quarta-feira, 16 de novembro de 2016

A imortalidade da alma: a parábola do pobre Lázaro e do rico (Lucas 16,19-31)

Apresento abaixo a leitura mais natural da passagem, e um pouco de crítica quanto a algumas implicações da mesma.
v. 19. O homem rico vestia-se de modo finíssimo, e festejava sempre.
v. 20. Lázaro era mendigo e doente, cheio de chagas, e estava à porta do rico.
Esse início mostra que um estava repleto de bens e alegria, e o outro de amargura e sofrimento.
v. 21. O desejo de Lázaro de ser saciado pelo menos com as migalhas que sobravam da mesa do rico mostra a sua indigência, e certamente a maldade daquele rico que não o ajudava.
v. 22. O mendigo morre, e os anjos o levam ao Seio de Abraão. Essa passagem mostra o entendimento corrente entre os judeus fariseus, o ramo principal do Judaísmo que Jesus seguia. Se o homem morreu e foi levado pelos anjos, supõe-se que não foi em corpo, pois os mortos normalmente não saem voando para um lugar, levados pelas cortes celestiais. Percebe-se já aqui uma insinuação da fé na distinção e imortalidade da alma em relação ao corpo. Também é uma indicação disso não tratar-se da ressurreição nessa passagem. Então, os anjos levam Lázaro ao Seio de Abraão, mas somente em sua parte espiritual, ou seja, a sua alma. Sobre esse verso Cornelius a Lapide comenta que a alma do pobre foi conduzida com honra. Esse é o sentido de ser levada por anjos, já que a alma não necessita ser carregada.
Mas, também é dito que morreu o rico e foi sepultado. Não usa a mesma linguagem que foi empregada em relação ao pobre Lázaro. Esse foi para o Seio de Abraão, o pai do povo eleito, e o rico foi sepultado. Isso significa que foi colocado no túmulo, e nada mais. No entanto, o desenrolar da história mostra que ele também foi para um lugar espiritual, em sua alma, já que o corpo estava na sepultura.
v. 23. Nos tormentos infernais está o homem rico. Mas não com seu corpo, pois foi dito que ele foi sepultado. Como sabemos que no túmulo não há ação ou movimento, e o corpo está inerte e caminhando para a decomposição total, então entende-se que está o Senhor Jesus falando da alma do rico. E, então, viu de longe o Lázaro no Seio de Abraão, em felicidade.
v. 24. Bradou a Abraão, para que esse desse ordem a Lázaro para que fosse até o rico e o aliviasse em sua dor. Dentro dos moldes de pensamento bíblico é compreensível que o rico judeu reconhecesse Abraão como pai. E nessa posição, Abraão gozava de uma autoridade, de forma que podia mandar Lázaro realizar algum ofício. Estamos dentro do pensamento bíblico, nos seus moldes originais, e esse permite que pensemos que os fieis, nesse caso já falecidos, dirijam-se ao patriarca do povo de Deus para pedir ajuda.
v. 25. Abraão explica que aquela realidade deveria ser compreendida e acatada pelo rico. Na vida Lázaro sofreu bastante, recebendo males todo o tempo. Por sua vez, o rico vivia na fartura e no regozijo. Depois da morte aquele que sofria em vida estava consolado, e o que viveu no fausto estava agora atormentado.
Não é tecida toda a doutrina da justificação e salvação aqui. Somente a vida na riqueza e alegria e a vida na pobreza e na tristeza do sofrimento são contrastadas. Parece que subjaz a questão da justiça, onde o rico deveria ter caridosamente dado a mão ao seu próximo e não o fez. Talvez isso seja o que levou-o à condenação. Por outro lado, Lázaro não foi salvo, por certo, apenas por ter sofrido. Cristo não ressaltou os aspectos da fé e da obediência a Deus, mas apenas a caridade. Primeiramente o fez mostrando que há esperança para o que sofre, e o juízo espera o que não age com amor ao próximo. Lembra o texto de Mateus 25 sobre o juízo final se considerarmos esse particular ensino da parábola.
v. 26. Entre os salvos e os condenados há uma separação radical. O lugar em que os primeiros estão, está separado totalmente do local em que estão os réprobos. Portanto, após a morte não há possibilidade de mudança de destino: o salvo não mais será perdido, e o condenado não encontrará a salvação. Esse ensino está mostrando a realidade entre os mortos, e não entre os vivos e os mortos. Não está afirmando que os vivos estão separados dos mortos por um abismo intransponível, como muitos erradamente supõem, mas que os mortos santos estão assim separados dos mortos réprobos.
v. 27. Então o rico faz uma um rogo a Abraão. Que Abraão envie Lázaro aos seus familiares, seu pai e seus cinco irmãos. Novamente está reconhecida a autoridade de Abraão: ele pode enviar outros para uma missão. Se estamos aqui no mundo dos mortos, Lázaro não é um homem vivo, com corpo e alma, mas apenas em sua alma. Portanto, a única forma de Lázaro voltar e interferir na vida dos parentes do rico era aparecendo a eles ou ressuscitando.
v. 28. Lázaro poderia testemunhar àquela família, para que eles não fossem condenados. Certamente, o rico tinha em mente que Lázaro pudesse informar-lhes dos deveres do homem para com Deus e o próximo e agisse diferentemente dele, e tivessem a salvação, a vida na felicidade após a morte.
v. 29. Mas Abraão não atende o pedido do rico (de fato, nenhum foi atendido). Cornelius a Lapide cita: cf. Provérbios 21,13, e responde que os seus parentes têm Moisés e os profetas, e que a eles devem ouvir. Pode ser que essa história estivesse situada no tempo do Antigo Testamento, onde Moisés e os profetas significa a Lei e os profetas.
v. 30. No entanto, o rico insiste que se “um dos mortos” for até eles, a repercussão será maior, mais forte, mais convincente. Não sabemos com certeza se o rico pensava em que Lázaro apenas aparecesse a eles e os avisasse dos perigos de uma vida apenas nos prazeres, ou que Lázaro devesse ressuscitar para isso, como a única forma de voltar e realizar o que propunha.
v. 31. A resposta de Abraão parece indicar que trata-se da ressurreição de Lázaro para operar o arrependimento daquela família. Ele não diz: “ainda que apareça algum dos mortos”, mas “ainda que ressuscite algum dos mortos”. Contudo a primeira asserção não está de todo destituída de sentido, dentro dessa atmosfera da parábola.
Se estamos falando da alma, então devemos entender que as partes do corpo citadas na parábola estão relacionadas ao que sabemos constituir um corpo humano, como o dedo e a língua mencionados. Aquele lugar de tormento tinha fogo, e como apenas uma gota de água não poderia resolver o problema de tão grande sofrimento que afligia o rico, o sentido manifesto é que qualquer alívio era desejado, diante de tamanha dor.
Além do mais, a alma ter língua, dedo, etc. não é impedimento algum para entendermos a passagem como ela é, ou seja, tendo como fundamento a imortalidade da alma. Lembremo-nos das ocasiões em que Cristo apareceu aos discípulos, e eles achavam tratar-se de um espírito, de um fantasma. Todos viram Jesus, de longe, mas não tinham-No reconhecido. Viam que era uma pessoa, com a mesma forma corpórea de todos nós, com cabeça, tronco e membros, e ainda assim não sabiam que aquele era Jesus, ou seja, não pensavam que se tratava de uma pessoa de carne e osso, mas pensaram ser um espírito.
Da mesma forma, quando os apóstolos viram Jesus ressuscitado, mas Tomé não estava presente, esse afirmou que não acreditaria se não tocasse no Seu corpo, se não pusesse a mão no Seu lado. Com isso, Tomé estava indisposto a crer na ressurreição, e mesmo duvidaria se visse o Senhor diante de si mesmo, pois poderia ser um espírito, ainda que com toda a forma humana, e por isso exigiu poder tocar nas chagas de Cristo para que pudesse crer.
Tudo isso mostra que os judeus não tinham qualquer problema em falar de um espírito que tem toda a forma humana conservada para sua identificação, pois somente um pressuposto de que a alma fosse uma forma totalmente diversa daquela que conhecemos ser a forma de uma pessoa viva é que é imaginada para causar espécie aqui. Não é argumento, nem tem força alguma.
Outra coisa que deve chamar atenção é o motivo de Cristo ter querido ensinar a justa retribuição, que Deus tem para cada salvo, usando uma ilustração que mostra essa retribuição logo após a morte, não mencionando a ressurreição nem do rico nem do Lázaro, mas afirmando que ambos já estavam usufruindo da vida de Deus.
E mais. A história é bastante impressionante. A vida desregrada do rico e o sofrimento do pobre são contrapostos. Abraão é mostrado como o líder do mundo dos mortos salvos. A aparição ou a ressurreição são pressupostos da passagem. E é importante notar que mesmo na hipótese de que fosse à ressureição que o rico certamente se referia ao pedir para Lázaro ir aos seus familiares, essa pressupõe a imortalidade da alma, pois não haveria lucro algum, o morto ressuscitar para contar a sorte de sofrimento de um ente querido após a morte se esse mesmo ente querido não mais existisse, e fosse retornar à existência apenas na ressurreição. A leitura sob o enfoque da imortalidade da alma faz todo o sentido. Devemos pensar se faria o mesmo diante do pressuposto de que a alma não existisse. Essa é a interpretação de muitos, como os adventistas.
Para isso, deveríamos supor que toda a parábola usasse uma personificação dos mortos, com seus corpos tidos como vivificados simbolicamente, assim como o faz com as árvores, as pedras e os animais. Ao dizer que os mortos estavam conscientes apenas estaria usando a metáfora, como quando faz a criação louvar a Deus, e supõe inteligência nas árvores e etc. Essa seria a única via de negar toda a leitura mais simples da passagem, e é a forma preferida pelos defensores da mortalidade da alma.
No entanto, os detalhes não parecem ser tão simplificáveis assim. Tudo parece muito bem conhecido pelos judeus, como a figura de Abraão, o Seio de Abraão, as consequências da vida após a morte, a autoridade normativa da Lei e dos Profetas. Ainda mais. Quando o diálogo é desenvolvido, parece mesmo que o Seio de Abraão é distante da terra, e que para Lázaro ir aos vivos deveria certamente ressuscitar. Quando o pobre “foi levado” isso indica o distanciamento do mundo dos vivos. E o rico roga para que os seus parentes não sejam lançados “neste lugar de tormentos”, o que é mais uma indicação do inferno que uma metáfora do túmulo.
De fato, quando as metáforas são aplicadas nas Escrituras nesses casos, tempos uma perfeita localização do evento. As pedras clamarão se os homens calarem, diz Jesus quando entra em Jerusalém. Isso indica que se a multidão deixar de exaltar a Ele naquele momento, como o Filho de Davi, as pedras tomarão seu lugar na proclamação dessa verdade.
Em 2 Reis 14, 9 está escrito: Joás, reis de Israel, respondeu a Amasias, rei de Judá: “O espinho do Líbano mandou dizer ao cedro do Líbano: ‘Dá a tua filha por esposa ao meu filho!’.” As árvores estão personificadas. O espinho e o cedro são a personificação de pessoas do Líbano. Temos os sujeitos e uma localidade, e entendemos ser uma metáfora.
Quanto à parábola do rico e do Lázaro, quando diz que Lázaro morreu e foi levado ao Seio de Abraão, temos uma pessoa que deixa o mundo e é dirigida a outro lugar. O rico é sepultado, mas logo aparece próximo ao local em que foi levado Lázaro. A localização desse cenário não lembra apenas a sepultura. Não parece que apenas os corpos estão sendo personificados.
Portanto, devemos ler essa história do Senhor, simbólica com toda a certeza, mas que revela uma realidade, que inclui a consciência das almas dos falecidos, e as diferentes sortes que já desfrutam antes da ressurreição.
A passagem de Juízes 9,8-15
Vemos que as árvores estão personificadas. No entanto, toda a alegoria tem seu sentido ligado ao literal. Cada árvore produz algo apreciado pelos homens, e sua apreciação é feita de acordo com a cultura judaica, e todas as outras particularidades também, como a unção do rei e seu reinado sobre o povo.
As árvores estão agindo como pessoas, mas sabemos que árvores não falam, não possuem inteligência. Diferentemente, na parábola de Lucas 16,19-31 são pessoas que falam. E todo o acontecimento é visto como desenrolando após a morte. Tais são as noções que os judeus possuíam, e Jesus utilizou-as.
Não podemos pensar que as árvores representam pessoas que foram pedindo literalmente a um e a outro para que reinasse sobre elas, e cada um foi respondendo conforme seu caráter, e assim por diante. É a noção geral que ensina uma lição moral. Os judeus pediam um rei e através dessa alegoria é passado um ensinamento ao povo judeu sobre essa atitude sua.
Do mesmo modo não podemos pensar, caso seja mesmo uma parábola, que houve um rico e um pobre que viveram literalmente como mostrou a parábola e no mundo dos mortos ocorreu cada fato que foi narrado. É também o contexto geral dessa história que fornece o ensinamento. E nesse está a consciência após a morte.

Parábola ou história real

Os comentadores do Evangelho são divididos quanto à natureza da passagem em questão. Alguns a consideram uma parábola, outros uma história. A maioria dos padres da Igreja, segundo Cornelius a Lapide, interpretam a passagem como um história real. O rico seria conhecido dos judeus, e por sua história a lição que Cristo ressaltou seria mais impactante para eles. No entanto, a forma da linguagem nessa história é de parábola.

Gledson Meireles.

2 comentários:

  1. Pode me dizer o que acha do que esse adventista disse sobre essa parábola?
    https://youtu.be/8dCiEqjG-1M

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    1. Olá Glaysom:

      A interpretação é interessante, com as razões bem claras. Ele afirma que há católicos que creem dessa forma, mas católicos que pensam assim não estão pensando como católicos, pois isso é negação de dogmas da Igreja. Católicos creem na imortalidade da alma.

      Cemitério é dormitório, pois, ali os corpos estão como que dormindo. Não há o que falar sobre o estado das almas.

      No céu não há conhecimento direto do que ocorre na terra, e assim as almas no céu não poderiam entristecer-se vendo o sofrimento de entes queridos na terra. Há algum conhecimento que Deus permite que anjos, e certamente os santos tenham, mas não é correto afirmar como o autor expressa no vídeo, de que almas ficariam aflitas por verem seus familiares sofrendo na terra.

      Outro problema é afirmar que as almas do Antigo Testamento não estavam diante de Deus no céu. O autor parece estar refutando a ideia, mas não está, porque a doutrina católica ensina que todas as almas ficavam no sheol, não subiam para o céu, mas somente a partir da ressurreição de Jesus.

      Inferno não corresponde a hades. Em algumas passagens afirmar isso é correto, mas não em todas. Por exemplo, na própria passagem que conta a história do rico e Lázaro o hades é o inferno.

      O autor reconhece que Jesus referiu-se à imortalidade da alma nessa parábola. Ponto positivo.

      Ele interpreta, porém, como que uma aparente concordância de Jesus para ensinar que os mortos não podem vir contar o que se passa após a morte, mas que se deve crer nas Escrituras.

      Os exemplos de que Jesus concordou aparentemente com o apedrejamento da mulher adúltera, e com o uso da espada, pode-se responder que Jesus usou realmente daquelas circunstâncias para ensinar algo mais. No entanto, tudo o que existia para substanciar o ensinamento era verdadeiro: a Lei de Moisés manda apedrejar, e Jesus não negou isso. Os discípulos usavam espadas, e Jesus não os mandou jogarem-nas fora.

      Jesus também concordou com o jovem rico, e ensinou que obedecendo os mandamentos ele teria a vida. Isso é ensino de Cristo. Portanto, os exemplos corroboram que Jesus cria na imortalidade da alma.

      Dessa forma, ainda que existam essas histórias na cultura judaica, e que Jesus estaria apenas usando desses mitos ensinar algo mais, Ele não discordou da imortalidade da alma, e por isso a explicação do autor não consegue desfazer essa realidade.
      Certamente vou postar algo mais completo sobre esses argumentos.

      Até mais.

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