A morte como sono
A morte é descrita como sono
em diversas situações na Bíblia. No entanto, o caso é mais notório no Novo
Testamento, pois Nosso Senhor quando fez esse tipo de alusão não foi
compreendido pelos apóstolos (cf. João 11,12-13), o que nos faz pensar que tal
referência, como um uso religioso e costumeiro, não era do conhecimento de
todos, e que a noção que o Senhor Jesus estava apresentando era um tanto nova,
e continha uma conotação que ainda escapava ao entendimento do povo naquele
momento, ainda que a alusão ao sono seja contida na Bíblia desde o Antigo
Testamento. Talvez não fosse utilizado o sentido da forma como Jesus o
introduziu.
Para entender essa aplicação
metafórica da morte é preciso sempre lembrar que tal coisa refere-se tão
somente ao corpo que parece “dormir” quando acontece a morte. De fato, isso é
compreensível por todos, até pelos pequeninos, que ainda que não fosse usada
essa linguagem é possível que uma criança refira-se a um morto como que
“dormindo”, visto que as características notáveis são bastante próximas.[1] Assim, não é de estranhar
que Jesus tenha empregado essa comparação para instruir os discípulos.
Mas, poderíamos pensar, para
fins de argumentação, que o uso do termo “dormir” para a morte pudesse
referir-se a um literal dormir da pessoa inteira quando morre. Isso
significaria que a alma também estivesse “dormindo”, inconscientemente, à
espera da ressurreição. Essa é a posição de alguns, que creem na separação a
alma e do corpo, mas não admitem a consciência da alma após essa separação.
Essa deveria ser, pelo menos, a mais lógica posição para ser adotada pelos
“mortalistas”, e não a da morte da alma, ou da sua inexistência, se não fosse o
problema dessa opinião do sono ser anti-bíblica também, como tem sido provado
deste o início deste estudo. De fato, a alma pode separar-se do corpo, ela não
morre, e ainda permanece consciente.
O que é apresentado pelo Dr.
Bacchiocchi, citado na página 319 do livro em referência, é realmente oportuno
para o tema da ressurreição, pois foi na intenção de realçar o levantamento de
Lázaro, em João 11, que Nosso Senhor utilizou o termo dormir para explicar a
morte do amigo. Foi para ensinar que os mortos serão ressuscitados que o
emprego da metáfora foi utilizado, e esse uso não invalida em nada a doutrina
da imortalidade da alma, já que mesmo sendo a alma imortal não é o seu destino
final continuar desligada do corpo, e Jesus deixa essa verdade clara ao
enfatizar que os mortos serão ressuscitados no último dia. A metáfora cai muito
bem para o corpo que será revivido no dia do Juízo, como que despertados do
sono.
Aliás, o termo dormir
continua atual na liturgia católica, que é usada há séculos, e ainda assim
todos entendem que o “dormir” refere-se apenas à parte corporal dos mortos, e
não ao espírito.
Algumas objeções
fundamentadas no uso do sono da morte: Esse uso seria fruto da visão holista,
que não prevê a separabilidade do corpo e da alma, uma visão que estaria em Gn
2,7 e que seria corroborada pela menção de três elementos em 1 Tess 5,23, de
forma acidental apenas, pois tal referência estaria apenas enfatizando algo do
homem inteiro.
É problemática essa
tentativa de explicação, pois ao expor Gênesis 2,7 como corpo + fôlego de vida
+ alma vivente ela está esquecendo-se de que não há três elementos em jogo, mas
apenas dois, pois o último termo do texto: “alma vivente” é apenas a conclusão
da criação da terra + sopro de Deus que tornou-se a alma, no
sentido de pessoa. A alma nessa passagem não é característica da pessoa, mas a
pessoa em si mesma, completa. Essa leitura não tem nada em comum, em termos de
estrutura de pensamento, com o que São Paulo diz em 1 Tess 5,23. Ali, a alma, o
espírito e o corpo são citados como elementos do ser humano. A alma nesse texto
último não tem o mesmo sentido que em Gn 2,7, não perfazendo o absurdo, se
assim o fosse, na comparação, de afirmar “pessoa, espírito e corpo”. O assunto
é outro, a estrutura é diversa, a comparação não pode ser feita. De qualquer
forma que for tentada a comparação nesses termos entre as duas passagens não
haverá harmonia.[2]
Existe um problema grave na
argumentação que envolve a morte da pessoa não deixando nada que sobreviva
dela. Se assim o fosse, a ressurreição não seria a volta da pessoa, mas a
criação de outra pessoa idêntica àquela que existiu. Poderia haver absoluta
identidade em todos os pormenores físicos, psíquicos e espirituais, mas não
seria a mesma pessoa, mas uma totalmente igual a ela, já que a outra caiu na
inexistência há muito tempo.
Com isso em mente, outro
problema surge em seguida, que é a justiça de Deus. Se a primeira pessoa
deveria ser recompensada por tudo o que fez em vida, isso deixa de ocorrer
porque essa não existe mais. Assim, a outra pessoa que passará a existir
receberá o prêmio ou a punição pelo que nunca fez, ainda que tenha toda a
memória da pessoa que deixou de existir restaurada nela.
Agora, quando se tem que a
alma nunca deixa de existir, e fica à espera da ressurreição da pessoa completa,
toda a problemática acima esvanece. De fato, a alma mantém o núcleo da
personalidade, a parte racional continuando intacta, sem interrupção, e o corpo
sendo a parte material vivificada por ela, que foi decomposto na terra,
independentemente da forma pela qual isso tenha ocorrido, esse mesmo corpo é
reconstruído pela matéria que continua a existir neste mundo e a mesma alma
volta a receber vida nele, constituindo a mesma pessoa de antes. Isso é
realmente uma ressurreição. Pode ser uma recriação da pessoa em sua composição original,
em certo sentido, mas não cai na contradição que a doutrina da morte da alma
criou. Por isso, mais um motivo para que mantenhamos a doutrina correta da
imortalidade da alma.
A visão de São João no
Apocalipse, capítulo 6 verso 9, tem como pano de fundo a ideia da existência da
alma à parte do corpo: “Quando abriu o
quinto selo, vi debaixo do altar as almas dos homens imolados por causa
da palavra de Deus e por causa do testemunho de que eram depositários.” O
texto afirma sobre “as almas dos homens”, não sobre os homens, ou pessoas
completas, mas as almas dessas pessoas.
Sabe-se, segundo Gênesis
9,4, que a vida está no sangue, e que a visão profética sem essa simbologia do
altar que escorre o sangue das vítimas que ali são sacrificadas não seria
compreendida. Mas, devemos perceber que o termo alma é empregado para pessoas
que morreram, e que a imagem é de almas conscientes, que são vistas pelo
apóstolo profeta, mesmo sabendo que seus corpos jazem nó pó da terra. Lembra a
personificação do sangue que grita a Deus desde o solo. Mas, em Apocalipse a
imagem é mais refulgente ainda, pois contem todos os pormenores.
Essa cena é tão límpida que
essas almas recebem vestes para aguardar o Dia do Juízo que castigará os ímpios
que os mataram. Portanto, elas tem a forma do corpo. Não se trata de uma alusão
ao sangue, nem de uma mera personificação feita a partir do sangue derramado.
Não se pode negar, portanto, que São João tenha entendido que existem as almas
que vivem após a morte, pois do contrário não poderia haver essa ilustração,
não haveria como expressar esse sinal do apocalipse.
“Vi também tronos, sobre os quais se assentaram aqueles que receberam o
poder de julgar: eram as almas dos que foram decapitados por causa do
testemunho de Jesus e da palavra de Deus, e todos aqueles que não tinham
adorado a Fera ou sua imagem, que não tinham recebido o seu sinal na fronte nem
nas mãos. Eles viveram uma vida nova e reinaram com Cristo por mil anos.”
(Apocalipse 20,4)
Essas “almas” não são as
pessoas inteiras, mas a parte substancial do corpo que continua a existir após
a morte. Essas psychas (almas) foram
vistas, sentadas em tronos, vivendo e reinando. Ou trata-se da ressurreição
literal da carne para o reinado com Cristo na Sua volta, ou significa a
ressurreição espiritual da vida nova em Cristo, pela graça, ocorrida já nesta
vida através da graça do batismo e continuando essa vida no céu.
Como a alma não morre, ao afirmar
“eles viveram” isso quer dizer que foram ressuscitados, e não que as almas estavam
mortas e foram ressuscitadas. Se se trata da ressurreição espiritual, essa é a
vida da graça.
Lembre-se que em Apocalipse
6,9 a mesma coisa é manifesta: as almas continuam a viver após a morte física.
São João não viu as almas decapitadas, não no sentido de pessoas decapitadas,
mas viu as almas daqueles que foram decapitados, ou seja, a parte espiritual
daquelas pessoas que sofreram o martírio. Em outras palavras, o apóstolo viu a
parte espiritual daquelas pessoas que morrerem, e essa parte estava viva e
participando da glória.
Fazendo um paralelo entre Ap
6,9 e 20,4, a veste branca e a volta à vida podem ser referências à mesma graça
de Deus para as almas. Portanto, há um fator a mais em favor da ressurreição
espiritual. Assim como a pessoa que está viva fisicamente pode estar morta
espiritualmente, e dessa forma pode ser ressuscitada, assim as almas que
receberam vida pode referir-se a essa vivificação dos pecadores. É a outra
interpretação valida. Essa pode ser a graça da vida da alma para reinar com Cristo
no céu, simbolizada pela veste branca no capítulo 6.
Assim, se se trata da
ressurreição espiritual, a afirmação “eles viveram” significa a libertação do
pecado e a nova criação em Cristo Jesus, como está em João 5,25, onde os mortos
que ouvem a voz de Jesus vivem.
Uma vez que São João fala
daqueles que foram mortos, essa vivificação para reinar com Cristo se dá no espírito,
pela graça de Deus, onde as almas estão, desde já, reinando com Jesus, tanto as
pessoas salvas que estão na terra como as almas santas que esperam no céu o dia
da ressurreição. Isso fica mais claro quando no mesmo capítulo 20 de Apocalipse
temos a revelação da ressurreição geral e física para o Julgamento (vv. 11-15).
A segunda ressurreição é a ressurreição da carne.
Gledson Meireles.
[1]
Isso é chamado linguagem fenomenológica, que expressa o que está aparente e não
o que realmente é. Para mais leia o artigo em: < http://www.catholic.com/quickquestions/how-do-we-refute-the-soul-sleep-argument>
28 Jul. 2016. O argumento usado nesse artigo sobre a cessação da alma será
elaborado neste estudo.
[2]
Interessante que na obra referida a alma é vista como “sede dos pensamentos” e
o espírito como “sede dos sentimentos”, o que difere da explicação católica
que, de forma geral, tem o espírito como a inteligência mesma, e não os
sentimentos. Há uma inversão, pois a alma nessa passagem pode referir-se à sede
dos sentimentos, e o espírito à sede dos pensamentos.
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