Samuel profetiza a Saul após a morte
Em Samuel 28 é narrada a consulta
que o rei Saul fez à mulher necromante de Endor, e a aparição de Samuel, com
uma palavra de confirmação da rejeição de Saul da parte de Deus e do seu
perecimento.
O exército filisteu havia
acampado para a guerra, e ao vê-lo Saul temeu grandemente, e ficou perturbado.
Procurou a Deus para o consultar, mas não obteve resposta, nem nos sonhos, nem
pela sorte, nem pelos profetas. Deus não mais comunicou Sua Palavra a Saul.
(cf. 1 Sm 28,5-6)
Teve o rei, então, a ideia
de procurar uma mulher advinha, para que a consultasse. E chegando à mulher
pediu a ela que invocasse a Samuel. (v. 11) Esse ponto que mostra essa outra
tentativa do rei em encontrar resposta apesar de Deus não ter mais respondido
será melhor entendido à frente.
O texto sagrado afirma que a
mulher perguntou: “A quem chamarei” e que o rei respondeu: “Chama Samuel”. A
linguagem da Escritura nesse momento não usou expressar-se como seria esperado,
distinguindo corpo e alma: “A que alma chamarei” e “Chama a alma de Samuel”,
mas é isso o que a passagem está informando. O início do capítulo introduz
nesse assunto ao mostrar que “Samuel tinha morrido.” (v. 3)
E assim o fez aquela
necromante. Diz a Escritura que: “Então a mulher viu Samuel e, soltando um
grito medonho, disse a Saul: “Por que me enganaste? Tu és Saul!”. (1 Sm 28,12)
O texto afirma que a adivinha “viu Samuel”, o que mostra ter sido uma aparição
a ela, talvez uma visão individual, pois não parece que nesse momento Saul
tenha visto o mesmo. De fato, ele pergunta: “Disse-lhe o rei: “Não temas! Mas o
que vês?” E a mulher respondeu a Saul: “Vejo um deus que sobe da terra. Saul
indagou: “Qual é a sua aparência?” A mulher respondeu: “É um velho que está
subindo; veste um manto.” Então Saul viu que era Samuel e, inclinando-se com o
rosto no chão prostrou-se.” (1 Sm 28, 13-14)
A passagem não sugere que a
mulher tenha entrado em transe, e perdido sua própria consciência para que
Samuel falasse por meio de sua boca, como seria se pensássemos na forma que
acontece no espiritismo. A cena, porém, sugere que a mulher viu Samuel,
continuou a conversa com Saul, sem qualquer alusão a um êxtase, e continua a
descrever o que está vendo. Talvez Saul tenha visto o “espectro” de Samuel,
conforme termo empregado no texto grego, mas dessa visão o texto não torna claro.
Pode ser que o rei tenha, após o que a necromante contou-lhe, entendido
tratar-se de Samuel, e agiu como costumeiramente agem os judeus, inclinando-se
a prostrando-se diante da presença do santo profeta de Deus.
Ao continuar a narração do
evento, a Escritura afirma: “Samuel disse a Saul: “Por que perturbas o meu
descanso evocando-me?” (1 Sm 28,15)
Essas palavras estão em
total acordo com o que a Bíblia inteira revela sobre o estado dos mortos:
descem ao sheol e lá permanecem em descanso, possuindo uma existência sem a
energia dos vivos, mas não deixam de existir. Os traços que o texto apresenta
são claros: Samuel “sobe” da terra, indicando que vem do mundo subterrâneo. Não
se trata da sepultura apenas, pois não é dito que Samuel foi ressuscitado em
Ramá e veio até aquele lugar em Endor para conversar com Saul. O que está
afirmando a Escritura é que o espírito de Samuel apareceu após ser invocado
pela necromante. Em 1 Crônicas 10,13 está escrito que Saul consultou um
“espectro”, e em Eclesiástico 46,20 sabemos que Samuel profetizou após a sua
morte. Essas testemunhas tornam bastante sólido o fato de que a alma de Samuel
foi vista pela necromante, e falou com Saul.
No entanto, o que Samuel diz
a Saul não traz novidade. Saul queria saber o que deveria fazer (v. 15), mas
Samuel não o diz. E ao terminar suas palavras, profetiza que Saul e os seus
filhos morrerão, juntamente com o exército de Israel. (1 Sm 28,19) Isso de fato
ocorreu em 1 Samuel 31,6: “Assim morreram juntos
naquele dia, Saul, os seus três filhos, o seu escudeiro e todos os seus homens”.
Todo o capítulo é literal,
não usa de figura de linguagem, não supõe intervenção maligna, não afirma nada
mais fora de que foi realmente Samuel quem apareceu na sessão realizada pela
necromante em Endor.
A Bíblia proíbe a consulta
aos necromantes, adivinhos, e etc., proibindo também essa prática. No entanto,
em nenhum momento usa de argumentação de que não existem almas humanas para
serem consultadas. Esse seria o melhor argumento, como fazem os mortalistas
atuais, para tirar de vez toda a possibilidade de que um espírito humano
envolva-se em uma cerimônia como a que foi apresentada. Mas, em toda a Bíblia
nunca é usado nada nesse sentido, e o texto deixa claro que a fé dos judeus era
de que os mortos desciam ao sheol e lá ficavam, e não que eles deixassem de
existir completamente.
Essa passagem recebe várias
interpretações, e muitas negam que Samuel tenha realmente aparecido, e que um
espírito do mal veio enganar a Saul sob a aparência de Samuel. Já vimos que a
Bíblia não sugere isso, mas é importante conhecer as objeções.
Muitos creem que conforme 1
Sm 28,6 Samuel não poderia ter aparecido, visto que Deus não mais respondia a
Saul, tendo cortado radicalmente as relações com ele. Porém, pelos cânones
bíblicos essa objeção não tem fundamento, pois o próprio Samuel lembra esse
fato em sua conversa com Saul, em 1 Sm 28,16. A Escritura não vê nenhuma tensão
entre a recusa do Senhor Iahweh em responder a Samuel, pelas vias normais, ou
seja, por sonhos, pelo urim e pelos profetas e a aparição do profeta já
falecido Samuel. Nenhum vestígio no texto bíblico deixa transparecer que Samuel
não possa ter-se comunicado com Saul pelo fato de Deus não mais ter respondido
às suas invocações.
Todo o relato acontece
conforme pensava o rei Saul em seu coração, pois vendo que não mais tinha
respostas do Senhor, pensou em procurar uma mulher que pratica adivinhação. Ele
viu nessa opção uma possiblidade de ter uma mensagem. A sua busca de Deus e a
sua consulta à necromante são vistas como duas possibilidades compatíveis para
chegar ao objetivo desejado. Assim, pelos parâmetros bíblicos, Deus não ter
respondido em 1 Sm 28,6 não interfere na aparição de Samuel em 1 Sm 28,13.
Sabemos que todas as coisas
somente acontecem se estiverem de acordo com a vontade de Deus. Nesse ponto,
Samuel poderia ter aparecido por permissão divina, mas não de acordo com a
Vontade de Deus que fosse a Saul e lhe trouxesse a mensagem que tanto almejava.
A aparição de Samuel estava entre as possibilidades normais de que os mortos
podem aparecer aos vivos. De fato, aquela visão da necromante não é concebida
como um meio de Deus responder a Saul, mas como uma forma diversa daquela, como
outra via ao lado daquelas consideradas lícitas em Israel, a saber, sonhos, urim e profetas. Deus não falaria
através das práticas da necromancia, mas era possível que os mortos ali
aparecessem.
Isso não significa que de
regra todas as vezes que os mortos são invocados eles aparecem. O que afirma-se
aqui é que na Bíblia a possibilidade de um morto aparecer a um vivo não é
descartada, e é isso o que está em 1 Samuel 28, com a nítida narração da
aparição de Samuel para reprovar novamente o rei Saul e profetizar que sua
sorte seria a morte na batalha contra os filisteus.
É preciso ressaltar que Saul
não conseguiu o que pretendia. Ele queria saber o que fazer naquelas
circunstâncias, sendo isso o motivo de pedir a ajuda de Deus. Ao olharmos
atentamente para o que ocorreu em 1 Sm 28, não vemos que Samuel tenha dado
qualquer conselho a Saul. Portanto, o que estava estabelecido em 1 Sm 28,6 foi
seguido aqui: Deus não mais deixou qualquer revelação para Saul. O que foi dito
em 1 Sm 28,17-18 já havia sido revelado por Samuel em vida. Assim, Deus não
enviou resposta a Saul através de Samuel.
A objeção de que Samuel era
um profeta, e Deus não enviou mensagem através dos profetas a Saul está então
respondida. A prática era altamente probidade em Israel, em Levítico 19,31 e
Deuteronômio 18,11, por exemplo. No entanto, em nenhum lugar está escrito que as
almas não existem e que esse seria o motivo que invalidaria qualquer invocação
dos mortos.
Se a necromancia fosse
praticada por um israelita tornara esse ritualmente impuro. Essa lei não prevê
o que ocorreu em 1 Sm 28 por parte de Samuel. Há quem afirme que Samuel não
iria submeter-se à regras da necromancia, e se assim o fizesse estaria em
contradição com a Lei. Nada disso é pressuposto na Bíblia. Como mostrado acima,
a Bíblia não faz essa conexão, e o argumento em cima desse pressuposto não é
bíblico, mas é oriundo de especulações, válidas enquanto parte da investigação,
mas não devem permanecer por não serem naturais aos princípios da Escritura.
Se assim o fosse, o livro de
Samuel teria ao menos insinuado que a participação do profeta Samuel naquele
acontecimento teria feito dele um transgressor da lei contra as práticas da adivinhação.
No entanto, nem de longe isso transcorre no texto. De fato, o próprio Samuel
lembra novamente a Saul que o mesmo desobedeceu a Deus e por isso não mais
tinha a resposta quando O consultava. Nada supõe que aquela intervenção de
Samuel fosse algo que a lei considerasse pecaminoso.
É preciso muita atenção,
como também é necessário fazer essa distinção que a Bíblia faz: Deus não
respondeu a Saul, mas Samuel o fez, e não tendo nada da parte de Deus a
acrescentar, por esse motivo, apenas repetiu a condenação que Deus já havia
feito a Saul. Sendo assim, Deus não mais teve participação na vida de Saul, não
dando-lhe respostas, e não foi Deus que diretamente enviou Samuel para falar a
Saul alguma coisa. O que está ali é que Samuel apareceu a Saul e disse-lhe o
que já estava estabelecido, e essa possibilidade das almas do sheol entrar em
contato com os vivos é uma realidade, e sendo assim Deus permite que tais
coisas possam porventura acontecer.
Temos então que:
1)
Segundo as regras do pensamento bíblico as
proibições contra as práticas necromantes (Lv 19,31;20,6;Dt 18,11) não estão
relacionadas às almas que possam vir a aparecer a algum vivo e proferir alguma
sentença.
2)
Deus abandonou Saul e não mais esteve
disposto a respondê-lo por quaisquer dos meios lícitos e usuais entre os
judeus.
3)
Samuel apareceu a Saul porque foi importunado
com a invocação da necromante, e por si mesmo, vista a possibilidade dada por
Deus para isso, veio a Saul para informar-lhe novamente de sua rejeição da
parte de Deus.
4)
Todas essas cenas estão harmoniosas com o
tipo de pensamento da Bíblia, que não faz oposição entre a recusa de Deus de
responder a Saul e a aparição de Samuel ao mesmo, nem liga a impureza da
prática de necromancia à alma que porventura venha aparecer a algum homem.
A possibilidade das almas
aparecerem é um fato. Agora, quanto às práticas espíritas, essas são
normalmente feitas tendo como pressuposto que os espíritos dos mortos tomam o
corpo do médium e falam através dele. Isso não foi o que aconteceu em 1 Sm 28.
O que temos aí trata-se de uma visão, e não de uma possessão do corpo da
necromante. Dessa forma, o que ocorre no Espiritismo moderno não pode ser
igualado ao que está revelado sobre a comunicação que o profeta de Deus teve
com o rejeitado rei Saul.
A necromante afirma ter
visto “um deus”, em hebraico elohim.
Esse termo indica alguém com aparência angélica, sobrenatural, celestial. De
forma geral, essa designação não é usada para os mortos, mas para os anjos. No
entanto, o rei Saul não estranha a aplicação do termo naquele momento, e pela
descrição da aparência do ser visto ele entendeu tratar-se de Samuel. Assim,
certamente o termo empregado “elohim” não é alheio também nesse sentido de
espírito dos mortos, embora não seja mais encontrado na Bíblia com essa
acepção.
A visão da mulher foi de que
um ser subiu da terra. Essa parte já foi explicada acima, de acordo com a visão
geral do conteúdo da Bíblia a respeito disso. Mas vale a pena repetir aqui.
Segundo as Escrituras, os mortos descem ao sheol, a mansão dos mortos, como
está em Números 16,32-33. Dessa forma, prevendo que trataria da alma de Samuel
nessa aparição, o capítulo de 1 Samuel 28 já inicia falando da morte do
profeta. (v 3) Portanto, quando a mulher vê alguém subindo da terra, e não
descendo do céu, isso indica a aparição de um morto, e não de um anjo ou
espírito maligno, visto que os judeus criam que as almas eram como que sombras
que permaneciam no lugar sombrio do mundo dos mortos, que está localizado nas
regiões subterrâneas.
Em Eclesiastes 3,21 há uma
interrogação a respeito do espírito (do fôlego) dos homens e dos animais, se o
dos homens sobe e se o dos animais desce para debaixo da terra. Essa pergunta
certamente é usada para enfatizar o cuidado de Deus para com o homem, que o
trata exclusivamente, e não como os animais. O espírito aludido nesse texto não
é por certo a alma imortal, que sai na morte e vai para o céu ou que desce para
a debaixo da terra.
De fato, isso fica claro
quando constatamos que os animais não possuem alma imortal, e não são mostrados
como habitando o sheol, assim como os seres humanos. Além disso, em Eclesiastes
12,7 é revelado que na morte o espírito volta para Deus.
Assim, o que Ecl 3,21 está
ensinando é o cuidado de Deus especialmente para com o homem, de forma que já
alude a um destino diferente para os homens e para os animais, e uma diferença
essencial entre o espírito do homem e o espírito dos animais. Sabemos que antes
da vinda de Cristo ninguém subiu ao céu. Portanto, o espírito voltar para Deus
significa apenas a vida que foi tirada, de forma que o corpo e alma não mais
estão ligados, sendo o corpo decomposto e tornado pó, e a alma encaminhada ao
sheol. O espírito que sobe a Deus em Ecl 12,7 significa que está sob a
autoridade de Deus conceder a vida de cada pessoa na ressurreição. Entretanto,
isso não necessariamente nega a existência da alma.
O espírito dos animais ser
deixado descer para a terra talvez signifique que eles não estejam na mesma
ordem no plano de Deus, e suas vidas perecem completamente, “descem” para a
terra, ao invés de retornar a Deus criador. Desse modo, o que está em Eclesiastes
12,7 é uma resposta a Eclesiastes 3,21.
Sendo assim, as questões de
Ecl 3,21 possuem estreita ligação com o destino eterno do homem, com a
imortalidade da alma e com a ressurreição, mas o próprio termo espírito ali não
conota a alma imortal, mas apenas o sopro de vida que é tomado por Deus quando
esse morre. Refere-se ao fôlego de vida que garante a existência do homem na
Terra, e não ao seu espírito que é parte do seu ser e que permanece no sheol
após a morte.
A respeito da predição de
Samuel em 1 Sm 28,19, sabemos que todos os mortos são sepultados e suas almas
descem ao sheol, não é difícil entender que Samuel afirme que Saul e todos os
seus estariam com ele. Isso apenas significa que eles morreriam. A passagem não
faz distinção entre os mortos salvos e os condenados, apenas indica que no dia
seguinte todos aqueles seriam mortos.
Com referência ao termo
elohim, que é plural em hebraico, de fato, mas o contexto não indica que esse
foi o caso, pois pela descrição Saul entendeu tratar-se de um único ser, e não
de vários. Embora elohim seja o plural de deus em hebraico, o próprio Senhor
Deus é chamado Elohim, e nesse sentido é traduzido no singular. Portanto,
Samuel apareceu sozinho, e o termo elohim, geralmente aplicado a anjos, mostra
sua majestade de profeta na visão.
Ainda mais. A profecia de 1
Sm 28,19 foi cumprida. Saul e seus filhos iriam morrer, e o exército de Israel
seria entregue nas mãos dos filisteus.
Está escrito em 1 Sm 31,1-2:
“Entretanto, os filisteus atacaram Israel, e os
homens de Israel fugiram perseguidos por eles e caíram feridos de morte, no
mente Gelboé. Os filisteus fizeram o cerco a Saul e seus filhos, e mataram
Jônatas, Abinadab e Melquisua, filhos de Saul.”
E o verso 6 afirma: “Assim morreram juntos naquele dia, Saul, os seus três
filhos, o seu escudeiro e todos os seus homens.”
No mesmo dia pereceram, nas
mãos dos filisteus, tanto Saul como seus filhos e o seu exército. O texto
afirma “todos os seus homens”, que é o exército que lutava com Saul contra os
filisteus.
Então, os filisteus ainda
tiveram mais participação nesse destino sombrio de Saul: “Cortaram-lhe a cabeça e despojaram-no de suas armas, e os
enviaram à redondeza, pelo território dos filisteus, para anunciar a notícia em
seus templos e ao povo. Assim que os habitantes de Jabes de Galaad souberam o
que os filisteus tinham feito com Saul, todos os valentes de puseram a caminho
e, depois de terem andado a noite toda, retiraram o muro de Betsã os corpos de
Saul e os dos seus filhos. Voltando a Jabes, aí eles os queimaram. Depois
recolheram os seus ossos e os enterraram debaixo da tarmargueira de Jabes, e
jejuaram durante sete dias.” (vv. 10-11)
Ser entregue nas mãos dos
filisteus significa sucumbir pela ação deles, e foi justamente isso que ocorreu
com Saul, seus filhos e os homens do seu exército.
Saul suicidou por medo, após
ver que estava derrotado. Isso está incluído em ser entregue nas mãos dos
filisteus. Além do mais, para quem afirma que Saul foi entregue nas mãos dos
habitantes de Jades de Galaad, esse apenas mostra não ter entendido a expressão
ser entregue nas mãos de alguém, nesse contexto, e não prestou suficiente
atenção no que fizeram aqueles habitantes. Eles apenas viram o fim de Saul,
souberam o que os filisteus tinham feito contra ele, em seu ritual queimaram os
corpos de Saul e dos outros, e os enterraram. No final, fizeram jejum por eles
durante uma semana. Isso está longe do que significa ser entregue nas mãos de
alguém no contexto de guerra.
Outro detalhe que é usado
para desacreditar a aparição de Samuel é que não foram todos os filhos de Saul
que morreram, mas apenas parte deles. Esse é outro problema em introduzir um
critério que a Escritura não possui. De fato, a Bíblia mostra que a profecia
foi cumprida, e morreram com Saul “os seus três filhos”, indicando que foi
sobre esses filhos que a profecia considerou. Não afirma que teriam que morrer
todos os filhos de Saul, mas apenas aqueles que com ele estavam na batalha.
Não adianta apelar para o
dado textual em sua descontextualização total: “tu e os teus filhos estareis
comigo”. Lido em separado poderia significar que todos os filhos de Saul, sem
exceção, seriam mortos com ele. Ou talvez, a maioria deles. Contudo, ainda
assim não é o que seria lógico da afirmação absoluta encontrada no verso
isolado. Mas, esse é outro pressuposto inserido na interpretação. O capítulo
não mostra que seja o caso de que pela afirmação é exigido que todos os filhos
de Saul estivessem inseridos na profecia, e o verso não pode ser destacado de
toda a passagem, mas ser entendido conforme o conteúdo do livro. E, como vemos,
o mesmo é cuidadoso em asseverar o fim de Saul diante dos filisteus juntamente
com seus filhos e o seu exército.
1 Samuel 28,19
|
1 Samuel 31,1.6
|
Como consequência, Iahweh entregará, juntamente contigo, o teu povo Israel nas mãos dos
filisteus. Amanhã, tu e os teus
filhos estareis comigo; e o
exército de Israel também: Iahweh o entregará nas mãos dos filisteus.
|
Entretanto, os filisteus atacaram Israel, e os homens de Israel fugiram
perseguidos por eles e caíram
feridos de morte, no mente Gelboé. Os filisteus fizeram o cerco a Saul e seus filhos, e mataram
Jônatas, Abinadab e Melquisua, filhos de Saul. Assim morreram juntos naquele
dia, Saul, os seus três filhos, o seu escudeiro e todos os seus homens.
|
O texto da profecia mostra
que o povo Israel foi entregue nas mãos dos filisteus. Isso não significa que
não sobrou nenhum Israelita para contar a história, ou que foi a maioria
absoluta que caiu sob a espada dos filisteus. Antes, isso quer dizer que o povo
de Israel não prevaleceu contra os filisteus naquela guerra. Assim, também, a
profecia mostra que Saul e os seus filhos iriam sucumbir, e também o exército
de Israel. Não podemos entender que não sobrou filho nenhum de Saul, e que
Israel ficou totalmente sem exército, mas apenas que a guerra foi vitoriosa
para o lado filisteu.
O mesmo dado é encontrado no
texto que mostra a realização da profecia. O texto afirma que os homens de
Israel fugiram e caíram mortos, o que não significa que todos os homens de
Israel, sem faltar um só, teriam fugido e morrido. Nada disso. Apenas refere-se
aos que estavam lutando com Saul.
Também, o texto afirma, de
maneira geral, que os filisteus cercaram Saul e seus filhos. Não podemos parar
nesse particular e afirmar que todos os filhos de Saul estavam ali, pois logo a
seguir, repetindo o fato, o texto esclarece que Saul, seus três filhos, seu
escudeiro e todos os seus homens morreram nesse dia. Portanto, o fato está
relacionado aos que estavam com Saul naquele momento, naquele dia, e mostra que
a profecia de Samuel foi totalmente cumprida.
A objeção talvez mais
interessante é a que refere-se ao tempo em que a profecia deveria ser cumprida.
O texto afirma que “amanhã” tudo isso ocorreria, mas pela leitura dos capítulos
seguintes vemos que isso foi após alguns poucos dias. Tal caso não precisa
deixar preocupado a quem está acostumado com o modo bíblico de apresentar as
coisas.
Jesus fala em Mateus 16,28
que muitos que ali estavam vivos não morreriam sem ter visto o Filho do Homem
vindo com Seu reino. E o contexto está ligado ao verso 27 que afirma que Jesus
virá com Seus anjos. Assim, deveríamos pensar que antes que aquela geração do
tempo de Cristo não passaria antes que a parusia ocorresse. O que tudo indica é
que a profecia primeiramente estava ligada à vinda do Reino com inauguração, e
que os sinais ali ocorridos e realizados, na destruição de Jerusalém, seriam os
sinais que vão caracterizar a vinda de Cristo com Seus anjos no fim do mundo
para julgar. Somente que não está familiarizado com essas especificidades
bíblicas, ou que não creiam nas Escrituras, é que objetariam quanto a isso.
O mesmo pode-se afirmar do
“amanhã” predito por Samuel, visto que nem no contexto do livro, nem em todos os
capítulos imediatos, há qualquer alusão de que os acontecimentos profetizados
não tenham sido realizados no prazo proposto.
Particularmente, o
entendimento de Saul é também colocado em questão, como se o texto bíblico
dependesse dele para relatar tudo o que relatou aqui. Assim, não teria sido
afirmação da Bíblia de que foi Samuel quem realmente apareceu, mas que apenas
isso foi a dedução de Saul. Essa problemática interpretação deixa todo o texto
e contexto de lado, e conclui novamente por um dado periférico.
O relato mostra que Saul
cria na existência das almas em um lugar após a morte, cria também que era
possível evocar os mortos. Também mostra que a mulher teve a visão de um ser
que não conhecia, e fez a descrição do mesmo a Saul que, a partir disso,
entendeu que se tratava de Samuel. Então, a Bíblia, sem afirmar que Saul
tivesse errado em seu entendimento, afirma que foi na verdade Samuel quem
falou, no v.15: “Samuel disse a Saul”. A Bíblia não está somente continuando
sobre uma suposta falha de intepretação do rei Saul, mas afirma, em todo o contexto,
que foi Samuel quem apareceu naquele momento.
A comparação com Josué 10,13
não parece refutar o que foi colocado aqui.
De fato, no texto afirma-se que o sol parou, e a lua ficou imóvel, o que
está em desacordo com o conhecimento científico que temos hoje. No entanto, como
Galileu afirmou, a Bíblia está usando a linguagem corrente, como fazemos até
hoje, ainda que tenhamos conhecimento de que o sol é imóvel e a lua é um
satélite, portanto sabemos que ela é móvel. O que está afirmado na Bíblia é que
de fato o dia foi estendido, de forma milagrosa, e não que Josué tenha tido um
ponto de vista sobre o qual o relato foi construído. Aquele não foi o ponto de
vista de Josué, mas o entendimento geral do que ocorreu, e as Escrituras
afirmam que o dia foi feito maior do que o normal, e com isso usa a expressão
de que o sol parou.
Voltando ao caso de Saul,
ele não faria uma consulta a uma necromante se não cresse que a alma do morto
tivesse a capacidade de ouvir à evocação e aparecer. Aliás, esse era o parecer
dos judeus. O fato da necromancia estar proscrita não invalida o fato de que há
o pressuposto de que o Povo de Deus cresse na possibilidade dos mortos
aparecerem aos vivos. O que está em questão é a proibição e o pecado de
consultar os mortos.
Pode ocorrer a argumentação
de que entre o povo judeu existam muitas coisas que não provam ser elas
legítimas e acatadas pelos fieis, mas esse não é o caso, já que todo o relato é
solidamente construído na afirmação de que Samuel veio a comunicar-se com Saul
depois de evocado pela mulher necromante de Endor.
O
holismo bíblico e as passagens que tratam da morte. Uma
das objeções quanto às passagens que parecem tratar do fim da atividade
intelectual e suposta inexistência do ser humano após a morte é que, sendo o
holismo o sistema adotado na Bíblia não haveria espaço para falar de alma
separada do corpo. Interessante objeção, mas refutada no presente estudo. De
fato, como visto que a natureza humana na Bíblia é de que corpo e alma são
separáveis, então a aparente dificuldade deixa de interessar.
Também, conhecendo a fé do
Povo de Deus de que após a morte a alma habita o sheol, não podendo louvar a
Deus (cf. Sl 6,5), e que estava limitada em suas atividades ao mínimo possível
(cf. Ecl 9,5.10), é compreensível que ao falar da morte não apareça uma visão
tão otimista nos tempos antes de Cristo. Isso está longe de provar que a alma
morre, mas apenas mostra a crença judaica anterior ao advento do Salvador.
Na doutrina cristã católica
não há espaço para a crença pagã de uma alma revestida por um invólucro que não
tem muita importância. Essa é a noção que geralmente prevalece nas críticas
contra a imortalidade da alma. Na verdade, a Igreja Católica, com a Bíblia,
ensina que a natureza humana é corpo e alma, e que a alma sendo espiritual
continua a existir após a morte, esperando, porém, ser ressuscitada com o
corpo. Ela não está morta, apenas perdeu a atividade nas suas faculdades
daquilo que somente o corpo pode favorecer, e que tornará a completar-se com a
ressurreição, que é totalmente necessária.
Portanto, mesmo tendo a
noção da integralidade da natureza do homem por seu corpo e alma unidos, na
morte a alma subsiste como núcleo da personalidade, mas continua a noção de que
a pessoa está morta. Somente a junção do corpo e da alma faz a pessoa, e uma
vez que na morte não existe essa união, então a Bíblia afirma que a alma (no
sentido de pessoa, e não de alma imortal) está morta. Afirmar que uma alma
morrerá é o mesmo que dizer que uma pessoa morrerá. (cf. Ez 18,4) É a isso que
se refere a Bíblia nos textos dos Salmos 78,50 e Números 23,10 e outros. O
termo empregado nesse sentido não faz nenhuma modificação na palavra alma como
sinônimo de espírito que não pode morrer. É preciso reconhecer que a doutrina
bíblica apresenta o corpo e alma que são separados na morte, sendo que a alma
continua a existir com consciência.
Gledson Meireles.