sábado, 27 de outubro de 2018

Sola Gratia e a obediência

Franklin Ferreira afirma que o Concílio de Trento anatematizou a doutrina da justificação, após citar F. F. Bruce, que diz ser a doutrina de Trento uma confusão de justificação e santificação, fazendo a primeira dependente das obras, e que o concílio anatematizou a doutrina reformada ou paulina.

Franklin afirma que o Concílio anatematizou a justificação porque essa doutrina coloca os homens além da moralidade, da manipulação religiosa, do domínio dos seres humanos e das estruturas eclesiásticas. Conta, aliás, o caso da esposa de um pastor protestante, que sugeriu ao marido pregar essa doutrina na igreja, mas ele respondeu que não pregava isso por medo de perder o controle dos fieis.

“Se alguém disser que os homens são justificados ou só pela imputação da justiça de Cristo, ou só pela remissão dos pecados, excluídas a graça e a caridade que o Espírito Santo infunde em seus corações e neles inerem; ou também que a graça pela qual somos justificados é somente um favor de Deus — seja excomungado”. (Cânone número 11)

A doutrina bíblica é que a justificação se dá pela imputação da justiça de Cristo, pela remissão dos pecados, pela infusão da graça e do amor no coração do fiel.

Não é somente a imputação. A justificação é também a justiça de Cristo em favor do fiel justificado. Ela é também.

Não é somente a remissão. Ela é também a remissão.

A graça não é somente um favor de Deus. Ela é também um favor de Deus.

Enquanto que a justificação é entendida pelo protestantismo como apenas a imputação da justiça de Cristo, ela é muito mais que isso no catolicismo.

Os cânones de Trento anatematizaram erros na doutrina da justificação que estavam em circulação no século 16. Um deles era o de que o homem podia realizar por suas próprias forças as obras de salvação, ou que podia ser salvo pela lei. Isso foi anatematizado.

Outra doutrina refutada é a de que o homem livre pode viver de modo a alcançar a salvação, e que a graça seria um auxílio, para ajudá-lo, o que também foi anatematizado. Estão aí refutadas as heresias pelagianas e semipelagianas.

Franklin afirma que existe uma noção de que as pessoas são boas e podem pelo esforço próprio transcender sua situação, e de que Deus auxilia, dando “alguma ajuda, dependendo da fé da pessoa” (p. 116).

Essa doutrina é justamente uma que é anatematizada pelo Concílio de Trento. O Franklin rejeita a doutrina, assim como a Igreja Católica a rejeita. É o ponto doutrinal semipelagiano acima aludido. Não há diferença quanto a esse particular.

Algumas afirmações do calvinismo, como apresentado por Franklin:

1)  O homem não peca necessariamente ou “inevitavelmente”, mas livremente;

2)  Não pode ajudar em coisas espirituais

3)  Deus selecionou pessoas para ser alvos do Seu amor

4)   A eleição ensina que Deus escolhe amorosamente quem efetivamente irá crer.

5)  Não há predestinação para a condenação

6)  A fonte de eleição e predestinação é o amor de Deus em Cristo

7)  “Deus não se ira mais com aqueles pelos quais Cristo morreu”

Os tópicos 1, 5 e 6 ao que parece é o mesmo da que ensina a doutrina cristã católica. O número 1 afirma que o homem peca livremente. No entanto, a doutrina católica ensina o livre-arbítrio, o calvinismo não. É a primeira dificuldade para esclarecer. Uma vez que o calvinismo dirá que a natureza pecaminosa peca voluntariamente, por gosto e prazer, por estar inclinada ao pecado, e não por ser coagido a pecar, e não pode agradar a Deus, ela é livre nesse reduto apenas, não podendo jamais sair dele por cooperação.

A doutrina católica ensina que o homem nesse estágio não pode agradar a Deus, está preso pelo pecado, é livre ao pecar, gosta do pecado e é insubmisso à Lei de Deus, e seu livre-arbítrio é insuficiente para levá-lo para fora dessa situação. É impossível que saia dela por suas próprias forças. Uma vez, porém, que recebe a graça, pode escolher ficar ou sair desse estado, pela iluminação do Espírito Santo, que o prepara para a justificação. Somente os eleitos recebem a graça da perseverança final, pois Deus conhece eternamente que irá responder à graça livremente. Tem-se assim que Deus dá a graça a todos, porque quer que todos sejam salvos, e que o homem é livre.

Para o calvinismo o homem peca livremente porque não pode fazer outra coisa senão pecar. Uma vez regenerado e justificado não pode agir de outro modo a não ser “como justo” aos olhos de Deus. Sendo que somente os eleitos recebem a graça da salvação, e efetivamente irão crer, e Cristo morreu somente por eles, então os demais não podem crer, sendo isso absolutamente impossível, e que isso é o resultado da eleição e predestinação. Dessa forma, não se explica que Deus quis a salvação de todos, porque não há graça para todos nesse sentido, nem que o homem seja livre, já que não pode escolher em termos espirituais.

Outro ponto não inteiramente respondido é o do perdão. Para os católicos justificados, o pecado é sempre possível, presente, praticamente inevitável, e o perdão necessário. Diariamente deve haver conversão a Deus, arrependimento e pedido de perdão, perseverança na oração e nos mandamentos. Os pecados perdoados são apagados. Lembrando que anatureza pecaminosa permanece, o pecado original não.

Para os calvinistas, isso parece bem diferente. Os justificados são pecadores, mas vistos como justos. Os pecados existem, mas o perdão é necessário como uma resposta de gratidão pela obra de salvação. Não há possibilidade de queda para a perdição, mas é necessário arrependimento, perdão, conversão como gratidão a Deus. Isso faz toda essa conversão um tanto artificial, já que fundamentalmente desnecessária, tendo valor apenas na prática ou aparentemente “rentável”. Não é objetivo tratar  aqui desse assunto com mais profundidade.

Voltando ao início do artigo: o motivo pelo qual o autor afirma que a doutrina é anatematizada é que essa leva o cristão para além da moralidade, da manipulação, do domínio dos seres humanos e estruturas eclesiásticas, colocando o cristão face a face com Cristo crucificado. Quando o cristão crê é automaticamente considerando justo, independentemente de obras ou méritos.

Isso tornaria o cristão livre de dominação, sem preocupações quanto às reprovações dos líderes, quando às ameaças que signifiquem a perda da salvação e o fogo do inferno, criando o cristão forte, que crê estar justificado, santo, e não pode senão agradar a Deus, sem dar contas de seu comportamento a ninguém mais. É uma atitude, uma prática típica de um protestante. É algo muito prazeroso para o ego. Não é que tal situação seja esperada e desejada, mas fortemente é resultado dessa doutrina.

A Igreja medieval não repudiou o ensino da justificação, quando corretamente entendido. Certamente, como o autor afirma, em sua acepção reformada, os neopentecostais desprezam esse ensino, assim como os “evangélicos” o ignoram.

Por que não tomar essa ideia e virá-la ao contrário para maior reflexão¿ Poderíamos afirmar o oposto do que foi dito a respeito da razão do repúdio, desprezo e ignorância em relação à doutrina.

Se no contexto da reformulação da doutrina Sola Gratia, feita pelos reformadores, pode-se afirmar que a repulsa das igrejas (talvez dos seus líderes) quanto a ela seja o fato de que a mesma liberta, é igualmente possível afirmar que o repúdio à doutrina da graça como ensinada no Concílio de Trento, pelos reformadores, é uma forma de não submeter-se à autoridade de Deus como deve ser.

Contudo, não se pode negar que os aludidos resultados gerais negativos e facilmente percebidos têm nele o seu fundamento. Não é difícil encontrar “crentes”, ativos em suas igrejas, que não vivem o evangelho e ainda assim estão cônscios de ser “livres” de todos. Demonstram pavor diante da palavra obediência. Não poderia isso também explicar as divisões?

Certamente, a doutrina original foi mudada na tradição protestante por sugerir essa conotação que mantém a necessidade profunda e essencial da cooperação com a graça, da submissão à vontade de Deus na vida, como uma prática necessária em termos de - manutenção da salvação, uma frase inteiramente odiada na concepção protestante, quanto mais na tradição calvinista. Ainda haverá espaço em outros comentários para avaliar essas questões sob outras perspectivas.
Fonte: Livro - FERREIRA, Franklin, Pilares da Fé.
 
Gledson Meireles.
 

Nenhum comentário:

Postar um comentário