Alguns comentários para entender a autoridade da Bíblia, da tradição, e etc., na obra de Kevin J. Vanhoozer, (especificamente o Sola Scriptura), e a partir dessa reflexão entender os elos de ligação com a doutrina católica. O que Vanhoozer conseguiu com sua recuperação do Sola Scriptura, e qual o alcance desse princípio em relação ao princípio de autoridade na Igreja Católica para atingir a unidade, analisando a eficácia de ambos enquanto estudando o tema.
É fato bastante conhecido a
discussão que gira em torno da interpretação da Bíblia. O seu lugar na
estrutura de autoridade na Igreja Católica Apostólica Romana e no
Protestantismo possui semelhanças fundamentais, mas também diferenças
importantes. Para a teologia cristã católica a Bíblia é a Palavra de Deus,
primeira fonte de autoridade, acompanhada da tradição apostólica, igualmente
Palavra de Deus e em igualdade de posição com a primeira fonte, e do magistério
da Igreja, formando três instâncias pelas quais o cristão obtém a certeza
daquilo em que se deve crer e praticar.
Para o Protestantismo verdadeiro,
que é aquele que advém da Reforma Protestante, tendo suas raízes nos séculos 16
e 17 com os principais expoentes da reforma, e que mantém certo consenso nas
doutrinas fundamentais e nos princípios que regem a teologia, a Bíblia é o
único fator de autoridade suprema e infalível, deixando a tradição e a
autoridade da Igreja em secundo plano, tendo importância apenas se concordante
com o que se entende das Escrituras, passando a ser autoridades secundárias,
falíveis.
É, portanto, uma diferença que
deve trazer à tona resultados discordantes para o credo de ambas as partes.
Também é uma divergência que suscita a questão da legitimidade: qual dos dois é
o modelo bíblico, e qual funciona de forma a garantir a unidade da Igreja e a
defender a fé de intromissões espúrias no patrimônio doutrinal cristão?
Há respostas breves que servem
prontamente para sabermos a natureza dos dois modelos considerando quais as
objeções que se relacionam a ambos, advindas do debate entre os teólogos e
apologistas católicos e protestantes, fornecendo a base para que escolhamos um
ou outro como estrutura epistemológica inspirada na Palavra de Deus.
Mas há uma questão curiosa que
transcende o debate acirrado entre cristãos católicos e cristãos protestantes
históricos sobre esse ponto, e que é a discussão sobre o mesmo no interior do
próprio Protestantismo, tendo por base perspectivas próprias do pensamento
protestante, mas que revelando coisas que aparecem nas disputas teológicas
dessa questão há muito tempo.
Essas informações de grande
importância para o diálogo a esse respeito, sob o princípio Sola Scriptura ou somente a Escritura,
serão baseados na exposição profunda e atual do teólogo reformado Kevin J.
Vanhoozer (Autoridade Bíblica Pós-Reforma: resgatando os solas segundo a essência do cristianismo protestante puro e simples. São Paulo: Vida Nova, 2017), em que trata da autoridade bíblica, mais exatamente da sua
interpretação, e faz um resgate importante dos solas da Reforma com o objetivo de estruturar adequadamente cada
slogan protestante de forma a garantir a preservação da doutrina e a unidade da
Igreja.
No capítulo referente ao
princípio acima, o autor faz uma profunda explanação a respeito do sentido do
mesmo, e o recupera dentro do modelo de autoridade proposto, que é proveniente
do que os reformadores recuperaram no século 16, e que permite os cristãos
protestantes puro e simples caminharem na fé reformada. Contudo, o autor
reconhece que talvez seja esse princípio “o mais desafiador” a recuperar, e
cita autores que preferem abandonar esse sola,
que exclui a autoridade da tradição, por exemplo. Desse modo, Vanhoozer faz uma
recuperação do sola Scriptura de modo
a manter a como parte da autoridade na Igreja, uma forma renovada de ver o
princípio protestante e reformado e garantir que não se afaste da estrutura de
fundamentos organizada pelos reformadores.
A acusação de que as divisões
surgiram pelo princípio “somente a Escritura”, Kevin Vanhoozer admite que de
certa forma houve um “caos doutrinário” proveniente da Reforma, negando, porém,
que esse tenha originado no sola
Scriptura, e esse é o propósito do capítulo, mostrar que o princípio de
autoridade só a Bíblia tenha causado um caos doutrinário. E, para isso, ele
colocará o sola Scriptura como autoridade dentro do modelo maior
de autoridade teológica. Quem ler a obra ficará a par de todo o modelo através
da exposição dos solas. Aqui é
expressamente o lugar da Bíblia que estará sendo enfatizado à partir das
posição de Vanhoozer, e consequentemente qual o valor da tradição nesse modelo.
Tendo em vista que a acusação de
divisão proveniente do sola Scriptura
é algo presente no “arraial acadêmico”, afirma Vanhoozer. Então, não é
propriamente uma acusação de católicos contra protestantes, mas uma avaliação
feita no interior mesmo dos estudos acadêmicos do Protestantismo. E a forma e o
resultado da recuperação desse sola
feito por Vanhoozer, servirá de reflexão para fomentar o debate sobre esse
ponto tão magnífico e fundamental.
A primeira coisa surgida na
exposição do tema, e que é imprescindível para introduzir o debate, é a citação
de Sylverter Prierias, tirado de Mark D. Thompson, e que apresenta a ideia,
nessa citação apenas, de que a Igreja Católica ensina a supremacia infalível da
Igreja e do papa, em que mesmo a Bíblia tiraria dela a sua autoridade. Passando
disso, apresenta dois lados opostos que fizeram os protestantes esclarecer suas
posições. O primeiro seria o daqueles que exaltavam exageradamente “a tradição
humana”, certamente tendo em vista os católicos, exemplificado nessa citação de
Sylvester, e os outros seriam os partidários das experiências místicas, do
contato direto com o Espírito Santo. Foi então que Lutero precisou o lugar das
Escrituras nesse debate, e é o que faz Vanhoozer ao recuperar o lugar deixado
desde então, mas obscurecido novamente ao longo dos tempos por ter sido
destacado dos demais. Resta saber como isso é feito.
Antes, porém, é preciso informar
que o debate suscitou defesas robustas da Bíblia do lado católico, que mostram
o papel da tradição oral, como é feito magistralmente pelo cardeal Bellarmino.
Tem-se nesse debate algo a ver com o que citou Vanhoozer acima.
Aliás, essa é a primeira questão
que São Bellarmino[1]
trata, distinguindo se a Escritura Profética e Apostólica é a Palavra de Deus
ou se é aquilo que o Espírito fala privadamente no coração. Isso diz respeito
ao que foi apontado acima, onde alguns haviam ficado com as revelações privadas,
e são citados Gaspar Schwenckfeld e os Libertinos. Esses estavam atacando a
Bíblia.
Mas não é só isso. O tom de
disputa aumenta quando Bellarmino afirma que Lutero e Calvino acusavam o papa e
a Igreja inteira do mesmo erro de Schwenckfel e dos Libertinos. Então,
Bellarmino afirma a fé da Igreja, contra o erro e a mentira, estabelecendo a
Bíblia “a verdadeira Palavra de Deus e a certa e estável regra de fé”.
Afirma ainda que Moisés, os
profetas, Cristo, João, e os apóstolos, confirmaram os dogmas pelas Escrituras
e encorajaram a leitura das Escrituras, nunca referindo-se ao juízo interno do
Espírito contra as Escrituras, e afirma que “nós”, os cristãos católicos sempre
veneraram a Bíblia. Entre muitas provas cita Atos 17, dos bereanos, que
examinavam as Escrituras, texto sempre presente nos debates, esse usado aos
montes no debate sobre sola Scriptura.
Explica, assim, que a regra de fé
deve ser certa e conhecida e clara, e ainda que o testemunho interno do
Espírito seja certo, não o é como regra de fé. Nada é mais conhecido ou mais
certo do que as Sagradas Escrituras, afirma Bellarmino.
No entanto, a questão fica
acirrada quando, mesmo nos debates atuais, não é incomum que ouçamos alguém
afirmando algo relativo ao lugar da tradição, ou mesmo do magistério da Igreja,
com os ares de prevalência sobre as Escrituras. Há quem afirma, por exemplo,
que não é a Palavra de Deus a regra de fé, mas a Igreja, pois é a Igreja quem
diz o que se deve crer e fazer.[2]
Dentre outras afirmações que exaltam legitimamente o papel da tradição, por
exemplo, é criticar de alguma forma o apelo dos cristãos católicos à Bíblia,
como se o fizessem de maneira a esquecer que precisam crer na Tradição oral
como Palavra de Deus.
Definitivamente, esse não é um
debate fácil, não se trata de questão de pouca importância, que poderia ser
resolvida em poucas linhas. É um tema complexo, rico, profundo, vasto, e que
necessita de um diálogo feito no Espírito Santo. Certamente, a forma com que
Vanhoozer trata do tema no âmbito reformado, e os pontos elencado na sua obra,
servirão para expor mais claramente o que a doutrina da Igreja Católica afirma
a respeito da Bíblia e da Tradição como autoridades.
A clareza da Bíblia
A doutrina protestante afirma que
a Bíblia é clara, e qualquer um pode entendê-la em auxílio de um magistério.
Mas essa explicação não é simples assim. Vanhoozer leva o tema mais
especificamente a um entendimento, e afirma que aqueles que tiveram os olhos do
coração abertos pelo Espírito Santo podem compreender a história principal das
Escrituras, que são as boas novas de Jesus Cristo. Quanto às várias
interpretações não há problema nesse quesito. Assim, os protestantes puro e
simples concordam sobre o “que
aconteceu e sobre quem fez o quê”. Um
exemplo seria todos os protestantes praticarem o batismo, mas aceitar
diferentes maneiras. A clareza da Bíblia não oferece, portanto, a liberdade
absoluta para qualquer um interpretá-la por si mesmo. Pode-se dizer, desse
ponto, que Vanhoozer ressalta “a ação comunicativa de Deus”. Não é o magistério,
mas igualmente também não é a opinião pessoal, como diz Vanhoozer, mas a luz da
Bíblia.
Tendo isso sido resolvido, é
oportuno notar que essa interpretação inclui os cristãos católicos, ou como
poderia ser dito, usando a terminologia adotada por Vanhoozer, a qual retoma o
conceito introduzido por C. S. Lewis, os cristãos católicos puro e
simples. De fato, a Bíblia é venerada
como a primeira e sagrada autoridade, fonte singular imediata de Deus em
comunicação com a Igreja. Se o evangelho é claro para quem foi iluminado
internamente pelo Espirito de Deus, e esse fundamento é possível de ser
entendido prontamente nessa circunstância, e os cristãos pura e simplesmente
católicos estão unidos com os cristãos pura e simplesmente protestantes, não
tendo nada importante a objetar quanto a isso. Não é esse o ponto de discórdia.
Quanto ao exemplo do batismo, onde todos compreendem ser necessário e todos o
praticarem, também aqui, se esse for o fundamento de unidade, estão unidos católicos
e protestantes.
Em resumo, pelo exposto por
Vanhoozer, se o entendimento da boa notícia de salvação é o centro de unidade,
como a prática do batismo o exemplifica também, e as interpretações variadas e
as diferentes maneiras de batizar estiverem em lugar secundário, para o ponto
de vista puramente protestante os católicos deveriam ser incluídos nessa
unidade.
Os cristãos católicos podem
entender diferentemente a formo como a
salvação acontece, assim como há divergências entre os cristãos pura e
simplesmente protestantes, e por esse motivo devem ser reconhecidos na unidade
a essa altura.
Contudo, quanto a esse
entendimento da clareza como exposto por Vanhoozer, pode-se ter em mente que a
Igreja Católica teria a atitude de reconhecimento de certa unidade, pois
reconhece os protestantes como irmãos na fé, os irmãos separados, e por isso
engaja-se no ecumenismo.
Essa clareza autoriza variações
de interpretação. Quais interpretações são toleradas no cristianismo protestante
puro e simples e se essas interpretações são acolhidas no cristianismo católico
puro e simples é algo que é importante pensar. Será esse princípio, como está
sendo reconstruído para sua plena recuperação, a forma de manter a unidade
protestante? Pode esse princípio, plenamente compreendido, ir além dessa
unidade e alcançar mesmo a Igreja Católica? É o que iremos ver quando
acompanharmos alguns detalhes importantes nessa tarefa levada a cabo por Kevin
Vanhoozer.
Gledson Meireles.
[2]
O padre Wander Maia, em entrevista no canal Rede Vida, afirma, a partir do
minuto quatro, que não é a Palavra de Deus a regra de fé, mas a Igreja, pois é a Igreja que guarda e que transmite a fé. Com certeza, sem
intenção alguma em tirar qualquer valor da Bíblia, mas expressar claramente o
papel da Igreja. Tendo que o assunto não era esse, e o comentário é um
parêntese na introdução da entrevista, a citação é apenas para realçar
afirmações que surgem no debate. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ilySyJiKh9w.
Acesso: Novembro de 2018.
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