A comparação com os vasos de barro (Romanos 9)
Quem
não aprendeu com a doutrina ensinada no Sínodo de Dort que Deus teria criado
uns para salvação e deixado outros para a perdição? Mas, você sabia que Deus
quer a salvação de todos, e criou o homem livre, e não determinou que ninguém
fosse condenado?
Você
pode crer com firmeza que é predestinado ao céu, embora não saiba certamente se
receberá a graça eficaz para entrar no céu. No entanto, há uma certeza moral. Esse
assunto será tratado aqui.
Em
2 Timóteo 2,14, o apóstolo Paulo introduz um assunto bastante interessante que
nos ensina muito sobre a predestinação. Ele dá o conselho para evitar
discussões, que “só servem para perdição dos ouvintes”, e as más conversam que
“contribuem para a impiedade” (v. 16).
Ao
mencionar a heresia espalhada por Himeneu e Fileto (2Tm 2,17), entende-se que a
“perdição” causada por motivos de vãs discussões é a perdição eterna, já que
pode ser causada pela adoção de heresias. São Paulo fala do transtorno da fé de
alguns, como está no versículo 18. Nesse cenário nos lembra os que são fieis de
Deus, citando Número 16,5: “O Senhor conhece os que são seus”.
Então,
introduz a bela comparação da casa cheia de utensílios (σκεύη), uns de ouro e
de prata, outros de madeira e de barro, “aqueles para ocasiões finas, estes
para uso ordinário?”. (2 Tm 2,20) Ou seja, uns para honra (τιμὴν) e outros para
desonra (ἀτιμίαν).
“Quem,
portanto, se conversar puro e isento dessas doutrinas, será um utensílio nobre,
santificado, útil ao seu possuidor, preparado para todo uso benéfico” (2 Tm
2,21).
Usando
do livre-arbítrio envolvido pela graça, como aparece em toda a Escritura,
pode-se através da obediência tornar-se utensílio nobre. Por isso, a Palavra de
Deus afirma: “quem, portanto, se conversar puro e isento dessas doutrinas”.
Fazer-se um utensílio nobre ou um utensílio de uso ordinário pela obediência a
Deus, é uma verdade que aponta para a grande importância da vida de fé e boas
obras, em conexão com a santificação e a salvação.
É
importante ressaltar também o verso 25, visto que aprendemos que os adversários
precisam do “arrependimento e o conhecimento da verdade” para libertarem-se dos
“laços do demônio”. (v. 26) Ou o homem está agindo sob Deus ou debaixo das
influências do demônio. E aqui não se faz essas exortações por desconhecimento
de quem são os eleitos, mas porque é pressuposto que todos são livres e podem
obedecer à graça, sendo todos chamados à salvação. Não se trata de supor que
talvez entre os inimigos estejam os que estão predestinados, como se os demais
não fossem verdadeiramente chamados à salvação, mas do fato de que esse chamado
é igual a toda a humanidade pecadora.
Em
Romanos encontramos uma comparação semelhante, com enfoques específicos, onde a
criatura olha para Deus e não há razão para contestar Sua Vontade, como se um
vaso de barro reclamasse ao oleiro o motivo de fazer um vaso para uso nobre e
outro para uso vulgar (Rm 9, 20-21). E sendo Deus o criador de tudo, indo além
daquela relação entre oleiro e barro, já que o barro não é obra do oleiro, a
comparação é ainda mais forte.
As
imagens são diferentes, mas o sentido idêntico. Em Romanos o apóstolo usa vasos
de barro, iguais em sua forma, diferentes no uso. Essa passagem muito debatida,
o que demonstra sua dificuldade intrínseca, deve ser entendida por outras mais
claras, como a de 2 Timóteo comentada.
Mas,
não só essa. A própria continuidade da argumentação, Romanos 9, verso 22, é
capaz de lançar luz sobre o sentido do verso anterior. São Paulo responde à
questão da justiça de Deus. “Onde, então,
está a injustiça?”. E a resposta é que Deus, “para mostrar a sua ira e manifestar o seu poder”, suportou com
paciência os objetos da ira preparados para a perdição.
Lembrando
que são vasos iguais, de mesmo material, o barro, mas de uso diferente.
Trata-se da relação oleiro e vaso, aludindo a criador e criatura, uso e direito
de uso. Em 2 Timóteo a diferença de uso está atrelada à prática das obras e à vida
de fé. Isso insere diferença nos usos dos vasos.
Eles
são preparados para a perdição no sentido de se prepararem assim. Da mesma
forma, os que são vasos de honra são aqueles que se conservam puros e sem
heresias. Não se trata de Deus tê-los criado para a desonra, mas que, sendo
obras de Deus, se puseram no caminho da desonra, serão usados justamente como
vasos de ira.
O
que justifica essa leitura é o próprio verso 22, que afirma que Deus tem
suportado com paciência esses vasos. Na mesma casa, a casa de Deus, há vasos de
honra e de desonra, onde é responsabilidade dos vasos se prepararem para o bom
uso, servindo ao Senhor. Essa é a doutrina das duas passagens em consideração.
Em
nenhum momento a razão do castigo dos ímpios foi a vontade de Deus, nem a implicação
de que os vasos foram criados para a perdição, porque Deus fez o homem bom (cf.
Ecl 7,29), mas exalta-se a justiça de Deus na Sua paciência ao suportar esses
vasos maus. Deus conhece o coração de cada um deles, de modo que sabe o que
fará com cada um.
O
apóstolo poderia ter dito: Onde está a injustiça, se Deus quis criar uns para a
honra e outros para a desonra e ponto!? Essa seria a posição reformada. Mas
não.
De
fato, foi questionado: Onde está a injustiça, se Deus tem suportado
pacientemente esses vasos de desonra? A paciência de Deus mostra Sua justiça.
Essa é a resposta bíblica, e católica. Deus não criou os vasos ruins como vasos
ruins, mas esses vasos que se tornaram ruins são suportados por Deus. Se Deus
suporta o que não quer, por misericórdia, isso implica a redenção universal, o
livre-arbítrio, o chamado da graça suficiente.
A
pergunta: “Por que me fizeste assim?” (v. 20) é uma ilustração. Outra é a do v.
21, quando fala das diferenças de uso de vasos feitos da mesma massa. Como que
perguntando: ‘Por que me usaste
assim?’.
De
fato, está falando de como o Faraó foi tratado no verso 17, passando pela
explicação sobre a misericórdia e o endurecimento, no verso 18, e pela pergunta
enfática da queixa e da impossibilidade de resistir à Vontade de Deus no verso
19.
Em
nenhum momento é dito que um vaso foi feito bom e o outro mal, como consequência
do decreto divino, ou que Deus cria um para usá-lo para o bem e o outro para o
mal. A ilustração tem a ver com a liberdade de Deus em tratar Suas criaturas,
escolhendo umas e não outras, para um determinado bom propósito, e castigando a
outros, como é segundo a Sua justiça.
Essa
é a realidade, onde cada um faz o que quer, mas de tudo isso a vontade que
prevalece é a de Deus. E o sentido último não é de uma livre agência
determinada, onde as ações seguem como consequência do decreto, mas de reais
ações que são permitidas no decreto e consideradas para que sirvam justamente
aos propósitos divinos.
É
a liberdade que leva a isso. Deus pode agir conforme Lhe apraz, e as escolhas
que faz nos dão capacidade de entendê-las, e o modo como aplica a Sua justiça
também. Assim, sabemos que não há injustiça na escolha de Jacó, nem na punição do
Faraó. E os motivos mostrados acima são diversos daqueles contidos nas
explicações calvinistas.
Portanto,
a primeira ilustração aplica-se bem ao caso de Jacó, a outra na questão
referida cabe perfeitamente ao Faraó. Não há injustiça da parte de Deus
escolher uma determinada forma para o Seu vaso. Também não há injustiça se um
vaso Ele trata com honra e outro não. Todos são criaturas de Deus e Ele faz com
Suas criaturas segundo Sua Vontade. Resta ver o motivo por que trata
diferentemente (2 Tm 2,20). E esse motivo é preparado pela criatura (v. 21).
Melhor ainda, não é o beneplácito de Deus tratar diferentemente, mas as
diferentes criaturas explicam o motivo de diferentes tratamentos.
Diriam
os teólogos reformados que isso se trata da diferença entre a reprovação
negativa, onde Deus deixaria os vasos em sua pecaminosidade, e a reprovação
positiva, onde Deus traz o juízo e castiga os ímpios pela sua maldade. No entanto,
como explicam, tudo é apenas um ato simples da parte de Deus, onde Deus teria
preparado os vasos para serem como são, agirem contra Sua vontade expressa,
determinando-os a praticarem o mal, que o fariam por sua própria vontade, e no
final castiga-los pelo mal que praticaram.
Isso
tudo não está no texto bíblico, mas é um raciocínio de certas afirmações,
levadas quase ao máximo pela teologia reformada principal. Deus não pode ter
determinado que os vasos assim agissem, pois contradiz o fato de que a Bíblia
naturalmente apresenta a misericórdia de Deus em tudo isso, onde Ele suporta os
vasos da ira, ainda que os mesmos tenham rejeitado a conversão.
O
mesmo foi usado antes para realçar a justiça de Deus, no caso da escolha de
Jacó. Dois meninos nasceram e um foi escolhido. Deus preferiu a Jacó, mas não
faz injustiça a Esaú, já que não é obrigado por nada. Ele não teria nada que o
obrigasse a escolher Esaú para ser o patriarca de Israel.
Por
isso, sua rejeição a Esaú não é para a perdição, como já afirmado, pois Deus
não age contrariamente ao Seu caráter santo. E não se pode levar essa escolha
no sentido místico onde Esaú teria sido reprovado, o que não é a intenção do
texto bíblico. Ele não age punindo antes que um motivo exista. E tal motivo
deve nascer da criatura livremente, e não pela determinação anterior de um
decreto feito para que o motivo fosse criado. Para o mau, o motivo da punição
deve anteceder. Não há decreto de Deus para criar o mal em qualquer lugar que
seja, mas apenas confirmar o mal que já existia proveniente da criatura, e não
do decreto divino, e infligir o castigo, a ação de punição. Só esse mal pode
ser referido à vontade de Deus.
Tudo
isso está de acordo com o início de todo o assunto, nos versos 11 e 12. Deus é
livre nas Suas escolhas, e antes que houvesse obras da parte de Jacó e Esaú,
Ele escolheu o primeiro e rejeitou o segundo. E por isso, não há qualquer
injustiça.
De
fato, o assunto da eleição não para salvação e perdição, deve-se entender bem,
como já visto no texto sagrado do Antigo Testamento que está sendo citado, mas
para eleição de Israel como povo, embora não haja maldição de Deus para Esaú
como outra nação. Esaú respondia pelos próprios pecados. Parte-se dos
indivíduos para falar das duas nações. Somente a partir dessa realidade clara,
se pode subir para suas implicações místicas.
O
contexto de Romanos 9 é a salvação de Israel, irmão do apóstolo segundo carne
(v. 3) Mas, para explicar a dureza de Israel, São Paulo fala da promessa, da razão
da filiação, e não da descendência meramente natural (v. 8).
Ilustra
a liberdade da escolha de Deus com o fato de Israel ser servido pelo irmão mais
velho Esaú, como está em Gênesis 25,23. Também a escolha de Jacó, segundo
nascido, ao invés do primogênito Esaú, em Malaquias 1,3, antes que tivessem
nascido e tivessem feito o bem ou o mal. Tratando da posição de cada um no
plano da salvação e não no sentido de salvar um e condenar o outro. Eis o que ensina
a Palavra de Deus.
É
um exemplo que foi utilizado para apresentar o plano salvífico divino, e não um
modelo para mostrar como Deus salva. Não é a salvação de um e condenação de
outro como proveniente do beneplácito divino, mas os modos que Deus age para
salvar e punir.
Deus
é livre em mostrar Sua misericórdia. Dois exemplos são lembrados, a palavra
falada a Moisés em Êxodo 33,19, quando o profeta pede para ver a glória de
Deus. Então o Senhor profere as palavras: “Dou a minha graça a quem eu dou a
minha graça, e uso de misericórdia com quem eu uso de misericórdia”, segundo
tradução literal. Isso significa que Deus usa de misericórdia com quem Lhe
agrada. De fato, tudo o que Deus faz é santo e nada pode manchar Seus
desígnios.
E
vejamos ainda o caso do endurecimento do Faraó em Êxodo 9, 16, após o Senhor
ter revelado o derramamento dos flagelos, caso o faraó não libertasse o povo
conforme a vontade de Deus. O verso 16 mostra o motivo de Deus não eliminar de
uma vez o faraó: mostrar o Seu poder e glorificar o Seu Nome sobre a terra,
“se” o faraó obstinar-se (v. 17). Existe o condicional, que depende da atitude
da criatura. É certo que Deus sabia do endurecimento do Faraó, mas o
condicional não existiria se fosse pelo Seu decreto que o mesmo viesse a
endurecer o coração, de modo que a revelação clara de Deus dos Seus desígnios
tivesse caído sob névoas nessa passagem.
Esse
é o sentido do motivo do faraó ter sido levantado para cumprir esse desígnio de
Deus. E vem a questão: “Haverá injustiça em Deus?”. A resposta é não. De fato,
o Senhor disse em Êxodo 3,19: “Eu sei, no entanto, que o rei do Egito não vos
deixará ir, se não for obrigado por mão forte.”
Essa
é a razão por que Deus endureceu o coração do faraó, para o obrigar a deixar o
povo sair da escravidão. Deus sempre age para salvar, libertar, fazer o bem,
mostrar Sua justiça. Assim, o endurecimento do faraó tinha sido previsto por
Deus e foi o motivo para que Deus agisse posteriormente para o seu
endurecimento pessoal persistente.
Sabendo
que o Faraó endureceria seu coração, Deus agiu sobre ele fazendo endurecer
ainda mais, e o fixando nessa rebelião, que mesmo diante dos flagelos que
viriam não deixaria o povo sair, até que fosse mostrada toda a intervenção de
Deus. Trata-se de um castigo pelo pecado de desobediência do Faraó. O faraó
havia perdido sua chance de deixar o povo ir.
Michael
Horton percebe essa problemática para a doutrina reformada, e no seu sistema
onde somente Deus tem o livre-arbítrio e o homem a livre agência, que seria um
tipo de liberdade diferente para a criatura, ele afirma que as passagens que
falam que Deus irá endurecer o coração do Faraó vêm no começo, citando Êx 4,21
e 7,3.
No
entanto, a primeira profecia vem antes disso, a saber, em Êx 3,19. Deus sabe
que o Faraó endurecerá o coração, por si mesmo, particularmente, e então o ato
de Deus é obrigar o Faraó por mão forte, a libertar o povo. Ele então endurece
o coração do Faraó por cima do seu coração já endurecido. Ele faz com que o
Faraó continue na sua maldade. Deus não torna o coração do faraó mal e
endurecimento, mas o fixa na sua rebelião, usando essa atitude para a
libertação do povo e para o castigo desse mau rei.
Não
é totalmente correta a explicação de Horton, que afirma que o “Faraó estava
endurecendo seu próprio coração em resposta à Palavra de Deus”, e Deus estava
fazendo o que disse a Moisés que iria fazer.
Na
verdade, Deus antes mesmo de endurecer o coração do Faraó, revelou que o mesmo
não deixaria o povo sair (Ex 3,19), e por isso endureceria seu coração. O Faraó
já iria desobedecer e endurecer seu coração. Então, a posteriori Deus causa o endurecimento como punição, Ele não
inicia o endurecimento do coração do Faraó. Essa distinção é fundamental. Portanto,
o Faraó já possuía um coração petrificado. Deus opera em cada coisa de acordo
com sua própria natureza. É conforme a natureza de uma coisa que Deus age para fortalecê-la
segundo o que ela intencionou realizar.
Se
o coração do Faraó é ruim, então Deus operará nesse coração segundo ele merece.
Essa noção pode ser percebida igualmente tendo em conta a livre agência, como
explicaria o calvinista, já que Deus não causa o endurecimento, encontrando um
coração duro. Mas o reformado afirma que esse coração não poderia ser de outra
forma. De fato, ele afirma que pelo decreto divino aquele coração
consequentemente deveria ser endurecido por si mesmo, e depois ser endurecido
por Deus, o que destoa da apresentação da Escritura.
De
fato, a Bíblia simplesmente mostra a atitude do Faraó sendo prevista por Deus e
as ações de Deus para libertar o povo, punindo o Faraó. Disso se pode aprender,
para entender o decreto divino, que o Faraó possui o livre-arbítrio, e por isso
Deus usa dessa situação para o bem de todo o povo.
Entretanto,
a passagem é totalmente explicada pelo livre-arbítrio, já que Deus prevê uma
ação livre do Faraó, que foi instado muitas vezes a deixar o povo ir, por ordem
de Deus, e ainda assim recusou-se a obedecer, e age por cima dela para realizar
Seu plano de libertação. As nuances são semelhantes àquilo que o reformado
diria do ativo negativo e positivo de Deus na punição do pecador, supondo algo
que na realidade se apresenta como livre-arbítrio, mas que é considerado como
não sendo assim, pois seria uma liberdade determinada. As características podem
ser parecidas para explicar a passagem, mas o livre-arbítrio é mais eloquente.
Não somente isso, ele é correto.
A
liberdade de Deus usar de misericórdia e justiça sobre as pessoas é realçada em
Romanos 9,20-21. Por isso, Deus pôde usar da dureza de coração do Faraó para
mostrar Seu poder e anunciar o Seu Nome sobre a terra. Esse é o sentido do
texto, e não o de que alguém foi criado para a condenação. Perceba que tudo
está sendo concatenado pela própria Escritura.
Os
vasos de Rm 9,22 são preparados (κατηρτισμένα) para a perdição, enquanto que os
do versículo 23 são que Ele preparou (προητοίμασεν) para a glória, usando a
mesma palavra de Efésios 2,10, sobre as obras que Deus preparou para que
andássemos nelas. A fraseologia é diferente quando se fala da condenação e da
salvação. Para a salvação o Autor é Deus, para a condenação é o homem. De fato,
é certo que essa distinção é feita na doutrina reformada, mas não pode ser
totalmente compreendida, como foi mostrado acima, quando se nega o
livre-arbítrio.
São
Paulo afirma que os gentios não procuravam a justiça e a encontraram pela fé, e
os judeus procuravam a Lei que desse justificação e não a encontraram (Rm 9,
30). Porque não a procuraram pela fé e “sim pelas obras” (v. 31). Obviamente
não está falando de cada indivíduo gentio e judeu, mas em relação à
coletividade dos gentios e dos judeus. Aqueles encontravam a justiça que
procuravam, e o fizeram por meio da fé, esses não a encontraram porque foram
através das obras.
Para
melhor resumir toda essa questão no texto de Romanos 9, façamos algumas
indicações importantes para conhecimento do contexto dos três capítulos que
versam sobre a eleição de Israel.
Em
primeiro lugar temos que Israel possui dois sentidos no texto sagrado. Em
segundo lugar, a eleição aparece com duas nuanças correlatas, ambas
fundamentadas pela promessa e graça de Deus. Em último lugar, deve-se conhecer
a base para a eleição e o motivo do endurecimento que Deus realiza nos
corações.
Por
meio dessa análise, ver-se-á que a eleição é o intuito primeiro de Deus, e que
o endurecimento só vem após a ação má e a recusa da criatura. Essas coisas já
foram tratadas acima, mas com o propósito de fecharmos o argumento serão
reunidas aqui no contexto de Romanos 9, 10 e 11.
São
Paulo fala de Israel segundo a carne e segundo a promessa, afirmando que o
verdadeiro Israel da promessa está reservado pela graça, pois a recusa de
muitos não significa a rejeição do povo de Israel por parte de Deus (Rm 11,1).
Então, ele trata de indivíduos do povo eleito que recusaram a fé, mas mostra
que isso não invalida a eleição do povo inteiro.
Dessa
forma, o contexto trata do Israel natural e do Israel da promessa (Rm 9,8). A
promessa não se limita ao Israel natural, pois Jesus desfez na sua carne o muro
de separação entre judeus e gentios, e abriu para todas as nações a
possibilidade de ser povo de Deus, fazendo de dois povos um só, como está em
Efésios 2. Dessa forma, a descendência física não é contada para a eleição, mas
a promessa de Deus feita aos patriarcas.
Mais
uma vez, não se trata de separar os que foram infiéis do povo que permaneceu,
mas mostrar que a infidelidade de muitos não desfaz a promessa de Deus, visto
que não é a carne que define o verdadeiro Israel, mas a promessa, que fez de
Israel e das nações um povo único, de modo que todos são chamados, e todos podem
tornar-se membros da aliança.
Também
temos que a eleição é baseada na graça de Deus. Quando se diz que é pela graça,
e que as obras não são causa da eleição (Rm 9,12-13). O caso de Jacó e Esaú é
apresentado para falar da liberalidade de escolha de Deus, assim como o fato do
faraó egípcio ter sido endurecido tem a ver com a justiça de Deus.
Sabendo
a distinção entre o Israel segundo o sangue e o Israel segundo a eleição da
graça, temos a correta interpretação de todo o texto. Isso está em Rm 10, 6,
onde Israel é comparado aos eleitos. Há em Israel um número eleito segundo a
graça para provar que a eleição de todo o povo continua de pé (cf. Rm 11,1).
Chegamos
então ao endurecimento que Deus opera nos desobedientes. Ele o faz para salvar.
Isso está em Romanos 10, 7-8. Isso mesmo, o endurecimento dos corações, como
punição aqui, punição daqueles que quiseram livremente rejeitar o evangelho,
tem o fim de salvar, e não de condenar.
Não
se trata de decretar a reprovação de uns para que outros sejam salvos, mas que
apesar do endurecimento de muitos, que deveriam estar na eleição, esse mal será
usado para a salvação dos eleitos, daqueles que aceitam e aceitaram o chamado.
São
Paulo afirma que esses que caíram por causa da incredulidade ainda são chamados
à salvação. Por isso, pelo ciúme, os que estão endurecidos podem voltar-se a
Deus e serem salvos. Isso é maravilhoso e confirma tudo o que foi explicado
antes. Há em Israel os que estão endurecidos (Rm 11,7), mas esses não foram endurecidos
para ficarem assim, mas para a salvação dos gentios: “Pergunto ainda: Tropeçaram acaso para cair? De modo algum. Mas sua
queda, tornando a salvação acessível aos pagãos, incitou-os à emulação” (v.
11).
Então,
quando o tempo dos pagãos for completado, os demais serão convertidos em grande
número. São Paulo fala do trabalho de pregação para levar alguns desses à
salvação (vv. 13-14). Constatando isso, é correto afirmar que durante a
história, ainda que o povo está coletivamente no endurecimento a favor da
salvação das nações, muitos estão sendo salvos, pois pela pregação, “com o
intuito de, eventualmente, excitar à emulação os homens da minha raça e salva alguns
deles”, mostrando que é a graça suficiente a todos, e o poder do livre-arbítrio
para responder ao chamado.
Não
está aqui falando do remanescente eleito, mas dos outros que com certeza estão
no endurecimento de coração. Sendo assim, essas passagem refutam totalmente a
ideia de que se está procurando salvar os eleitos, como se os reprovados não pudessem,
pelo decreto divino, responder ao chamado da salvação. Nada disso. O apóstolo
está mostrando que sua pregação se dirige aos que estão caídos, os que
tropeçaram e caíram, e podem ser incitados à fé pela pregação do evangelho e
serem salvos, se aceitarem. Tem-se então a explicação do plano do remanescente,
do objeto do endurecimento de Israel, e do plano de salvação para aquela parte
que está endurecida de coração.
São
esses que serão enxertados na raiz santa, onde já estão os pagãos convertidos.
Essa parte de Israel, em maioria, foi cortada pela incredulidade, e está
endurecida, enquanto que os gentios estão firmes na fé e enxertados na oliveira
santa.
Nesse
contexto é revelado, mais uma vez, o livre-arbítrio dos que estão na graça, a
possibilidade da perda da salvação e a eleição de Deus pela graça.
O
versículo 22 fala da bondade e da severidade de Deus. Os que estão enxertados
são exortados a vigiar, para que não sejam cortados. Isso não é mera retórica,
mera exposição de condições, mas uma conexão com a realidade dos fatos. Há muitos
que deixaram a graça, e isso contradiz a doutrina dos decretos como está na
teologia reformada, mas é o modo que a doutrina bíblica apresenta a eleição e a
reprovação.
Da
mesma forma, os que estão na incredulidade possuem a esperança de serem, pela
fé, enxertados de novo, “se não persistirem na incredulidade”. Outra vez um
condicional. Estamos em contexto salvacional, onde a eleição pela graça é
permeada em todo texto.
Portanto,
aprendemos da Bíblia, que nos leva a toda boa obra e salvação (2 Tm 3, 15), que
Deus encerrou todos na desobediência para usar de misericórdia para com todos.
Os desobedientes foram deixados na desobediência não para serem castigados e
reprovados, mas para serem salvos, causarem a salvação, de todos. A eleição do
remanescente e de todo o Israel está baseada na graça de Deus, pois: “Quem lhe
deu primeiro, para que lhe seja retribuído?”.
Por
tudo isso, é importante conhecer essa distinção dos dois Israel, das duas
eleições, do sentido da graça, e do motivo do endurecimento, pois esse é sempre
segundo a misericórdia de Deus. A Deus seja dada toda a glória (Rm 11,36).
Gledson Meireles.
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