Franklin Ferreira
afirma que o Concílio de Trento anatematizou a doutrina da justificação, após
citar F. F. Bruce, que diz ser a doutrina de Trento uma confusão de justificação
e santificação, fazendo a primeira dependente das obras, e que o concílio
anatematizou a doutrina reformada ou paulina.
Franklin afirma que o
Concílio anatematizou a justificação porque essa doutrina coloca os homens além
da moralidade, da manipulação religiosa, do domínio dos seres humanos e das
estruturas eclesiásticas. Conta, aliás, o caso da esposa de um pastor
protestante, que sugeriu ao marido pregar essa doutrina na igreja, mas ele
respondeu que não pregava isso por medo de perder o controle dos fieis.
“Se alguém disser que
os homens são justificados ou só pela imputação da justiça de Cristo, ou só
pela remissão dos pecados, excluídas a graça e a caridade que o Espírito Santo
infunde em seus corações e neles inerem; ou também que a graça pela qual somos
justificados é somente um favor de Deus — seja excomungado”. (Cânone
número 11)
A doutrina bíblica é
que a justificação se dá pela imputação da justiça de Cristo, pela remissão dos
pecados, pela infusão da graça e do amor no coração do fiel.
Não é somente a imputação. A justificação é também
a justiça de Cristo em favor do fiel justificado. Ela é também.
Não é somente a
remissão. Ela é também a remissão.
A graça não é somente um favor de Deus. Ela é também um favor de Deus.
Enquanto que a
justificação é entendida pelo protestantismo como apenas a imputação da justiça
de Cristo, ela é muito mais que isso no catolicismo.
Os cânones de Trento
anatematizaram erros na doutrina da justificação que estavam em circulação no
século 16. Um deles era o de que o homem podia realizar por suas próprias
forças as obras de salvação, ou que podia ser salvo pela lei. Isso foi
anatematizado.
Outra doutrina refutada
é a de que o homem livre pode viver de modo a alcançar a salvação, e que a
graça seria um auxílio, para ajudá-lo, o que também foi anatematizado. Estão aí
refutadas as heresias pelagianas e semipelagianas.
Franklin afirma que
existe uma noção de que as pessoas são boas e podem pelo esforço próprio
transcender sua situação, e de que Deus auxilia, dando “alguma ajuda,
dependendo da fé da pessoa” (p. 116).
Essa doutrina é
justamente uma que é anatematizada pelo Concílio de Trento. O Franklin rejeita
a doutrina, assim como a Igreja Católica a rejeita. É o ponto doutrinal
semipelagiano acima aludido. Não há diferença quanto a esse particular.
Algumas afirmações do
calvinismo, como apresentado por Franklin:
1)
O homem não peca necessariamente ou “inevitavelmente”,
mas livremente;
2)
Não pode ajudar em coisas espirituais
3)
Deus selecionou pessoas para ser alvos
do Seu amor
4)
A
eleição ensina que Deus escolhe amorosamente quem efetivamente irá crer.
5)
Não há predestinação para a condenação
6)
A fonte de eleição e predestinação é o
amor de Deus em Cristo
7)
“Deus não se ira mais com aqueles pelos
quais Cristo morreu”
Os tópicos 1, 5 e 6 ao
que parece é o mesmo da que ensina a doutrina cristã católica. O número 1
afirma que o homem peca livremente. No entanto, a doutrina católica ensina o
livre-arbítrio, o calvinismo não. É a primeira dificuldade para esclarecer. Uma
vez que o calvinismo dirá que a natureza pecaminosa peca voluntariamente, por
gosto e prazer, por estar inclinada ao pecado, e não por ser coagido a pecar, e
não pode agradar a Deus, ela é livre nesse reduto apenas, não podendo jamais
sair dele por cooperação.
A doutrina católica
ensina que o homem nesse estágio não pode agradar a Deus, está preso pelo
pecado, é livre ao pecar, gosta do pecado e é insubmisso à Lei de Deus, e seu
livre-arbítrio é insuficiente para levá-lo para fora dessa situação. É impossível
que saia dela por suas próprias forças. Uma vez, porém, que recebe a graça,
pode escolher ficar ou sair desse estado, pela iluminação do Espírito Santo,
que o prepara para a justificação. Somente os eleitos recebem a graça da
perseverança final, pois Deus conhece eternamente que irá responder à graça livremente.
Tem-se assim que Deus dá a graça a todos, porque quer que todos sejam salvos, e
que o homem é livre.
Para o calvinismo o
homem peca livremente porque não pode fazer outra coisa senão pecar. Uma vez
regenerado e justificado não pode agir de outro modo a não ser “como justo” aos
olhos de Deus. Sendo que somente os eleitos recebem a graça da salvação, e efetivamente
irão crer, e Cristo morreu somente por eles, então os demais não podem crer, sendo
isso absolutamente impossível, e que isso é o resultado da eleição e predestinação.
Dessa forma, não se explica que Deus quis a salvação de todos, porque não há
graça para todos nesse sentido, nem que o homem seja livre, já que não pode
escolher em termos espirituais.
Outro ponto não
inteiramente respondido é o do perdão. Para os católicos justificados,
o pecado é sempre possível, presente, praticamente inevitável, e o perdão necessário. Diariamente deve haver
conversão a Deus, arrependimento e pedido de perdão, perseverança na oração e
nos mandamentos. Os pecados perdoados são apagados. Lembrando que anatureza pecaminosa
permanece, o pecado original não.
Para os calvinistas,
isso parece bem diferente. Os justificados são pecadores, mas vistos como
justos. Os pecados existem, mas o perdão é necessário como uma resposta de
gratidão pela obra de salvação. Não há possibilidade de queda para a perdição,
mas é necessário arrependimento, perdão, conversão como gratidão a Deus. Isso
faz toda essa conversão um tanto artificial, já que fundamentalmente
desnecessária, tendo valor apenas na prática ou aparentemente “rentável”. Não é objetivo
tratar aqui desse assunto com mais
profundidade.
Voltando ao início do
artigo: o motivo pelo qual o autor afirma que a doutrina é anatematizada é que
essa leva o cristão para além da moralidade, da manipulação, do domínio dos
seres humanos e estruturas eclesiásticas, colocando o cristão face a face com
Cristo crucificado. Quando o cristão crê é automaticamente considerando justo,
independentemente de obras ou méritos.
Isso tornaria o cristão
livre de dominação, sem preocupações quanto às reprovações dos líderes, quando
às ameaças que signifiquem a perda da salvação e o fogo do inferno, criando o cristão
forte, que crê estar justificado, santo, e não pode senão agradar a Deus, sem
dar contas de seu comportamento a ninguém mais. É uma atitude, uma prática típica
de um protestante. É algo muito prazeroso para o ego. Não é que tal situação
seja esperada e desejada, mas fortemente é resultado dessa doutrina.
A Igreja medieval não
repudiou o ensino da justificação, quando corretamente entendido. Certamente,
como o autor afirma, em sua acepção reformada, os neopentecostais desprezam
esse ensino, assim como os “evangélicos” o ignoram.
Por que não tomar essa
ideia e virá-la ao contrário para maior reflexão¿ Poderíamos afirmar o oposto
do que foi dito a respeito da razão do repúdio, desprezo e ignorância em
relação à doutrina.
Se no contexto da
reformulação da doutrina Sola Gratia, feita pelos reformadores, pode-se afirmar
que a repulsa das igrejas (talvez dos seus líderes) quanto a ela seja o fato de
que a mesma liberta, é igualmente possível afirmar que o repúdio à doutrina da
graça como ensinada no Concílio de Trento, pelos reformadores, é uma forma de não
submeter-se à autoridade de Deus como deve ser.
Contudo, não se pode
negar que os aludidos resultados gerais negativos e facilmente percebidos têm
nele o seu fundamento. Não é difícil encontrar “crentes”, ativos em suas
igrejas, que não vivem o evangelho e ainda assim estão cônscios de ser “livres”
de todos. Demonstram pavor diante da palavra obediência. Não poderia isso
também explicar as divisões?
Certamente, a doutrina
original foi mudada na tradição protestante por sugerir essa conotação que
mantém a necessidade profunda e essencial da cooperação com a graça, da
submissão à vontade de Deus na vida, como uma prática necessária em termos de -
manutenção da salvação, uma frase inteiramente odiada na concepção protestante,
quanto mais na tradição calvinista. Ainda haverá espaço em outros comentários
para avaliar essas questões sob outras perspectivas.
Fonte: Livro - FERREIRA, Franklin, Pilares da Fé.
Gledson Meireles.
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