deve-se responder com Santo Afonso, que essa liberdade até as bestas possuem. Os animais fazem o que querem, segundo seus instintos, não sendo levadas a nada senão sua própria inclinação.

O livre-arbítrio é a condição de poder fazer e deixar de fazer, fazer qualquer coisa e também o oposto, o bem ou o mal. Só não pode escolher a Deus se não for auxiliado pela graça.

Outra verdade que deve ser bem entendida é que Deus é a causa primeira de tudo o que existe, e o homem é causa secundária. Assim, o homem pode produzir ações a partir de si mesmo, pois lhe foi dada por Deus essa liberdade.

No entanto, Deus é soberano absoluto de todas as coisas, e age em toda ação humana. Isso é profundo: Deus age em todos os atos humanos, mas não nos atos humanos. Ele age no homem quando o homem faz o bem, aperfeiçoando e orientando sua bondade, efeito da graça e obediência.

Mas, quando o homem peca Deus age usando seu próprio pecado para punir e transformar sua maldade em um bem. As duas ações, de Deus e do homem, coexistem. Deu pode efetuar o bem, não interferindo no livre-arbítrio humano. No entanto, Deus não efetua a ação má no homem, pois isso é impossível por causa da Sua santidade. Nem determina atos morais maus. Ele pode agir no homem enquanto esse faz um ato mal, sendo responsabilidade única do homem, enquanto Deus pune e faz do mal um bem.

Desse modo, quando os irmãos de José venderam-no para os ismaelitas, Deus agiu ao mesmo tempo orientado aquela maldade para um bem, levando José ao Egito para que futuramente salvasse seu povo. Deus não foi o determinante da ação de vender José. Foram atos livres, partindo dos irmãos de José. Deus agiu ali para determinar o resultado segundo Seu plano. As ações de Deus são sempre para o bem.

Quando o Faraó endureceu o coração, Deus agiu ali também fazendo com que aquele pecado, endurecendo o coração como punição, pois o Faraó já era um homem de duro coração, para que servisse para a libertação do povo. E assim aconteceu.

Em 2 Timóteo 2, 25-26 está escrito: “É com brandura que deve corrigir os adversários, na esperança de que Deus lhes conceda o arrependimento e o conhecimento da verdade, e voltem a si, uma vez livres dos laços do demônio, que os mantém cativos e submetidos aos seus caprichos.”

Primeiro a correção. Depois, esperar que Deus conceda a graça do arrependimento e conhecimento da verdade. Então, libertado assim, o homem poderá responder. Tudo isso supõe o livre-arbítrio (possibilidade de correção) e a graça (esperança em Deus). É possível também ler essa passagem sob a ótica reformada. A correção é usada como instrumento da graça de Deus. Assim, o ato soberano da graça liberta o homem.

Essa leitura concorda com a doutrina católica de que o homem sozinho, pelas próprias forças, não sai dos laços e do cativeiro do Maligno. Concorda que o homem responde livremente. Concorda que uma vez liberto poderá servir a Deus, mas ainda poderá cometer pecados. Discorda, porém, que poderá perder a graça.

Negando o livre-arbítrio essa é a consequência: de escravo do Demônio o homem passa a ser escravo de Deus, não no sentido cristão católico, mas como escravo que não pode, ainda que pecando gravemente, sair da comunhão com Deus, pois o ato soberano divino teria determinado essa condição.

O livre-arbítrio é expresso em 1 Coríntios 7, 37, “sem nenhum constrangimento e com perfeita liberdade de escolha”, e também em  1 Cor 15, 10. São Paulo fala do “seu” trabalho, e o atribui à “graça”, mas volta a esclarecer novamente que é “a graça de Deus comigo”. Além de falar da ação humana e da graça, cooperando, sinergisticamente, afirma a possibilidade da graça ser vã: “a graça que ele me deu não tem sido inútil”. Essa noção só é possível reconhecendo o livre-arbítrio. Como ensina Santo Afonso, Deus quer que trabalhemos um pouco. No artigo que trata da eleição incondicional o livre-arbítrio é mais uma vez comentado.
 
Gledson Meireles.