sexta-feira, 12 de outubro de 2018

O que é a Igreja? Qual o valor da tradição?

Uma reflexão sobre o conceito de Igreja e do papel da tradição apostólica, a partir do Livro: Pilares da Fé. FERREIRA, Franklin. Pilares da fé: a atualidade da mensagem da Reforma. São Paulo: Vida Nova, 2017, do prefácio ao capítulo 1.
O intuito é despertar interesse desses tópicos e gerar discussão com o autor e ampliar o conhecimento do tema.

No prefácio do livro Pilares da Fé, do pastor batista Franklin Ferreira, o seu prefaciador, presbítero da Igreja Presbiteriana do Brasil, fala da obra de Deus em preparar a Reforma, em Sua providência em esfacelar o poder da Igreja Católica Apostólica Romana, preparando o terreno para o grito de Lutero, e garantindo a promessa de que as portas do inferno não prevalecerão contra a Igreja, ou em suas palavras, “não impediriam a marcha vitoriosa da Igreja”, citando o texto de Mt 16.17,18.

É a perspectiva dos protestantes, em olhar para a Igreja Católica pelo lado de fora, e ver nela um obstáculo para a reforma, e não o lugar da própria reforma. Nesse sentido, o que faz real diferença é a definição de Igreja, sempre escrita com letra minúscula “igreja”, e geralmente preferida no plural (igrejas) quando tratando das comunidades cristãs que aparecem no Novo Testamento e espalhadas em várias localidades do mundo.

O leitor poderia começar por questionar esse sentido espiritual de Igreja e tentar ver onde estava a Igreja de Jesus à qual se referem os protestantes quando a reforma começou. Segundo afirmam, pode-se dizer que a Igreja é o ajuntamento dos salvos de todos os tempos, "o número inteiro dos eleitos", como afirma a Confissão de Fé de Westminster, independentemente de onde estiverem, de qual denominação cristã são membros. Dessa forma, não vendo a instituição como a Igreja, pode-se afirmar que a “igreja” nessa definição seria composta por indivíduos dentro do Catolicismo, e de outros vindos de grupos que se opunham à Igreja Católica, como o dos valdenses, que ainda existiam no século 16, e etc., de forma que a Igreja seria uma espécie de grupo indefinido, espalhado por todos grupos que saíam da Igreja Católica, e esse é o ponto alto do qual a definição parece tomar sua forma, mas incluindo membros cristãos católicos que, como Martinho Lutero, puseram-se em algum momento contra a sua Igreja.

É uma definição eminentemente anti-católica, visto que quando um protestante fala de “igreja”, está afirmando em linhas gerais e bem compreendidas algo relativo às igrejas da Reforma Protestante, ou seja, ao Protestantismo de raiz histórica começado nos tempos de Lutero, Calvino, Zuínglio. Não está tratando da Igreja Católica.

Para melhor entender isso, essa forma de pensar não inclui expressamente a Igreja Católica, mas inclui todas as demais denominações do Protestantismo tradicional, não em sua forma visível, como denominação, mas como lugares em que os salvos estão. Trata-se de uma forma velada de falar da Igreja Protestante como sendo o conjunto de igrejas protestantes históricas, pois para ser considerado membro dessas igrejas a pessoa precisa professar as doutrinas que são básicas do Protestantismo, e que serão tratadas no livro do Franklin, como o próprio título revela: Pilares da Fé. Todas as demais doutrinas devem ser provenientes desses pilares. Ao mesmo tempo, é necessário que ao professar a fé dessa maneira, outras doutrinas que sejam consideradas opostas a esses pontos sejam negadas.

Assim, os membros dessas igrejas, ainda que não com total identidade de fé, podem visitar outras igrejas da mesma linha doutrinária, dando o testemunho de uma certa unidade, mas que não se fundem em uma única igreja visível, pensando apenas que ali estão os cristãos que formam a igreja de Jesus.

Em relação aos cristãos católicos, os protestantes pensam que os mesmos devem sair do Catolicismo, e que se lessem a Bíblia não continuariam católicos, e que os católicos não compreendem as Escrituras, por não serem convertidos, que nenhum protestante torna-se católico pela leitura da Bíblia, e coisas dessa natureza. Assim, ao falar de igreja estão pensando de forma categórica em membros de igrejas protestantes.

Em outras palavras, mais claras e acertadas, porque usadas pelos próprios protestantes, o que foi escrito acima é apresentado pelo luterano Marcel van Hattem como “diferentes – e verdadeiras – igrejas protestantes”. É justamente essa a visão dos protestantes: há igrejas protestantes verdadeiras, que são aquelas que fazem parte do grupo que tentei focar acima.

O livro não tratará de daquilo que é “controvertido ou não resolvido” entre as próprias igrejas protestantes, o que os cristãos católicos consideram as divisões do protestantismo. Assim, a obra terá como tema as doutrinas centrais, fundamentais, básicas, comuns a todas as igrejas consideradas pelos protestantes históricos como verdadeiras igrejas protestantes.

Na introdução, o autor fala do início da Reforma, em 31 de outubro de 1517, e do seu fim, por volta de 1550 a 1600. Esse último é um dado importante, já que é de reconhecimento de erudito protestante, que está ente aqueles que defendem a linha original ou ortodoxa da Reforma Protestante. Refere-se a um tempo em que os fundamentos reformados atingiram seu ápice suficiente, dando então lugar à estabilização e continuidade da sua influência na nova igreja, evidentemente composta em sua totalidade de várias igrejas e credos, o Protestantismo.

Importante a explicação sobre as duas alas principais da Reforma, aquela magisterial e a outra radical. A primeira é composta pelos “evangélicos”, chefiados Lutero, Melâncton e Chemnitz, outra, dos “reformados”, por Zuínglio, Bucer, Calvino, Knox, Bullinger e Gaspar Oleviano e a dos “anglicanos”, por Tyndale, Cranmer e Perkins.

Dos chamados pelo autor como compondo a ala dos radicais, estão Greber, Hubmaier, Miguel Sattler e Meno Simons. Certamente esses são categorizados por não afastar-se das doutrinas básicas defendidas pelo grupo magisterial.

Com relação à Reforma do Concílio de Trento, que continuou no seio da Igreja Católica, pois os outros reformadores a deixaram, os nomes citados são o cardeal Caetano, Colet, Contarini, Inácio de Loyola, Erasmo de Roterdã e Nicolau de Lira.

A citação de Lutero contra o apelativo “luterano” dado aos seus seguidores, traz a informação de que os papistas tem nome partidário. Mas, parece que eram (e o são hoje) os adversários que gostavam de chamar os cristãos católicos de “papistas”, segundo costume do próprio Lutero, como testemunha a própria citação. Nunca um católico considerou-se, reconheceu, aceitou, o nome “papista”.

É interessante, o que o autor mostra: o nome calvinismo foi dado pelos luteranos, e logo foi de uso geral. Ainda que tenha, por certo, almejado passar o sentimento de crítica e estigma por meio do título, ele é aceito por tratar-se de uma verdade. É certo, porém, que precisou de adequação do conceito, pois não é aceito como uma doutrina de João Calvino, como se o mesmo a tivesse feito por interpretação particular, mas como a interpretação que redescobriu doutrinas antes obnubiladas com o tempo. Mas, como mostra o autor, o termo reformado é preferido. Isso é importante já que o mesmo conceito está expresso por outro reconhecido.

Pelo que se depreende do termo, ele significa uma reforma doutrinal que tende a fazer frente à doutrina católica, entendendo que tal reforma é recuperação da verdadeira fé, a “doutrina correta”.

É, como o autor afirma, a “fiel tradição da Reforma”, mas um resumo calcado e baseado na Escritura. Para os desavisados, é preciso saber que os protestantes possuem uma tradição. Não a têm expressamente como regra para a fé, mas essa tradição é de fato regra de fé praticamente idêntica às Escrituras, quando encontra o consenso almejado, como aqui será mostrado, oportunamente, ao passo que enveredamos por cada argumentação do autor sobre as doutrinas defendidas pelos protestantes. Essa é a razão prática da tradição no Protestantismo, que não o é em teoria, sendo um interessante paradoxo.

Teoricamente, no Protestantismo a tradição é uma instância falível, e a igreja é semper reformanda, que deve ser julgada, criticada, ajustada pela Bíbilia, única regra infalível de fé e prática. Contudo, que protestante se colocaria contra o entendimento dos cinco solas, como apresentados nessa obra, e por meio da uma leitura das Escrituras pusesse a atacar pontos nevrálgicos desse entendimento doutrinal fundamental do Protestantismo, que é entendido como fundamentado totalmente nas Escrituras Sagradas, e continuasse a ser igualmente reconhecido como legítimo protestante, tendo o mesmo espaço para pregar suas doutrinas que é garantido por outros que estão de acordo quanto a essa pacífica tradição da reforma?  É inegável que o mesmo seria logo reconhecido como herege.

Desse modo, esse consenso resumido nesses pontos doutrinais tem servido de bússola no entendimento doutrinal dos protestantes, como uma bússola na identificação da doutrina correta, uma expressão das doutrinas da Bíblia, e, por isso, reflete na tradição o caráter bíblico da infalibilidade.


Capitulo 1

O autor afirma que os debates estão tornando-se cada vez mais frequentes, e cita Grant Osborne que escreve “Não sabemos ao certo como determinar um dogma...”. Essa falta de conhecimento, essa dificuldade, está relacionado certamente com o que foi criticado acima, no texto da introdução, e é relativa à tradição.
Embora tenha força praticamente-infalível, no protestantismo ela não o é. Ela não é quase infalível: porque isso equivale a dizer que não é infalível. O que fica evidente é sua força na prática da interpretação bíblica. Quando os intérpretes prescindem dela, encontram a incapacidade, a dificuldade, a desorientação, a incerteza em determinar as verdades da fé.

No entanto, o autor afirma que a falta de referência à Bíblia é o que caracteriza esses debate, e isso o espanta. As revisões doutrinais, as reformas que ocorrem, todas trazem novidades. Mas o autor menciona aquelas que inovam, que introduzem rupturas com a tradição. Critica as opiniões pessoais nessas reformas. Ele não o faz em defesa da tradição, como se a mesma não pudesse ser reformada, pois fala como protestante. Porém, sua abordagem revela a força da tradição acima apontada, e sua relação com a Bíblia. Ele ressalta a importância de levar os cristãos à Bíblia. Em outras palavras, parece que o autor afirma, ou melhor, pode-se inferir das palavras do autor, que se essas reformas fossem realmente bíblicas, não contrariariam os ensinos (incluindo os citados por ele) da tradição.

Exemplo disso são os próprios fundamentalistas, que apegavam-se às Escrituras, muitas vezes ingenuamente, como afirma o autor, o que significa não ser suficiente ir à Bíblia para encontrar a verdade, para determinar a correção de cada doutrina. Mas o autor mostra o valor da Bíblia nesses debates teológicos, o que falta hoje entre os protestantes.

A crítica contra líderes neopentecostais que se firmam no magister dixit, na autoridade de teologias do século 19, é outra alusão ao sentido e importância da tradição. Em nota de rodapé, o autor explica o sentido da expressão, em que se evoca um mestre com autoridade inquestionável, e lembra algo relativo à tradição católica na Idade Média. O diferencial é que esses líderes, como mostra o próprio autor, estão no magister dixit muito recente. Assim, não seguem a tradição reformada, como anteriormente aludida. É necessário notar essas diferenças.

A citação de Gl 1,8-9 é oportuna. Mais oportuno ainda, seria lembrar que São Paulo já exorta e condena heresias que apareciam em seu tempo, e que admoesta a continuar no evangelho que ele e os outros apóstolos pregaram. Dessa forma, desde então, não deve haver mudanças doutrinais. A tradição, portanto, tem início com os apóstolos, e ali com o Senhor Jesus Cristo, tem início o magister dixit, passando aos apóstolos e chegando aos dias atuais. É mesmo um absurdo concordar com tradições anti-bíblicas, extra-bíblicas, inovadoras, de séculos tão recentes. Mas é preciso considerar a tradição, e, no caso dos protestantes, pensar a respeito de sua possível infalibilidade.

É como está na citação do Franklin, de Scott M. Manetsch, que os protestantes devem “recuperar as suas raízes históricas”. Devem ler a Bíblia, devem continuar a tê-la como regra de fé, mas isso não supõe, nunca supôs, deixar a tradição. Pensem, protestantes, no valor da tradição. Até onde vai sua importância, e, o mais importante, a sua autoridade?
Gledson Meireles.

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