sábado, 10 de novembro de 2018

Interpretação da Bíblia


Alguns comentários para entender a autoridade da Bíblia, da tradição, e etc., na obra de Kevin J. Vanhoozer, (especificamente o Sola Scriptura), e a partir dessa reflexão entender os elos de ligação com a doutrina católica. O que Vanhoozer conseguiu com sua recuperação do Sola Scriptura, e qual o alcance desse princípio em relação ao princípio de autoridade na Igreja Católica para atingir a unidade, analisando a eficácia de ambos enquanto estudando o tema.
É fato bastante conhecido a discussão que gira em torno da interpretação da Bíblia. O seu lugar na estrutura de autoridade na Igreja Católica Apostólica Romana e no Protestantismo possui semelhanças fundamentais, mas também diferenças importantes. Para a teologia cristã católica a Bíblia é a Palavra de Deus, primeira fonte de autoridade, acompanhada da tradição apostólica, igualmente Palavra de Deus e em igualdade de posição com a primeira fonte, e do magistério da Igreja, formando três instâncias pelas quais o cristão obtém a certeza daquilo em que se deve crer e praticar.

Para o Protestantismo verdadeiro, que é aquele que advém da Reforma Protestante, tendo suas raízes nos séculos 16 e 17 com os principais expoentes da reforma, e que mantém certo consenso nas doutrinas fundamentais e nos princípios que regem a teologia, a Bíblia é o único fator de autoridade suprema e infalível, deixando a tradição e a autoridade da Igreja em secundo plano, tendo importância apenas se concordante com o que se entende das Escrituras, passando a ser autoridades secundárias, falíveis.

É, portanto, uma diferença que deve trazer à tona resultados discordantes para o credo de ambas as partes. Também é uma divergência que suscita a questão da legitimidade: qual dos dois é o modelo bíblico, e qual funciona de forma a garantir a unidade da Igreja e a defender a fé de intromissões espúrias no patrimônio doutrinal cristão?

Há respostas breves que servem prontamente para sabermos a natureza dos dois modelos considerando quais as objeções que se relacionam a ambos, advindas do debate entre os teólogos e apologistas católicos e protestantes, fornecendo a base para que escolhamos um ou outro como estrutura epistemológica inspirada na Palavra de Deus.

Mas há uma questão curiosa que transcende o debate acirrado entre cristãos católicos e cristãos protestantes históricos sobre esse ponto, e que é a discussão sobre o mesmo no interior do próprio Protestantismo, tendo por base perspectivas próprias do pensamento protestante, mas que revelando coisas que aparecem nas disputas teológicas dessa questão há muito tempo.

Essas informações de grande importância para o diálogo a esse respeito, sob o princípio Sola Scriptura ou somente a Escritura, serão baseados na exposição profunda e atual do teólogo reformado Kevin J. Vanhoozer (Autoridade Bíblica Pós-Reforma: resgatando os solas segundo a essência do cristianismo protestante puro e simples. São Paulo: Vida Nova, 2017), em que trata da autoridade bíblica, mais exatamente da sua interpretação, e faz um resgate importante dos solas da Reforma com o objetivo de estruturar adequadamente cada slogan protestante de forma a garantir a preservação da doutrina e a unidade da Igreja.

No capítulo referente ao princípio acima, o autor faz uma profunda explanação a respeito do sentido do mesmo, e o recupera dentro do modelo de autoridade proposto, que é proveniente do que os reformadores recuperaram no século 16, e que permite os cristãos protestantes puro e simples caminharem na fé reformada. Contudo, o autor reconhece que talvez seja esse princípio “o mais desafiador” a recuperar, e cita autores que preferem abandonar esse sola, que exclui a autoridade da tradição, por exemplo. Desse modo, Vanhoozer faz uma recuperação do sola Scriptura de modo a manter a como parte da autoridade na Igreja, uma forma renovada de ver o princípio protestante e reformado e garantir que não se afaste da estrutura de fundamentos organizada pelos reformadores.

A acusação de que as divisões surgiram pelo princípio “somente a Escritura”, Kevin Vanhoozer admite que de certa forma houve um “caos doutrinário” proveniente da Reforma, negando, porém, que esse tenha originado no sola Scriptura, e esse é o propósito do capítulo, mostrar que o princípio de autoridade só a Bíblia tenha causado um caos doutrinário. E, para isso, ele colocará o sola Scriptura como autoridade dentro do modelo maior de autoridade teológica. Quem ler a obra ficará a par de todo o modelo através da exposição dos solas. Aqui é expressamente o lugar da Bíblia que estará sendo enfatizado à partir das posição de Vanhoozer, e consequentemente qual o valor da tradição nesse modelo.

Tendo em vista que a acusação de divisão proveniente do sola Scriptura é algo presente no “arraial acadêmico”, afirma Vanhoozer. Então, não é propriamente uma acusação de católicos contra protestantes, mas uma avaliação feita no interior mesmo dos estudos acadêmicos do Protestantismo. E a forma e o resultado da recuperação desse sola feito por Vanhoozer, servirá de reflexão para fomentar o debate sobre esse ponto tão magnífico e fundamental.

A primeira coisa surgida na exposição do tema, e que é imprescindível para introduzir o debate, é a citação de Sylverter Prierias, tirado de Mark D. Thompson, e que apresenta a ideia, nessa citação apenas, de que a Igreja Católica ensina a supremacia infalível da Igreja e do papa, em que mesmo a Bíblia tiraria dela a sua autoridade. Passando disso, apresenta dois lados opostos que fizeram os protestantes esclarecer suas posições. O primeiro seria o daqueles que exaltavam exageradamente “a tradição humana”, certamente tendo em vista os católicos, exemplificado nessa citação de Sylvester, e os outros seriam os partidários das experiências místicas, do contato direto com o Espírito Santo. Foi então que Lutero precisou o lugar das Escrituras nesse debate, e é o que faz Vanhoozer ao recuperar o lugar deixado desde então, mas obscurecido novamente ao longo dos tempos por ter sido destacado dos demais. Resta saber como isso é feito.

Antes, porém, é preciso informar que o debate suscitou defesas robustas da Bíblia do lado católico, que mostram o papel da tradição oral, como é feito magistralmente pelo cardeal Bellarmino. Tem-se nesse debate algo a ver com o que citou Vanhoozer acima.

Aliás, essa é a primeira questão que São Bellarmino[1] trata, distinguindo se a Escritura Profética e Apostólica é a Palavra de Deus ou se é aquilo que o Espírito fala privadamente no coração. Isso diz respeito ao que foi apontado acima, onde alguns haviam ficado com as revelações privadas, e são citados Gaspar Schwenckfeld e os Libertinos. Esses estavam atacando a Bíblia.

Mas não é só isso. O tom de disputa aumenta quando Bellarmino afirma que Lutero e Calvino acusavam o papa e a Igreja inteira do mesmo erro de Schwenckfel e dos Libertinos. Então, Bellarmino afirma a fé da Igreja, contra o erro e a mentira, estabelecendo a Bíblia “a verdadeira Palavra de Deus e a certa e estável regra de fé”.

Afirma ainda que Moisés, os profetas, Cristo, João, e os apóstolos, confirmaram os dogmas pelas Escrituras e encorajaram a leitura das Escrituras, nunca referindo-se ao juízo interno do Espírito contra as Escrituras, e afirma que “nós”, os cristãos católicos sempre veneraram a Bíblia. Entre muitas provas cita Atos 17, dos bereanos, que examinavam as Escrituras, texto sempre presente nos debates, esse usado aos montes no debate sobre sola Scriptura.

Explica, assim, que a regra de fé deve ser certa e conhecida e clara, e ainda que o testemunho interno do Espírito seja certo, não o é como regra de fé. Nada é mais conhecido ou mais certo do que as Sagradas Escrituras, afirma Bellarmino.

No entanto, a questão fica acirrada quando, mesmo nos debates atuais, não é incomum que ouçamos alguém afirmando algo relativo ao lugar da tradição, ou mesmo do magistério da Igreja, com os ares de prevalência sobre as Escrituras. Há quem afirma, por exemplo, que não é a Palavra de Deus a regra de fé, mas a Igreja, pois é a Igreja quem diz o que se deve crer e fazer.[2] Dentre outras afirmações que exaltam legitimamente o papel da tradição, por exemplo, é criticar de alguma forma o apelo dos cristãos católicos à Bíblia, como se o fizessem de maneira a esquecer que precisam crer na Tradição oral como Palavra de Deus.

Definitivamente, esse não é um debate fácil, não se trata de questão de pouca importância, que poderia ser resolvida em poucas linhas. É um tema complexo, rico, profundo, vasto, e que necessita de um diálogo feito no Espírito Santo. Certamente, a forma com que Vanhoozer trata do tema no âmbito reformado, e os pontos elencado na sua obra, servirão para expor mais claramente o que a doutrina da Igreja Católica afirma a respeito da Bíblia e da Tradição como autoridades.

A clareza da Bíblia

A doutrina protestante afirma que a Bíblia é clara, e qualquer um pode entendê-la em auxílio de um magistério. Mas essa explicação não é simples assim. Vanhoozer leva o tema mais especificamente a um entendimento, e afirma que aqueles que tiveram os olhos do coração abertos pelo Espírito Santo podem compreender a história principal das Escrituras, que são as boas novas de Jesus Cristo. Quanto às várias interpretações não há problema nesse quesito. Assim, os protestantes puro e simples concordam sobre o “que aconteceu e sobre quem fez o quê”. Um exemplo seria todos os protestantes praticarem o batismo, mas aceitar diferentes maneiras. A clareza da Bíblia não oferece, portanto, a liberdade absoluta para qualquer um interpretá-la por si mesmo. Pode-se dizer, desse ponto, que Vanhoozer ressalta “a ação comunicativa de Deus”. Não é o magistério, mas igualmente também não é a opinião pessoal, como diz Vanhoozer, mas a luz da Bíblia.

Tendo isso sido resolvido, é oportuno notar que essa interpretação inclui os cristãos católicos, ou como poderia ser dito, usando a terminologia adotada por Vanhoozer, a qual retoma o conceito introduzido por C. S. Lewis, os cristãos católicos puro e simples.  De fato, a Bíblia é venerada como a primeira e sagrada autoridade, fonte singular imediata de Deus em comunicação com a Igreja. Se o evangelho é claro para quem foi iluminado internamente pelo Espirito de Deus, e esse fundamento é possível de ser entendido prontamente nessa circunstância, e os cristãos pura e simplesmente católicos estão unidos com os cristãos pura e simplesmente protestantes, não tendo nada importante a objetar quanto a isso. Não é esse o ponto de discórdia. Quanto ao exemplo do batismo, onde todos compreendem ser necessário e todos o praticarem, também aqui, se esse for o fundamento de unidade, estão unidos católicos e protestantes.

Em resumo, pelo exposto por Vanhoozer, se o entendimento da boa notícia de salvação é o centro de unidade, como a prática do batismo o exemplifica também, e as interpretações variadas e as diferentes maneiras de batizar estiverem em lugar secundário, para o ponto de vista puramente protestante os católicos deveriam ser incluídos nessa unidade.

Os cristãos católicos podem entender diferentemente a formo como a salvação acontece, assim como há divergências entre os cristãos pura e simplesmente protestantes, e por esse motivo devem ser reconhecidos na unidade a essa altura.

Contudo, quanto a esse entendimento da clareza como exposto por Vanhoozer, pode-se ter em mente que a Igreja Católica teria a atitude de reconhecimento de certa unidade, pois reconhece os protestantes como irmãos na fé, os irmãos separados, e por isso engaja-se no ecumenismo.

Essa clareza autoriza variações de interpretação. Quais interpretações são toleradas no cristianismo protestante puro e simples e se essas interpretações são acolhidas no cristianismo católico puro e simples é algo que é importante pensar. Será esse princípio, como está sendo reconstruído para sua plena recuperação, a forma de manter a unidade protestante? Pode esse princípio, plenamente compreendido, ir além dessa unidade e alcançar mesmo a Igreja Católica? É o que iremos ver quando acompanharmos alguns detalhes importantes nessa tarefa levada a cabo por Kevin Vanhoozer.

Gledson Meireles.

 

[1] Controvérsias, capítulo 1.


[2] O padre Wander Maia, em entrevista no canal Rede Vida, afirma, a partir do minuto quatro, que não é a Palavra de Deus a regra de fé, mas a Igreja, pois é a Igreja que guarda e que transmite a fé. Com certeza, sem intenção alguma em tirar qualquer valor da Bíblia, mas expressar claramente o papel da Igreja. Tendo que o assunto não era esse, e o comentário é um parêntese na introdução da entrevista, a citação é apenas para realçar afirmações que surgem no debate. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ilySyJiKh9w. Acesso: Novembro de 2018.

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