terça-feira, 28 de dezembro de 2021

John Owen: o objetivo da morte de Cristo

 

A morte da morte na morte de Cristo (livro de John Owen)

Estudo do Capítulo 1, Livro 1, sobre o objetivo da morte de Cristo

John Owen começa seu livro estudando o objetivo da morte de Cristo, aquilo que o Pai intencionou fazer nela, e o que foi de fato cumprido e realizado por ela.

Em Mateus 18, 11, conforme é citado, Jesus veio para salvar o que estava perdido. Já de início, podemos perguntar a Owen, e a todo protestante reformado, quem estava perdido? Uma parte da humanidade apenas? Havia uma parte salva e outra perdida? De fato, não. Todas as pessoas estavam mortas em pecado, toda a humanidade necessitava do salvador. Jesus veio para o que estava perdido, então veio para todos.

Portanto, o primeiro texto citado no livro, de John Owen, já pode ser entendido como ensinando a expiação ilimitada: Jesus Cristo morreu na cruz para salvar todo e qualquer indivíduo. Essa foi a intenção de Jesus Cristo ao vir ao mundo. Agora, repitamos a leitura de Mateus 18, 11 seguido de Lucas 19, 10:

Porque o Filho do homem veio salvar o que se tinha perdido.” (Mateus 18, 11)

Porque o Filho do homem veio buscar e salvar o que se havia perdido.” (Lucas 19, 10)

Em 1 Timóteo 1, 15 vemos que Jesus veio ao mundo salvar os pecadores: “Esta é uma palavra fiel, e digna de toda a aceitação, que Cristo Jesus veio ao mundo, para salvar os pecadores, dos quais eu sou o principal.

Perguntamos então: segundo a Bíblia, quem são os pecadores? Só um grupo de pessoas entre a humanidade? Há necessidade de identificá-los? Outra vez, não. Pois de fato, todos são pecadores. Então, Jesus veio para todos. Por isso, São Paulo podia incluir-se com certeza entre os que foram alvos da cruz de Cristo.

Mas, em Mateus 20, 28 é dito também que Jesus veio dar Sua vida em resgate por muitos. Nos textos anteriores usam-se expressões que denotam todos, e agora temos passagem que fala de muitos: “Bem como o Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir, e para dar a sua vida em resgate de muitos.

Aqui, o Calvinismo enxerga uma limitação. E lê os textos que fala de “muitos” de forma a torná-los o modelo principal para a leitura dos demais. Jesus não teria vindo dar sua vida por todos os pecadores, mas por muitos, um grupo seleto, os eleitos apenas. No entanto, a palavra muitos aqui contrasta a única Pessoa de Cristo com a humanidade.
E, somente em sentido mais estrito, fala-se dos eleitos.

Sabemos que a Bíblia não se contradiz. Não se está dizendo que não exista o grupo dos eleitos, mas o que a teologia reformada ensina é que somente os eleitos podem receber a graça da Cruz desde a intenção de Deus na eternidade. Isso significa que há o restante da humanidade que não teria sido alvo do sacrifício da cruz. Assim, o calvinista afirma que os pecadores que Deus salva pelo sacrifício de Jesus são apenas os eleitos.

Gálatas 1, 4: Jesus entregou-se a si mesmo por nossos pecados. A vontade e intenção de Deus seria separar os eleitos do mundo. Por isso, ele amou a Igreja, como está em Efésios 5, 25-27. Então, não teria amado o mundo, mas somente a Igreja, que conteria somente os eleitos.

Dessa forma, a teologia reformada lê os textos como absolutamente realizando o que pretendem, ou seja, que somente os eleitos tiveram os pecados perdoados na cruz, e somente eles serão livrados do mundo mau, segundo a vontade do Pai.

Em Tito 2, 14: Jesus entregou-se por nós para nos redimir de toda iniquidade e purificar um povo peculiar e zeloso de boas obras. Assim, a obra da cruz teria sido feita pelo Povo específico, a Igreja, os eleitos. Essa seria a intenção e o desígnio de Cristo e do Pai. Por Cristo temos acesso à graça (Rm 5, 2).

Essa leitura portanto é feita pelo motivo da morte de Cristo apresentar o efeito e produto da obra como está em Romanos 5, 10, que diz que quando éramos inimigos fomos reconciliados com Deus pela morte do Filho, e também em 2 Coríntios 5, 18 e 19, onde Deus estava reconciliando o mundo em Cristo, não imputando as faltas dos pecadores.

Porque se nós, sendo inimigos, fomos reconciliados com Deus pela morte de seu Filho, muito mais, tendo sido já reconciliados, seremos salvos pela sua vida.

Mas, veja que o texto indica a expiação ilimitada. Todos são inimigos de Deus. Na cruz, fomos reconciliados com Deus. Agora, já reconciliados, seremos salvos pela vida de Cristo. Isso mostra que uma vez feitos amigos de Deus, nos aguarda a salvação final. Essa salvação é mostrada na Bíblia como fruto da graça da perseverança, que com certeza irá chegar ao fim nos eleitos, mas que muitos, que vivem na amizade de Deus, alcançada na cruz, podem voltar atrás, e não alcançar a perseverança final.

Ao invés de pensar que os que renegam a fé são os que nunca foram salvos, deve-se reconhecer que são aqueles que negam a graça que receberam, negando a salvação, deixando de prosseguir e ser salvo pela vida de Cristo. Ainda, que no sentido alcançado na cruz já somos amigos de Deus. Falta ainda ser reconciliado individualmente, quando há a conversão.

Isto é, Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo, não lhes imputando os seus pecados; e pôs em nós a palavra da reconciliação.

Outra vez, Deus tem em Sua vontade a reconciliação do “mundo”, e não somente dos eleitos. Ao reconciliar o mundo, Deus não “imputa” os pecados do mundo. Assim, por causa da cruz, Deus põe “em nós a palavra da reconciliação”.

Da mesma forma que Deus reconcilia todos em Cristo, ainda que ainda sejam inimigos, e não imputa os pecados, ainda que estejam em pecados, agora, os que já foram reconciliados, pessoalmente, e tornados amigos na paz de Deus, podem esperar a salvação. É isso o que as passagens estão ensinando. O contexto é ilimitado para a intenção de Deus e Cristo na obra da cruz.

Isso mostra mais uma vez que a cruz tem em seu objetivo a salvação do mundo. Somente então, é que a palavra é aplicada naquele que a receber. Não há lugar para pensar que a cruz é restrita aos eleitos. Em cada texto isso é previsto. Veja: Deus reconciliou o mundo consigo. Não é dito que reconciliou apenas os eleitos. E a interpretação geral corrobora isso. Ainda, Cristo aboliu em sua carne a inimizade que havia contra Deus.

Na sua carne desfez a inimizade, isto é, a lei dos mandamentos, que consistia em ordenanças, para criar em si mesmo dos dois um novo homem, fazendo a paz, E pela cruz reconciliar ambos com Deus em um corpo, matando com ela as inimizades.” (cf. Ef 2,15-16).

O reformado lê esse texto entendendo que somente o eleito tem a inimizade com Deus desfeita na cruz, recebendo a paz com Deus. E, ainda, que se o texto estivesse endereçado a todos, então todos os indivíduos deveriam tornar-se amigos de Deus, e receber a salvação. Portanto, preferem limitar isso aos eleitos, por entender que o efeito da cruz tem que ser aplicado. Essa exigência está na teologia reformada, e não no texto, e contexto bíblico. Leia novamente.

No entanto, o contexto bíblico é geral nessa passagem também, visto que fala dos judeus e dos pagãos, que pela cruz foram unidos, pois Cristo desfez a inimizade na Sua carne, criando um só povo, um só homem, criando na cruz um só corpo, ou seja, as nações pagãs e os judeus agora formam um único povo em Cristo, e todos podem, a partir da cruz, aproximar-se de Deus.

A vontade de Deus expressa pela cruz de Cristo foi de fato alcançada. O caminho foi aberto. Agora, na vida de cada indivíduo, há a responsabilidade pessoal de ir a Cristo pela fé, tanto para os judeus quanto para os pagãos, pois estamos reconciliados, com Deus. De forma geral. E, como diz em alhures, devemos entrar no Povo e ser salvo pela vida de Cristo.

Veja que mesmo ainda sendo inimigos, pela cruz já éramos amigos. No entanto, somente na justificação é que a amizade é estabelecida particularmente. Isso não significa que somente o eleito teve a intenção de Deus de um dia receber a graça da cruz. Pelo contrário, a Bíblia está dizendo que todos já estão reconciliados com Deus pela cruz, seja proveniente do povo judeu ou das nações. E mostra que quando se torna amigo de Deus vem depois a salvação pela vida de Cristo.

Também, sobre os efeitos da cruz, são citados os textos de Hb 9, 12; Gl 3, 13; 1 Pedro 2,24; Rm 3, 23-25; Cl 1, 14; Hb 9, 14, 1 Jo 1, 7, Hb 1, 3, 13, 12, Ef 5, 25-27, Fl 1, 29, Gl 4, 4-5, Ef 1, 14, Hb 9, 15.

Jesus efetuou a eterna redenção. Isso não quer dizer que somente o eleito foi pensado ali, pois somente ele teria a redenção aplicada. Significa, porém, que Cristo efetuou a eterna redenção para todos, e que todos tem o direito de aproximar-se de Deus para recebê-la. É ao mundo inteiro, é endereçada aos dois povos feitos um só.

Ele nos resgatou da maldição da Lei. Isso foi feito na cruz, mas apenas quem está em Cristo, quem for a Cristo, terá a maldição cancelada em si. Na cruz, todos já temos a maldição desfeita. Deve-se entender isso, o efeito alcançado na cruz, e o efeito da cruz aplicado no indivíduo. O efeito é universal, na cruz, e é particular, para o indivíduo, e somente chegará ao fim se o fiel perseverar. Não é dito que somente o eleito foi resgatado da maldição da lei, mas que o resgate da maldição da Lei na cruz é para todos.

Jesus levou nossos pecados sobre o madeiro. É referente aos pecados de todos, dos que já viveram e dos que ainda nascerão até o fim dos tempos. Portanto, na cruz já está pago pecados futuros e pecados de quem ainda não existe. Por isso, em qualquer tempo que alguém confessar o Nome de Cristo, esse receberá o perdão e a reconciliação. Não se pode dizer que esse texto esteja dizendo que somente os pecados dos eleitos foram postos sobre Jesus. Por isso, o texto diz que Cristo levou os pecados para “que mortos para os pecados, pudéssemos viver para a justiça”.

Temos na cruz a remissão pelo sangue de Cristo, o perdão dos pecados. Uma vez que nos convertemos, temos esse perdão aplicado em nós. Que o perdão seja dado na cruz, a todos, não significa que todos irão recebê-lo, pois está condicionado à fé que o indivíduo deve exercer livremente.

E assim, para o reformado, todos os efeitos da morte de Cristo são entendidos eficazmente servindo para quem está envolvido nela, ou seja, todos pelos quais Cristo morreu serão salvos, serão reconciliados, justificando, adotados, santificados, terão a graça eficaz e entrarão na glória.

No entanto, os textos estão apenas mostrando o que a morte de Cristo preparou, e os efeitos dela na alma do que crê e mantem-se unido a Cristo. Não é dito que os efeitos da morte tiveram um público específico para usufruir deles, mas que o mundo inteiro pode experimentar esses efeitos salutares, sendo, contudo, especialmente experimentado pelos eleitos. Por isso, na cruz os eleitos são reconciliados, mas somente na conversão é que essa reconciliação se aplica a eles. Assim, todos são reconciliados, ficando à espera da conversão para receber esse benefício da cruz.

Por tudo isso, sendo que a morte de Cristo causa a reconciliação com Deus, a justificação e a santificação, a adoção, a posse comprada, o que significa que a morte de Cristo garante a todos os que estão previstos nela, a eterna redenção, a graça na terra e a glória no céu, o calvinista afirma que esses efeitos irão eficazmente ser aplicados.

Então, o problema que o Calvinismo propõe para ser resolvido é que, se a morte de Cristo confere realmente o que foi dito acima, que é a salvação a todos, se Cristo morreu por todos, poder-se-ia dizer que ou o Pai e Cristo falharam no objetivo proposto, não realizando o que intencionaram, ou todos os descendentes de Adão serão salvos. Ou Deus falhou ou haverá o universalismo.

E como a primeira opção é blasfema e a segunda contradiz a Escritura, o Calvinismo prefere afirmar que a morte de Cristo foi intencionada somente aos eleitos.

Podemos afirmar, ao cristão reformado, que Jesus morreu por todos, oferecendo ao Pai sua morte na cruz para que todos se salvem. No entanto, como explica Santo Afonso, Jesus não distribuiu igualmente Sua graça a todos, mas aos eleitos de maneira especial.

Assim, Ele ora pelos eleitos em João 17, 19. Por isso, Ele é o Salvador de todos, mas em especial dos eleitos, como diz São Paulo em 1 Timóteo 4, 10. Por isso, a Escritura afirma que Cristo morreu por todos (2 Cor 5, 14-15). Cristo cancelou o decreto condenação a toda a posteridade de Adão (Cl 2, 14-15). Ele deu redenção por todos (1 Timóteo 2, 5-6). A propiciação pelos nossos pecados, e não somente os nossos, mas os do mundo inteiro (1 João 2, 2).

Jesus não só preparou preço suficiente pela redenção de todos, mas também o entregou ao Pai. Ele oferece o remédio a todos os doentes que querem ser curados. Todos recebem a graça, ainda que uma graça menor, uma graça remota, como diz Santo Afonso. Então, se aceitam a graça, podem receber mais, maior graça, a graça eficaz, para serem salvos.

Santo Afonso explica, sobre a certeza da salvação, que: “A promessa feita aos eleitos é uma fundação certa para eles, mas não para nós individualmente, desde que não sabemos que nós somos dos eleitos. A fundação certa, então, que cada um de nós deve esperar pela salvação, não é a promessa particular feita aos eleitos, mas a promessa geral de assistência feita a todos os fieis para salvá-los se eles correspondem à graça”.

Cristo morreu por todos, e os eleitos finalmente receberão a graça eficaz, enquanto os não eleitos ficam sem a salvação por não terem aceitado a graça, ou por terem decaído da graça, e por sua negação, não obtiveram a graça eficaz. Ao invés de pensar que Cristo morreu por muitos porque só foi pelos eleitos, esses muitos são os eleitos porque eles são aqueles que perseveraram na graça. A verdade então é que Cristo morre por todos, dá a graça a todos, e só os eleitos crescem na graça até a salvação. Neste capítulo é possível entender o motivo do calvinista não aceitar a expiação ilimitada, e como devemos responder a isso, mostrando que a expiação ilimitada é o ensino bíblico.

Gledson Meireles.

sábado, 25 de dezembro de 2021

Feliz Natal

 Feliz e Santo Natal a todos.

Que nosso Senhor e Salvador, que veio ao mundo, para nos salvar, que nasceu em Belém da Judeia, comemorado hoje, nos dê a graça de louvá-lo e glorificá-lo.

Leiam o artigo sobre a perseverança dos santos. O texto ficou enorme, mas divirtam-se, o assunto vale a pena.

Gledson Meireles.

O Cristão Reformado: estudo sobre a perseverança dos santos

 A Perseverança dos Santos

Essa é a parte da doutrina cristã católica das mais difíceis e mais interessantes de estudar. É muito comentada no Protestantismo, especialmente nos círculos reformados, que, para fins de maior conhecimento, são aqueles que surgiram da influência do reformador protestante João Calvino.

Para entender a perseverança dos santos é necessário ter uma boa compreensão da fé cristã, como foi apresentada enquanto se fazia a análise de cada ponto nos capítulos precedentes que tratam do que os reformados chamam de doutrinas da graça. Aqui serão considerados todos os argumentos apresentados nas obras básicas que estão servindo para o presente estudo. E o melhor é que estão sendo avaliados pela autoridade da Bíblia.

A doutrina da perseverança dos santos é bíblica. Santo Agostinho escreveu uma obra tratando do assunto. Santo Agostinho era bispo, viveu no século quarto e início do quinto, e foi um dos maiores teólogos da Igreja.

A perseverança dos santos tornou-se assunto muito comum a partir da Reforma Protestante, quando se discute o tema da eleição e predestinação.

Neste artigo, serão estudadas as passagens que tratam da perseverança dos santos, com o intuito de levar o conhecimento dessa doutrina a tantos que a conhecem por vias não tão puras, como é o da linha reformada. De fato, os reformados conhecem muito da questão, mas sua posição carece de correções. E também o artigo destina-se àqueles que não são familiarizados com esse lindo ensino, para que cresçam na fé em Jesus nosso Senhor.

Não é fácil convencer alguém nas coisas de Deus. Além da graça e dos auxílios do Espírito Santo, é necessária uma abertura da pessoa. Obstáculos para crer são inúmeros. Um deles pode ser a certeza. A absoluta certeza de que a explicação reformada da doutrina da perseverança dos santos está correta, o leitor não abrirá a mente para posições discordantes. Se você crê que a doutrina reformada está correta neste ponto, você não vai estar aberto às argumentações que serão apresentadas aqui, e não compreenderá o todo. É importante esta abertura da mente para o estudo.

Nem mesmo poderá surgir a simples curiosidade para ler um artigo contendo outra interpretação sobre o assunto. Menos ainda a vontade de estudar o tema com outras lentes. Ainda mais, se o escrito for longo. A cada argumento vem à mente alguma resposta pronta já aprendida, que muitas vezes faz parar o raciocínio, como se o mesmo já estivesse encerrado, e a solução já encontrada. Assim, um reformado não gastará tempo em leituras cuidadosas de fontes que discordam da sua posição. Isso serve geralmente para quaisquer assuntos e vertentes. O cristão arminiano dificilmente terá o prazer em debruçar-se numa obra reformada, passando o tempo em julgar cada argumento contrastando as opiniões. O cristão calvinista talvez tenha maior dificuldade para isso, mas no mínimo não terá deleite em dispor-se a leituras arminianas. Talvez para um estudo com fins apologéticos, etc. Nada além disso. Se for uma fonte católica, a coisa fica ainda pior. É prontamente deixada de lado. Pode até ser que haja uma leitura, com receios, claro, mas já é certo, ou muito provável, que inicia-se a leitura com a convicção de que ali não há qualquer contribuição em termos de correção doutrinal, mas que sirva apenas para ser refutada, tendo como base as doutrinas cristãs fundamentais, e de orientação reformada.

A doutrina da perseverança é ensinada pelos reformados de modo mais sistematizado, contando com definições de sínodos, com confissões, catecismos e grande número de obras especializadas. Mas há também os protestantes que não creem em quaisquer documentos eclesiásticos, negando a tradição da Igreja, de forma a serem adeptos do Nuda Scriptura, que significa a Escritura sozinha, sem qualquer intérprete a não ser o crente, e não do Sola Scriptura, onde a Escritura é a única fonte infalível de fé e prática, mas que entra em relação com a tradição da Igreja, aceita definições conciliares, credos etc.

Para muitos dos protestantes daquela persuasão, onde há somente a Bíblia e o crente, a perseverança dos santos chega a ser ensinada como estando absolutamente sob a responsabilidade divina, de forma que o salvo não poderia de qualquer forma perder a salvação, através de quaisquer pecados, mas apenas ser disciplinado, até mesmo com a morte como castigo de Deus, mas nunca com a perdição. Isso significa que o suposto “salvo” possivelmente poderia pecar tão gravemente, e morrer sem arrependimento, e ainda assim seria “salvo”. Ninguém crê que os defensores dessa doutrina estejam explicitamente pregando o pecado ou a licença para o pecado, mas que por buscarem exaltar a glória de Deus, através dessa doutrina, chegam ao ponto absurdo como foi mostrado acima.

Não é isso que o cristão reformado histórico acredita. Logo cedo, os reformadores aceitaram o valor das obas obras na vida do crente. Então, não poderiam ensinar algo dessa natureza. Ainda menos as confissões que resumem o ensino reformado predominante, autorizado, legítimo. Reconhecem a necessidade da santificação. Por isso, ainda que algum protestante encontre suas justificativas na Bíblia para pensar contra as decisões doutrinais das outras denominações, ou talvez da própria denominação, é bastante claro que esse está mais longe da fé e comportamento bíblicos esperados dos cristãos católicos diante da autoridade da Igreja do que o cristão reformado fiel à tradição da Reforma.


 

Introdução á teologia bíblica da perseverança dos salvos

Compreendendo e crendo a verdade da doutrina da perseverança dos santos, estudemos um pouco os textos usados para formular essa doutrina. E enquanto lemos a Escritura alguns pontos da doutrina reformada serão corrigidos pelos próprios textos bíblicos.

Comecemos pela leitura de Jeremias 3, 1-5. Nessa passagem o profeta anuncia a volta de Israel, de sua parte remanescente dispersa. O verso 3 afirma do “amor eterno” de Deus como causa da graça em favor de Israel. Essa passagem revela que Deus tem amor eterno pelo Seu povo, não podendo esse conceito ser aplicado ainda à perseverança dos santos em particular, já que o capítulo anterior versa sobre o povo de Israel: “Eu te reconstruirei, e será restaurada, ó virgem de Israel” (v. 4), “a multidão que há de voltar” (v. 8), com todos os indivíduos que estavam sendo reunidos novamente.

Se o texto serve para mostrar que desde a eternidade Deus já exerceu amor pelo homem, não há o que objetar. Não pode, porém, afirmar que todos ali fossem eternamente salvos, mas que foram salvos no sentido de serem libertados daquela circunstância de dispersão do povo eleito. Tratava-se de uma salvação temporal. Se o texto fala do amor que elege, o que é verdade, esse está voltado para a eleição do povo, em sentido corporativo. E se está direcionado ao povo, está no sentido de bênçãos ainda temporais, e não trata da salvação eterna de cada indivíduo.

Por isso, esse texto apenas ressalta o amor de Deus desde a eternidade, em relação ao Seu povo.  A ideia de que somente Deus atua na perseverança dos salvos, preservando-os para nunca caírem para sempre, tem raízes em leituras de texto já do Antigo Testamento, como esse, e o de Jeremias 31,3, mas tal não indica o que essa afirmação pretende estabelecer.

Quanto a usar o texto para entender o aspecto da eleição e do dom da perseverança final do cristão, não há o que objetar, já que em se tratando do salvo, que só o Senhor conhece, ele é amado por Deus e conta com a Sua graça, sendo a verdade que todos os cristãos devem crer. Assim, temos o entendimento contextual e encontramos também o sentido espiritual do verso em relação ao tema.

O mesmo significado está em Jeremias 32,4, quando o povo é prometido voltar e ter firmado o pacto eterno com o Senhor. No contexto trata-se do povo inteiro. Alguém pensará que nenhum membro do povo desobedecerá ao Senhor a ponto de vir a se perder?

Se o texto for usado com a ideia de que se refere somente aos eleitos, com especial atenção ao Novo Testamento, então servirá para entendermos a verdade da perseverança dos santos, mas não indicará mais que isso. Essa verdade pode ser lida em Jeremias 33,8, que fala da purificação de Judá e Israel: “Eu os purificarei de todos os pecados contra mim”.

Essas passagens não dizem que o povo persevera inteiramente, mas apenas revela a promessa de Deus. A passagem não mostra cada indivíduo que será alvo dessa bênção, mas revela a existência da mesma. A mesma verdade está em Ezequiel 11, 14-21. Essas coisas foram cumpridas na Nova Aliança, em Jesus, como ensina o livro de Hebreus. A essa altura, considerando o contexto dessas passagens, não há como formular uma doutrina de que seria impossível ao salvo perder a salvação, pelo falto de que esse teria recebido o coração novo do qual não poderia mais dispor! Mais adiante, vejamos se essas ideias são percebidas nas Escrituras, ou o que podemos pensar delas.

 

A perseverança dos santos nos evangelhos

O evangelho de Mateus, no capítulo 7, versículos 15-28, trata dos falsos profetas. O versos 21-23 relatam que muitos dirão a Jesus, no dia do juízo, de terem agido e feito milagres em Nome dEle, e ouvirão de Jesus a reprovação, de que nunca os conheceu.

Quem lê essa passagem verá que ela trata dos falsos profetas, que não têm testemunho cristão, pois são conhecidos pelos frutos (vv. 16-20), e que somente o “que ouve estas minhas palavras e as põe em prática” é um homem prudente, que construiu sobre a rocha”, e será salvo (v. 24). Aquele que ouve as palavras de Jesus e não as põe em prática, é como o imprudente que constrói sobre a areia, e será condenado (v. 27).

Ao invés de olhar para os versículos 21-23 como dizendo que aqueles foram condenados porque “nunca” foram conhecidos por Jesus, passando-se por verdadeiros crentes, mas faltando-lhes a eleição, ao invés de pensar nessa reprovação por pura ausência da graça eficaz para a perseverança, deve-se lê-la como o contexto todo exige e ensina. Jesus está exigindo frutos que vêm da obediência à Sua palavra. Os que não apresentaram aqueles frutos são ditos nunca terem sido conhecidos. Essa passagem toda está direcionada mais à responsabilidade do homem, que deve entrar pela porta estreita (v. 13), e andar pelo caminho da vida, pois “raros são os que o encontram” (v.14).

E aqueles foram falsos profetas e maus cristãos, são assim porque não foram predestinados? Esses que não entram pela porta estreita e não andam no caminho apertado, não o fazem porque não são chamados com a graça eficaz? Jesus não diz que poucos encontram o caminho porque não podem. O Senhor não diz isso, e seria muito arriscado afirmar tal coisa que o texto não afirma. Esse é um momento oportuno de prudente espera de elementos claros para formular a doutrina da perseverança. Não se pode afirmar que aqueles não entraram pela porta estreita porque não foram predestinados a isso.

Pelo contrário, ao chamar para entrar pela porta e caminho difíceis de entrar e percorrer, ao exortar a produzir frutos e ouvir e praticar a Palavra ouvida, Jesus mostra que a graça está sendo ofertada e o homem deve recebê-la, crer e obedecer, sem supor um decreto que exclui alguém desse convite. Essa passagem afirma sim, algo sobre a perseverança, mas daquela que nasce a partir da obediência à Palavra de Deus.

A essa altura alguém pensará que se está negando os decretos divinos, que a obediência vem antes da graça, e coisas assim. Nada disso. Pelo contrário, o que se está afirmando é que o evangelho supõe a liberdade, e por isso a responsabilidade, e que exige a obediência, supondo igualmente o poder de exercê-la. São coisas que os reformados não gostam. Mas, são coisas do evangelho. Você é livre e por isso é responsável, você deve guardar a lei porque tem capacidade para isso, com o auxílio da graça, é claro, eis as coisas que o reformado tem dificuldade para aceitar. E são ensinos evangélicos, ensinos racionais, nascidos e revelados pela Palavra de Deus, patentes na experiência, corroborados por cada pessoa que fizer o mínimo de reflexão sobre essa realidade.

Toda a responsabilidade que esse trecho do evangelho ensina evidencia fortemente o livre-arbítrio do homem para obedecer o chamado de Jesus. Outra passagem que fala do cuidado de Deus, para com o pecador, é o da ovelha perdida. A vontade de Deus é que não se perca nenhum dos pequeninos (Mateus 18, 10-14). A alegria por causa do pecador arrependido nessas passagens de Mateus e de Lucas 15, 3-10, mostra que Deus alegra-se com o homem que no uso do seu livre-arbítrio se converte. A graça o auxilia, a graça o prepara, a graça o antecede, a graça o torna capaz, a graça o chama.

Essa mesma verdade encontra-se na parábola do filho pródigo, que sai da casa paterna, usando seu livre-arbítrio, gasta sua herança em vida pecaminosa, depois se arrepende e volta para o pai, que o espera com amor e misericórdia. Em todas essas passagens Deus é mostrado como Aquele que deseja o arrependimento do pecador, e o homem é mostrado como possuindo livre-arbítrio para responder o chamado de Deus. De fato, o filho pródigo continuou na condição de filho, pois é impossível deixar a filiação, mas perdeu sua relação com o pai. Pelo pecado ele foi considerado novamente morto. Dessa forma, está provado que a relação com Deus é afetada pelo voluntário distanciamento do Senhor pelo pecado mortal.

Mas, arrependido, o filho volta para o pai e passa a viver novamente. Era filho, mas morreu espiritualmente, sendo então ressuscitado espiritualmente. Foi livre para deixar a relação com o pai e livre para voltar, enquanto o pai o esperava. Esse cenário não deixa espaço para aquelas comparações que os reformados tão bem conseguem fazer, quando mostram Deus indo em busca do pecador e o atraindo a Si, pois nesse trecho sagrado do evangelho é o filho que toma a decisão, ao passo que o pai está sempre à espera do filho amado. É a outra face da moeda, tão verdadeira e real quanto a outra. Deus atrai e o homem é livre para ir ou não ir. É um exemplo da soberania divina e do livre-arbítrio humano provado pelas Escrituras. Tudo enfatiza a graça e o livre-arbítrio juntos. E nessa passagem o pai não vai atrás do filho. É o filho que volta, o pai espera.

Sabemos que esse amor do Pai que espera o filho voltar é a Sua graça que acompanha aquele filho ingrato e pecador. Mas, ao mesmo tempo, é a liberdade do filho ao ver sua miserável situação de pecado, ao lembrar-se do amor do Pai e da vida de felicidade na casa paterna, que o faz voltar. É a graça e o livre-arbítrio em misteriosa atuação. Se há um lugar de tensão e de mistério sobre essa relação de liberdade e graça, esse é um dos momentos que voltam a atenção para o segredo de Deus.

O ensino de que é possível cair em pecado, de morrer espiritualmente e de voltar a viver pela graça do arrependimento e do perdão, encontra-se na doutrina católica, mas não na doutrina reformada. A própria razão de Deus alegrar-se pelo pecador que se converte, como os anjos do céu também o fazem alegrando-se, é uma verdade que salta aos olhos sobre a livre resposta do homem à graça. O homem é livre para responder, livre também para negar a graça, podendo perdê-la pelo pecado. Há passagens que revelam a eleição, mas disso não se pode afirmar a eleição certa de todos, como se a mesma fosse conhecida por todos.

Esse ponto é de extrema importância. Na mente de Deus tudo é claro é sem dificuldades, mas para o homem há muitos mistérios. Deus conhece os eleitos, conhece a sua jornada inteira, mas o homem não tem nem mesmo a absoluta certeza da sua eleição. Ainda, não é somente o fato de que o desconhecimento de certas coisas relativas à perseverança que deve se reconhecido pelo cristão, mas também o fato de que há a graça da conversão mesmo naqueles que não alcançarão a graça da perseverança. Essa verdade será realçada durante o estudo.

Em Lucas 22,32 Jesus ora pela fé de Pedro. No verso 21 temos que Satanás pediu para acabar com a fé dos apóstolos, e Jesus ora por Pedro, pois ele era o chefe, cabeça ou representante federal dos apóstolos. Pela fé de Pedro os outros foram confirmados. Jesus fez isso porque é possível a perda da fé. Ele não pediria por algo impossível de ocorrer. Ao invés de provar que não era possível a perda da fé, a realidade da oração pela fé prova que essa pode ser atacada e perdida. A oração do Senhor é poderosa, e como pedimos a Ele que aumente a nossa fé, é a nossa liberdade que está aberta à graça pedindo que Ele não nos deixe afastar-nos dEle. De novo, isso é livre-arbítrio e graça.

Pensar em termos de perseverança a partir de Lucas 22,32, seria esperar que nenhum apóstolo, nem mesmo Pedro pudesse cair.  Mas, a oração de Jesus mostra o contrário. Pensar que Deus ouve a oração de Jesus e por isso eles não caíram, torna necessário ter em mente tudo o que foi explicado acima.

A oração de Jesus em João 17, especialmente o verso 20, que refere-se a todos os que crerão em Jesus, também deve ser entendida no contexto da liberdade do homem, pois há quem creia e depois venha a negar a fé. Alguém poderá objetar que o filho pródigo foi embora mas voltou, e necessariamente todos os eleitos poderão cair mas infalivelmente voltarão à graça. Essa leitura pretende ir além do que a passagem permite. É uma inferência gratuita. E as passagens que falam da perda da graça servirão para iluminar essa verdade.

Jesus em todo o contexto fala dos que guardam a palavra de Deus (v. 6). João 3,36 fala daquele que crê como já possuindo a vida eterna, e do que não crê com já estando condenado. Isso não significa que não haja mais mudança entre o que crê e o que não crê, como se não houvesse jeito de descrer ou de chegar a crer. O que o texto afirma é incisivo da presente situação daquele que tem fé e do que não tem. É uma exortação a todos. Aliás, é uma admoestação exigente dirigida a todos.

Um texto bastante usado também para a perseverança dos santos é João 10. No entanto, deve-se prestar atenção nas palavras de Jesus, pois Ele afirma que Suas ovelhas O ouvem (v. 3), seguem-No e não seguem o estranho (vv. 4.5).

É óbvio que pensar em alguém seguindo a Jesus não comporta a ideia de Jesus mesmo afastar essa pessoa dEle. Ela está unida a Cristo e não pode ter senão as benesses da graça.

Contudo, pode-se pensar que se a ovelha deixar de ouvir e seguir a Jesus, e sair do seu rebanho, essa não usufruirá da graça. É chamada ao aprisco, mas voltará a ele se atender o chamado, como acontece na parábola do filho pródigo. É necessário entender a questão usando as duas parábolas a fim de ficar mais esclarecido.

Logo mais adiante, no evangelho de João, há um texto fácil para o cristão católico, mas de dificuldade extrema para o cristão reformado. Trata-se de João 15, 1-5. Jesus é a videira, e Deus Pai o agricultor. O ramo que está na videira, que é Jesus, não dá fruto, e esse é cortado. Os outros ramos, que já deram frutos, são “podados”, tratados para que possam dar mais frutos. Esse é um texto mais claro, que pode iluminar alguns dos anteriores. Mas, alguns o veem como mais obscuro.

Existe a interpretação de que o ramo não estava na videira, mas parecia estar. O problema é que o ramo foi cortado, porque era ramo da videira. E o motivo único foi não ter dado fruto. Não se poda uma árvore aparentemente, nem se tira galhos que parecem estar nela, mas a poda se refere ao real tratamento da planta, onde ramos seus são tirados.

A graça de Deus é a base para que se produzam frutos. Isso é simbolizado pelo permanecer na videira e ser tratado pelo Pai. Ainda assim, alguns ramos não dão frutos, e são tirados. Isso está conforme a leitura presente em todas as outras passagens anteriores, que mostram a graça de Deus e o livre-arbítrio do homem respondendo à graça, mostrando a possibilidade de estar com Cristo e deixar a Cristo. Recebe os benefícios da oração de Cristo aquele que permanece com Cristo. Aquele que ouve a palavra de Jesus e crê em Deus Pai, esse encontra “a vida eterna e não incorre em condenação, mas passou da morte para a vida” (João 5,24). Esse é o novo nascimento em Jesus Cristo.

Jesus fala mais adiante aos ouvintes que “não tendes a sua palavra permanente em vós, pois não credes naquele que ele enviou” (João 5, 38). O versículo 24 fala da fé em Jesus e em Deus Pai, enquanto que o versículo 38 apresenta a fé no Pai e no Filho. Então, no versículo 40 temos: “E vós não quereis vir a mim para que tenhais a vida...”. Eles não creem em Jesus, e isso implica em não terem a palavra do Pai, o que redunda em não quererem ir a Jesus. Isso é o que fica claro em João 6, 64-65, pois o que não crê não pode ir a Cristo.

A Palavra de Deus é que ensina, por meio dela Deus ensina, e quem for instruído vai a Cristo (João 6,45). Os judeus conheciam a Escritura, mas Jesus afirma que a palavra não estava neles, pois não criam nEle (João 5, 37-40). Jesus “sabia quis eram os que não criam e quem o havia de trair”. Ele não causava a incredulidade, mas sabia dela. Deus não havia determinado que eles não iriam crer, mas sabia que eles não iriam crer. Por isso dizia: “Ninguém pode vir a mim, se por meu Pai não lho for concedido”.

A possiblidade de retirar-se de Jesus está na pergunta que Ele faz aos doze (João 6,66). A verdade é que somente um apóstolo se retirou, não naquele momento, mas na última ceia, ainda que fosse escolhido, mas não é menos verdade que essa possibilidade inclui-se na pergunta como nas passagens já estudada, constituindo um ensino bíblico.

Santo Agostinho fala do ensino secreto de Deus no coração que faz atrair o eleito. Não são todos que recebem esse ensino, e é um mistério o motivo pelo qual não o recebem. Isso certamente está assentado sobre a seguinte verdade: se todos os homens são igualmente pecadores, e somente a graça capacita o homem a ir a Deus, como pode que alguns vão a Cristo e outros não?

As palavras de Santo Agostinho aqui podem ser explicadas como que há um mistério do motivo que Deus todo-poderoso, o Soberano Senhor, não converte aquela alma, e porque a liberdade dela, vendo a grandiosidade e o amor e bondade de Deus, não se converte, de modo que essa tensão não seja totalmente compreendida por nós.

Para Calvino a questão é justamente outra. Ele compreende que o mistério é o motivo de Deus não ter decretado que os demais se salvem, por que Ele quis que eles fossem condenados. Essa questão não é a mesma da anterior, que foi posta por Santo Agostinho. Assim, a doutrina católica admite que há mistério, como a reformada também, sendo diverso o ponto em que o mistério se encontra.

A resposta que nos vem ao ler o texto seria que, uma vez que os que são ensinados pelo Pai vão a Cristo, então nem todos seriam ensinados pelo Pai. O motivo disso estaria envolto em mistério. Desse modo, o que está sendo considerado por Santo Agostinho é a graça eficaz dada aos eleitos. Não se trata da graça suficiente dada a todos, como fica claro no ensino geral. As duas espécies de graça são ensinos do evangelho.

Vemos assim, como visto, que há algo diverso entre o ensino agostiniano e o calvinista. Enquanto para Santo Agostinho era mistério que uns fossem atraídos e outros não, ou seja, por que uns vão a Cristo e outros não, como sendo a mesma realidade, ou melhor, o mistério está no motivo de Deus não atrair e no motivo do livre-arbítrio da criatura não ceder, enquanto que para Calvino esse mistério é deslocado para outro lugar. Os calvinistas creem que o mistério é o motivo de Deus decretar a salvação de uns enquanto deixa outros caminharem para a perdição. Esse parece ser um momento para refletir.

O ensino de João 10,26-28 é lido pelos reformados como impossibilidade de condenação. Essa característica constitui, porém, um condicional. As ovelhas não podem ser tiradas da mão de Cristo e de Deus Pai, a não ser que a própria ovelha o deixe. E essa possibilidade encontra-se no ensino bíblico, de forma geral, como pode ser visto na parábola da videira, onde a produção de frutos não é apenas parte da santificação, sem ligação com a salvação, mas uma necessidade absoluta da vida do cristão, que se assim não for assim, ele morre espiritualmente sendo desligado de Jesus.

Santo Agostinho fala do início da fé, do dom da perseverança até o fim, da vida que tem perigo de cair, e que o dom da perseverança é impossível de ser conhecido enquanto há vida. Como saber se alguém teve o dom se ele não perseverou?

 

O ensino das epístolas

Em Romanos 5,6-10 ensina-se que já justificados seremos salvos da ira, pois já reconciliados, seremos salvos pela vida de Cristo. O capítulo 6 traz a questão do pecado. E no verso 21 afirma-se que o fruto da santidade tem o resultado da vida eterna.

A mesma doutrina encontra-se no capítulo 8,1, pois quem está em Cristo não incorre em condenação. Esse verso e aqueles do final do capítulo servem para a teologia reformada concluir seu ensino de que é impossível perder a salvação. Para isso, incluem o pecado, a carne, entendendo que o salvo não pode mais voltar ao estado de vida em pecado.

O interessante, porém, é que das coisas que podem afastar do amor de Deus, não é elencado o pecado. Vejamos: a tribulação, a angústia, a perseguição, a fome, a nudez, o perigo, a espada (v. 35), a morte, a vida, os anjos, os principados, o presente, o futuro, as potestades, as alturas, os abismos, ou outra criatura (v. 37).

Muitos contrastes encontram-se nessas categorias para realçar a verdade de que nada pode separar-nos do amor de Deus, a não ser o pecado. Em outras palavras, a Escritura não diz que o pecado não possa afastar de Deus, mas o contrário, que o pecado é sim algo que afasta de Deus. Essa conclusão não é da doutrina reformada, mas é da doutrina bíblica.

De fato, no mesmo capítulo, essa verdade é ensinada. O verso 4 afirma que não vivemos segundo a carne, mas segundo o espírito. O verso 5, tratando os que ainda não estão regenerados, afirma que os que vivem na carne gostam do que é carnal, e o verso 6 afirma que “aspiração da carne é a morte”, e “não podem agradar a Deus”.

Há quem pense apenas na morte física, e que mesmo sem agradar a Deus o predestinado será salvo (cf. Romanos 11,32). No entanto, não é à morte física que essa passagem se refere, já que mais adiante a espada e a morte são coisas que não podem separar o fiel do amor de Deus, ao passo que nesse verso a morte é uma penalidade. A palavra morte em uma passagem tem conceito diferente da outra, sendo uma a morte natural e a outra a morte espiritual. Essa é a leitura do que está nos versos 5, 12, 13, e outros. A morte é contraposta à vida eterna. Não se trata da morte temporal, mas da eterna, assim como não se refere à vida física, mas à eterna. É então que nos versos 12 e 13 a Escritura ensina a condição para ser salvo: “De fato, se viverdes segundo a carne, haveis de morrer; mas, se pelo Espírito mortificardes as obras da carne, vivereis.”  Essa morte e essa vida não é temporal.

Para entender melhor, basta seguir o ensino dos versos seguintes, 14 a 17. A condução através do Espírito Santo, que conduz os filhos, que são herdeiros de Deus e coerdeiros de Cristo, “contando que soframos com ele, para que também com ele sejamos glorificados”, é um condicional. O texto ensina a possibilidade dos salvos cairem pelas obras da carne, e apresenta um condicional para chegar à glória.

Isso quer dizer que os que vivem na carne estão caminhando para a condenação, e o apóstolo dirige-se aos cristãos salvos. Dessa forma, textos como Efésios 1, 3-14 falam do Espírito Santo em nós como penhor da salvação, conquanto o cristão não viva segundo a carne.

Igual verdade está no ensino de Efésios 4, 17-5,5, que trata da conduta cristã. O verso 30, muito lembrado nessa questão da perseverança dos santos, e está no meio da argumentação e exortação de São Paulo, afirma: “Não contristeis o Espírito Santo de Deus, com o qual estais selados para o dia da Redenção”. O cristão deve viver a vida nova, revestir-se do homem novo, e não entristecer o Espírito. Essas palavras não significam que esse selo não possa ser quebrado por nada, inclusive pelo pecado. Pelo contrário, ao fim dessa seção que trata do comportamento digno do cristão, afirma o motivo das repreensões: “Porque sabei-o bem: nenhum dissoluto, ou impuro, ou avarento – verdadeiros idólatras! – terá herança no Reino de Cristo e de Deus”. (Efésio 5,5)

Em Ef 4,17 foi citada a impureza, o verso 22 insta sobre o despojamento do homem velho, o v. 24 manda revestir-se do homem novo, o v. 25 ensina a renunciar à mentira, o v. 26 a controlar a cólera para não pecar, o v. 28 exorta a deixar o roubo e trabalhar, o v. 29 a deixar palavras más, e o 30 não entristecer o Espírito, porque quem faz tudo isso não entrará no Reino. Não há como afirmar que o pecado não pode engendrar condenação, pois tudo o que é pecado aí está atrelado ao fato de que se assim continuar impedirá de entrar no Reino de Deus.

Em Efésios 6,15 está escrito: “Vigiai, pois, com cuidado sobre a vossa conduta”. A ideia é contrária àquela da teologia reformada, que supõe que nada disso muda o estado de graça do cristão, não sendo possível perder o Espírito Santo, por exemplo. Isso é importante para não cair no erro já denunciado dos que pensam na possibilidade do salvo morrer em pecado e ainda ser salvo. Pelo contrário, após tantas admoestações, aos santos, afirma que quem pratica tais coisas estará condenado.

Não teria sentido tantas palavras se isso não fosse possível. Não se trata de retórica vazia, apenas para instigar, fortalecer, proporcionar motivos de renovação espiritual, se tudo o que fosse dito não fosse realmente possível.

Em Filipenses há a mesma doutrina. Os versículos 10 e 11 falam do conservar-se puros par ao dia de Cristo, “cheios de frutos de justiça que provêm de Jesus Cristo”, que são as obras feitas na fé.

Quatro versículos antes, no verso 6, escreveu o apóstolo: “Estou persuadido de que aquele que iniciou em vós esta obra excelente lhe dará o acabamento até o dia de Jesus Cristo”. Fala isso por causa do testemunho que os cristãos filipenses davam, desde o início. Será que tais palavras significam que os crentes não podem perder a graça da salvação e vida eterna? O verso fala “desta obra excelente” que Deus vai dar acabamento. Que obra é essa? Leia o versículo anterior, o v. 5, e verá: “recordando-me da cooperação que haveis dado na difusão do Evangelho, desde o primeiro dia até agora.”

E o v. 6: “Estou persuadido de que aquele que iniciou em vós esta obra excelente...”. Portanto, a obra é a difusão do evangelho, e não a salvação individual que não poderia ser perdida, já que os versículos seguintes instam em continuar nas boas obras, a proceder dignamente (v. 27). Não se trata de dizer que todos devem viver em contínua busca pelas boas obras e obediência e ao mesmo tempo afirmar que a salvação não pode ser perdida. Isso seria uma contradição na própria passagem. São Paulo está ensinando que os filipenses são modelos de conduta cristã, exemplos na evangelização, e que Deus tem poder de levar esse ministério de pregação do evangelho até o fim.

O apóstolo continua a tratar da importância das obras na salvação, chegando ao capítulo 2, verso 16: “a ostentar a palavra da vida. Dessa forma, no dia de Cristo, sentirei alegria em não ter ocorrido em vão, em não ter trabalhado em vão.” O apóstolo tinha certeza que Deus levaria a obra de pregação do evangelho até o fim, mas pedia graças para que os cristãos continuassem na obediência, para que seu trabalho não fosse em vão. Essa duas noções não podem ser confundidas.

O Senhor tem poder para conservar o crente salvo até o dia de Cristo, pois Ele é fiel. (cf. 1 Ts 5,23-24). Nenhum cristão nega isso. Lembre-se, porém, que o homem pode cair na infidelidade, enquanto a fidelidade de Deus permanece (cf. 2 Tm 2,13). Quanto ao depósito que São Paulo menciona em 2 Timóteo 1,12, trata-se da doutrina do Evangelho. Dessa forma, ele manda guardar o depósito, no verso 13, que é a obra de Deus, tratada acima.

Em 2 Timóteo 4, 18 o apóstolo fala da sua salvação. Essa revelação é importante, mas nem todos têm a certeza absoluta de que isso acontecerá. Temos sim, uma certeza moral, de que estamos em Cristo, confiamos na Sua misericórdia, e isso nos basta. O ensino bíblico encontrado em 1 Pedro 1, 3-5 é importante, já que toda a epístola também exorta à obediência. O apóstolo fala da misericórdia de Deus, que nos fez renascer por meio de Jesus Cristo, para uma viva esperança. Não se trata de certeza, mas de esperança. É aquela que fornece a certeza moral do salvo, não de que tudo o que acontecer não mudará o estado do salvo diante de Deus. Essa certeza é baseada na esperança da vida eterna, e espera humildemente em Deus, tendo em mente a possibilidade baseada na fraqueza humana. A “herança incorruptível, incontaminável e imarcescível” está nos céus. Esperamos essa herança. Assim, há uma certeza, mas não absoluta.

Então, o verso 5, afirma que somos guardados pelo poder do Espírito, por causa da fé. Esse ponto é importante. Ele corrobora tudo o que foi dito, pois a graça de Deus para a perseverança final tem em consideração a fé, que é um entrelaçamento com o dom de Deus. O texto fala da salvação última, que ainda será manifestada. O salvo é guardado através da fé (dia, que pode ser traduzido por, através, por causa de, mediante a).

De alguma forma, a fé está sendo considerada para a guarda do salvo, por isso é importante a obediência, para que não se negue a fé pelas más obras. O cristão reformado não terá problemas em ler isso, já que a fé é um dom, e Deus está guardando o salvo mediante a fé que é o instrumento para que receba a salvação. Não há o que objetar quanto a isso.

Deve-se apenas considerar que essa fé pode sofrer variação de forma a afetar a relação com Deus, ou diretamente ou pela vida de desobediência. É por isso que a fé é provada, no verso 7. Se não fosse possível perdê-la, como dom unicamente preservado por Deus, não haveria motivo de testar esse dom. Por isso, no versículo 17 está escrito: “Se invocais como Pai aquele que, sem distinção de pessoas, julga cada um segundo as suas obras, vivei com temos durante o tempo da vossa peregrinação”. Esse temor não existe verdadeiramente junto com a crença de que é impossível deixar de perseverar definitivamente. Portanto, a doutrina reformada possui a certeza e ensina o temor, sendo que a certeza desfaz esse temor, e assim, sem refletir nessa contradição, afirma duas coisas juntas, mantendo o palavreado e negando o sentido o mesmo.

A passagem trata do temor do salvo diante do juízo de Deus, que avaliará as obras. Não existe a ideia da impossibilidade de viver novamente no pecado. Quando São João afirma que “o que é nascido de Deus não peca, porque o germe divino reside nele; e não pode pecar, porque nasceu de Deus”, não significa que tudo o que fizer não o fará cair na vida de pecado.

De fato, no início da carta o apóstolo escreve sobre quem professa seguir a Jesus: “aquele que afirma permanecer nele deve também viver como ele viveu”. (1 João 1,6) Todos os salvos tem pecado, mas Deus perdoa quando o crente reconhece seu pecado. O que 1 João 3,9 quer dizer é que não pode pecar gravemente, a ponto de perder a graça, aquele que nasceu de Deus. Não é uma incapacidade, mas uma improbabilidade.

Enquanto o salvo mantem a semente da graça, mas pode cair pelo abuso do livre-arbítrio. É justamente isso que a teologia reformada não reconhece. Essa ideia seria colocar o livre-arbítrio como mais poderoso que a graça, ou deixar de olhar para a soberania de Deus e voltar-se para o homem. Mas, não é isso que a Bíblia afirma. A graça e o dom de Deus estão certos, mas o homem é constantemente exortado a permanecer na graça, pois pode dela se afastar.

Em Romanos 11,20-22 afirma que pela falta de fé pode o salvo ser cortado da oliveira, se não permanecer fiel à bondade de Deus. 1 Coríntios 9,27 fala da possibilidade de ser “excluído” após ter pregado o evangelho aos outros, como em 1 Cor 10,12 exorta a quem pensa estar de pé, tome cuidado para não cair.

O contexto fala do pecado de idolatria, de impureza e de tentar e murmurar contra Deus. (1 Cor 10, 6-10) São exemplos para os cristãos (v. 11), que devem ser vigilantes para não cair nessas coisas.

A passagem é clara que se refere a cair nos pecados descritos. E, logo após, afirma que Deus não deixa que sejamos tentados acima das nossas forças. Deus é fiel e dará meios de suportar e sair da tentação (vv. 12-13). Novamente há o entrelaçamento da graça e do livre-arbítrio. O homem pode cair, mas se isso acontecer, a culpa será inteiramente sua, pois Deus dá a graça, os meios e a força para livrá-lo.

O contexto é claro, e não indica que a queda nesses pecados seja impossível, como todos devem reconhecer, mas também não ensina que o homem sempre será reerguido. Não impossibilita cair na vida de pecado. A promessa fiel de Deus permanece, assim como a possibilidade do homem de cair e não voltar. A tentação não será invencível, mas o homem pode deixá-la vencer. O nascido de novo não pode pecar enquanto estiver na graça. Pode, porém, deixar essa graça.

Isso explica as constantes admoestações que o mesmo apóstolo fornece contra o pecado. Deus pode guardar o salvo de “toda queda” (Judas 1,24), mas não impossibilitá-lo de cair, se ele consentir. É certo, porém, que o dom da perseverança final é alcançado por todos aqueles que seguem as instruções de Deus, como está na mesma carta, no verso 20: “...edificai-vos mutuamente sobre o fundamento da vossa santíssima fé”, e “Conservai-vos no amor de Deus, aguardando a misericórdia de nosso Senhor Jesus Cristo, para a vida eterna.”

Aquele que conserva a fé e o amor em Cristo estará guardado pelo poder de Deus para a vida eterna. Por meio dos textos comentados acima, foi feita a refutação da doutrina Reformada quanto a determinados pontos da perseverança dos santos.

 

Outras passagens difíceis para o cristão reformado

Se os textos estudados anteriormente já mostram que há possibilidade de cair da graça, de voltar ao pecado e perder a salvação, esses outros textos continuarão a afirmar a mesma doutrina.

Como os argumentos reformados foram refutados nos textos que eles pensaram ser a base para sua doutrina, os demais servirão de comprovação de que a mesma doutrina é corroborada.

É necessário que alguns princípios sejam assumidos para entender a questão da perseverança dos santos. A Escritura usa constantemente de alertas para os cristãos permanecerem na fé. Também apresenta os condicionais importantes quando trata da salvação. “Se fizer isso, então...”.

A doutrina reformada explica que essas admoestações são usadas por Deus para que permaneçamos na fé, mostrando os perigos de abandonar a fé e de nos manter na salvação. E conclui que isso não quer dizer que a salvação pode ser perdida. Em outras palavras, Deus nos manteria na salvação ameaçando tirá-la, apesar de isso não ser possível, e que essa impossibilidade deve ser crida pelo cristão. Essa proposição encerra contradição, como já explicada acima. Uma coisa acreditada como impossível de ocorrer não geraria temor.

A passagem de Gálatas 5, 1-12 é enfática em mostrar a verdade de que é possível perder a salvação. Isso já está provado nas passagens estudadas, mas é útil analisar essa passagem da epístola aso gálatas também.

Ela inicia com o ensino da liberdade cristã. Os cristãos não devem submeter-se novamente ao jugo da escravidão (v. 1). Então, essa volta constitui uma possibilidade.

Assim, o verso 2 afirma: “Eis que eu, Paulo, vos declaro: se vos circuncidardes, de nada vos servirá Cristo”. Ou seja, se o cristão submeter-se à circuncisão e à Lei, Cristo será inútil para ele. Poderia alguém ser salvo fora de Cristo? Se o único salvador é Cristo, então ele será condenado. A passagem é clara. Mas continuemos.

O verso 4: “Já estais separados de Cristo vós que procurais a justificação pela Lei. Decaíste da graça.” Além de usar diretamente a expressão decair da graça, afirma que quem procura a justificação pela Lei já está separado de Cristo.

Lembremos que a fé em Cristo já é a posse da vida eterna, enquanto a descrença é a condenação. Por isso, afirma essa instantaneidade do resultado da posição dos judaizantes. O verso 6 afirma que é útil somente a fé que opera pela caridade. Desse modo, o verso 7 é muito importante, porque afirma: “Corríeis bem.” Isso significa que os cristãos estavam firmes na fé.

E continua: “Quem, pois, vos cortou os passos para não obedecerdes à verdade?”. Essa passagem mostra que outra doutrina estava sendo introduzida. Trata-se de uma heresia. Isso está conforme Gálatas 1, 6, que diz que os cristãos gálatas estavam passando a outro evangelho. Perde-se o sentido da passagem quando se afirma que ela trata de doutrina sem implicações salvíficas. Portanto, está refutada a interpretação reformada.

 

A certeza da salvação

A doutrina reformada ensina de forma categórica e com ênfase maior a certeza da salvação do crente. Ainda assim, afirma que o crente pode, às vezes, enfrentar dúvidas e tristeza quanto à sua salvação. Como pode isso ocorrer, se a fé na salvação é certa, e a doutrina reformada afirma a impossibilidade do crente ser condenado?

De fato, a única base para que um crente reformado tem para justificar sua crise de fé quanto à salvação é a incerteza quanto à sua eleição. De fato, segundo a doutrina reformada um não-eleito pode passar temporariamente como um verdadeiro crente, antes de apostatar. Isso mostra o principal motivo para que a dúvida pudesse surgir.

A doutrina católica é superior nessa questão. De fato, ensina a esperança da salvação, que é uma certeza moral de que Deus nos salvará, e nos dará o dom da perseverança final. No entanto, não é absolutamente possível saber que o fiel estará nesse estado de fidelidade em todos os momentos e por toda a vida, o que pode dar lugar a incerteza e crises quanto à salvação em algum momento.

Dessa forma, o remédio para a alma que o cristão católico tem para vencer o perigo da perda da salvação é não colocar o medo de cair acima da firme esperança em Deus que pode nos salvar, pois é Ele o Salvador, e pode nos manter firmes até aquele dia.

Portanto, quando o cristão reformado tem qualquer incerteza nesse quesito, isso se dá porque ele pode fraquejar na certeza quanto a estar no número dos eleitos, enquanto que o cristão católico pode enfrentar o mesmo problema, porém, o motivo se dá quando olha para sua própria fraqueza.

Dessa forma, o problema é comum a ambos, e a solução é a mesma para ambos. O que fica patente é a superioridade da explicação católica, que não apenas faz sentido, mas está conforme os cânones da doutrina bíblica.

O reformado deve persuadir-se de fazer parte dos eleitos, que seria em número limitado quanto ao propósito de Deus, e deve procurar em si sinais da eleição, que seria um meio de afastar sua crise, e exercer a fé no salvador, que é certamente o sinal mais importante. Entretanto, o católico deve entregar-se à misericórdia divina para que essa não permita que ele caia da graça, pois a fé na expiação de Cristo por ele é incontestável, crer e confiar em Jesus, pois tem certeza de que Jesus Cristo morreu por ele, e desconfia apenas de si mesmo, de sua própria debilidade, confiando antes no poder soberano de Deus.

Gledson Meireles.

sábado, 18 de dezembro de 2021

Desceu à mansão dos mortos: um estudo sobre a descida de Jesus ao mundo dos mortos considerando alguns argumentos de dois autores

A respeito do vídeo “Jesus pregou para os mortos?”, do pastor e arqueólogo adventista Rodrigo Silva.

Ele apresenta de forma concisa, e bastante clara, as interpretações que existem a respeito da passagem da epístola de São Pedro 3,18ss, depois apresenta sua interpretação.

Refere-se ao que é “aparentemente reforçado” em 1 Pedro 4, 6, sobre a pregação de Jesus às almas dos mortos.

A interpretação adventista é de que Cristo pregou através do Seu espírito aos rebeldes pecadores no tempo de Noé. Estaria tratando de um evento passado, do Antigo Testamento, e não do tempo em que Cristo esteve na terra.

Já escrevi extensa resposta sobre esse texto sagrado, e aqui vou considerar alguns argumentos do pastor Rodrigo.

Ele diz, por exemplo, a partir de Tiago 2, 26, que não há como pregar sem o corpo: “Se o corpo sem espírito é morto (não tem o que fazer) como que Cristo, sem o corpo, poderia pregar em espírito. Não faz sentido!”. A resposta adventista seria: somente em corpo, vivo.

Mas, tal raciocínio já está preso no paradigma adventista de que não é possível o espírito sobreviver sem o corpo. No entanto, a Bíblia diz o contrário, que não é possível o corpo sobreviver sem o espírito. Deve-se portanto entender os que ocorre com o espírito após a morte.

Outra questão é que o evangelho foi também pregado “a mortos”, e no dia do juízo Deus julgará “os vivos e os mortos”. O pastor argumenta no que juízo final não haverá nenhum morto, e, portanto, a passagem se refere a mortos espirituais. Os ímpios ressuscitados estariam vivos, mas mortos em pecado, e por isso o juízo aos mortos.

Esses dois argumentos não passam no escrutínio bíblico. Embora interessantes, e possam servir para outros contextos de estudo, não refuta que Cristo foi de fato pregar aos mortos.

A primeira prova de que essa interpretação acima não tem base bíblica é que a Bíblia ensina que Jesus padeceu na carne e foi vivificado no espírito. Isso se deu na paixão de Cristo na cruz, onde Ele morreu, mas sua alma foi vivificada pelo poder de Deus. Então Ele foi aos espíritos em prisão. Isso é o que ensina 1 Pedro 3, 18-19.

A outra prova de que a interpretação adventista está equivocada é que em 1 Pedro 4, 6 os que são mortos recebem o julgamento para viver, para serem salvos. Isso contradiz toda a argumentação do pr. Rodrigo.

E no juízo final todos estarão vivos, mas Cristo é juiz dos vivos e dos mortos porque a maioria da humanidade passará pela morte, exceto os que estiverem vivos no dia da vinda de Jesus. Assim, os mortos serão julgados quando ressuscitarem, e os vivos junto com eles naquele tempo. Ainda mais, Cristo passou pela morte para ser o juiz também dos mortos. Isso é o que ensina a Bíblia.

O estudo completo da passagem está aqui.

O artigo “Uma análise da expressão “desceu ao hades””, do pastor presbiteriano Heber Carlos de Campos estuda as visões católica, anglicana, luterana, anabatista, arminiana e calvinista quando à descida de Jesus ao hades.

O autor inicia afirmando que a expressão “desceu ao hades” com referência a Cristo – é uma expressão não encontrada nas Escrituras.

No entanto, deve-se já de antemão acervar, sabe-se que a alma de Cristo ficou no Hades, conforme Atos 2, 27, que diz que a carne não deixará a minha alma na região dos mortos e não permitirá que Ele conheça a corrupção. Não é necessária a existência da “expressão”, exceto para fins da filologia. Portanto, é inócua uma argumentação que parta desse princípio. E o artigo tomou tal ponto como parte do seu fundamento argumentativo. Em nota o autor explica que hades significa morte, ou seja, o mesmo que dizer que o termo deve ser traduzido por morte em Atos 2. Mas, o contexto dirime essa questão a ilumina todo o assunto.

As expressões “ad inferna” e “ad inferos” referem-se a essa verdade bíblica e teológica. Se não fazia parte “do texto” original do credo, é uma explicação da doutrina bíblica, bastando para isso que se leia Atos 2, 27.

A expressão “desceu aos infernos” é apena uma substituição de “foi sepultado”, e que as duas expressões usadas juntas não dá origem a “outra doutrina”, pelo exposto acima. Cristo morreu, seu corpo foi para o sepulcro e sua alma desceu ao hades, como está em Atos 2, 27.

O catecismo explica que a expressão desceu aos infernos tem a intenção de explicar que Cristo morreu verdadeiramente. O estudo da origem da inserção da frase não deve servir de empecilho para crermos que Jesus desceu à mansão dos mortos e esteve com as almas dos justos do Antigo Testamento. A frase pode ser do quarto século, mas sua doutrina é do primeiro.

A ideia de que Cristo desceu às regiões espirituais dos mortos é bíblica (Atos 2, 27; Ef 4, 8-9, 1 Pedro 3, 18-19; 1 Pedro 4, 6). Não se trata de um texto isolado, mas de um conjunto de passagens escriturísticas.

O que Witsius e J. N. D. Kelly observaram apenas confirma o entendimento antigo da doutrina. Até aqui, não há o que objetar contra a mesma em termos bíblicos e históricos. Os textos estão na esteira da explicação da doutrina.

No Ocidente, após santo Agostinho, tornou-se comum explicar 1 Pedro 3, 19 nessa parte do credo, segundo Kelly, citado pelo autor do artigo.

Então o autor acredita que a doutrina da “descida ao Hades” teve o intuito de reviver a doutrina pagã do Hades, o que não faz sentido pelo observado acima. A afirmação é equivocada.

No paganismo, segundo o autor, o Hades é o inferno, enquanto que para os cristãos que começaram a ver 1 Pedro 3, 19 como explicação da frase “desceu ao Hades”, o Hades é também paraíso, ou seja, há o Paraíso e o Hades na composição do Hades, o que seria inconsistente.

Para responder a isso, o autor deve notar que a doutrina bíblica, que os cristãos seguem, não é idêntica à doutrina pagã, e que o termo Hades original, ainda que tenha essa coerência de inferno, apenas, não tem a ver com a cosmovisão cristã que se utiliza do mesmo termo, mas é diversa. Tendo isso em mente, deve-se entender o Hades no conceito bíblico, e não naquele do mundo grego.

Agora, a questão do Hades ser uma forma de explicar os sofrimentos da paixão e cruz, essa é outra história.

A explicação do autor de que os que estão no limbus patrum não são salvos pela graça mas não são réprobos, não parece ser exata. Na salvação tudo é pela graça, mesmo que antes do Novo Testamento. Assim, os salvos antes de Cristo foram salvos também por Cristo. É a explicação correta de que Jesus foi somente às almas dos justos.

A tradição anglicana com sua ideia de conquista pode ter sido passada para o imaginário católico, talvez, como afirma o autor das “modificações” trazidas para âmbito católico, mas não traz mudança de doutrina, deve ser observado.

A tradição radical contem docetismo, como afirma o autor, e pode ser descartada como parte da ortodoxia. Ela vai além do que a Bíblia afirma, com muita imaginação.

A explicação do Hades como inferno deste mundo também no âmbito da reforma radical, e não tem a ver com a doutrina católica. Outra boa observação deve ser feita aqui. Também há heresia de que os sofrimentos são “exemplos”, algo que não é conforme a doutrina católica.

A visão de Serveto é ainda menos bíblica.

A tradição luterana é essencialmente idêntica à católica.

A tradição arminiana é uma leitura da patrística, parece que sem uma definição, pelo que apresentou o autor.

A tradição reformada é uma leitura nova da questão, parecendo, segundo afirmações do autor, que não se crê entre os reformados que Cristo tenha espacialmente ido ao Hades.

Essa é a análise histórica da questão. Assim, a doutrina católica da descida à mansão dos mortos está totalmente de pé, fundamentada na Bíblia, e debatida entre os protestantes. Temos a visão católica, a visão da reforma, entre elas a radical, a arminiana, a luterana e a reformada. O autor está defendendo a reformada. Enquanto ele apresenta suas razões, façamos a análise de seus argumentos, respondendo-os com a autoridade das Escrituras, a Bíblia.

Então, agora na análise bíblica, o autor, que nega a descida de Jesus ao local do Hades, tenta refutar o que acredita ser um abuso do texto 1 Pedro 3, 18-20, que chama de “o mais usado e o mais abusado”.

Ele inicia tendo em consideração a teologia arminiana. Nessa seção o autor afirma que 1 Pedro 3, 19 tem interpretação que não favorece ligação com 1 Pedro 4, 6. Isso é estranho, pois ambas as afirmações bíblicas estão no mesmo contexto, apensas a poucos versículos de aproximação um do outro. Portanto, trata-se do mesmo assunto, do mesmo contexto, com ligação inegável.

O pensamento de que os antediluvianos se converteram antes da morte é uma “fantasiosa suposição” diz o autor. No entanto, não se pode negar isso por nenhum testemunho positivo. Pense nisso.

Sobre a pregação no hades, com citação de Clemente de Alexandria, e de autor arminiano, Ziethe, essa não tem base bíblica. A Bíblia diz, com o exemplo de Cristo, que o evangelho “foi” pregado, e não que está sendo pregado ou que será pregado aos espíritos em prisão. Ensinar essa nova ideia é ir contra a revelação bíblica.

Então, o autor passa a analisar os textos bíblicos, em consideração a argumentos arminianos.

O estudo é dividido entre histórica, teologia e bíblia.

O texto de Mateus 5, 26 é interpretação, segundo o autor, pelo comentarista F. W. Farrar, como proponente da evangelização no Hades. Então, o autor diz que se o evangelho liberta gratuitamente, quando se tem que pagar até o último centavo, isso encerra contradição. De fato. Então, a interpretação de Mateus 5, 26 não diz respeito à descida ao inferno, como de fato não diz mesmo, pois essa passagem sempre foi entendida como referente ao purgatório.

Exemplo aqui de um reformado analisando argumento de um erudito arminiano. O reformado tem razão nesse ponto, e mostra incoerência cometida um intérprete arminiano na exegese de um texto bíblico. (ver nota 63 sobre obra de hermenêutica)

Outro texto que “os pressupostos arminianos” levam a ser interpretado como ensinando o evangelho no Hades é o de Mateus 12, 31-32. O autor critica essa interpretação, com grande razão. De fato, na doutrina católica esse texto é também referente ao purgatório. Agora, aqui, em referência ao purgatório, o autor reformado não poderia refutar os argumentos. Prossigamos no acompanhamento das suas críticas aos argumentos arminianos.

A respeito de Mateus 11, 20-23 o raciocínio lógico realmente é feito no terreno das hipóteses, o que pode ser descartado.

Enfim, o autor afirma que “nem todos os arminianos” creem assim. Desse modo, ele mostra essas interpretações dessas passagens porque coadunam com o pensamento proveniente do arminianismo.

Passa, então, a analisar a posição da tradição luterana. Citando Scharlemann, mostra que a interpretação é estranha.

Não sendo consenso os detalhes dessa questão na tradição luterana, importante notar que Lutero, no fim da vida, interpretou 1 Pedro no sentido da descida de Cristo ao hades, e que portanto cria na imortalidade da alma. Isso fica patente pelo ano de edição de sua obra, 1545, e pelo reconhecimento desse fato por eruditos luteranos.

Interessante também é a observação do autor quanto à conceituação de Hades entre os luteranos. Para eles, o hades é o lugar da prisão, dos anjos e incrédulos. Cristo teria descido ao inferno com o corpo glorificado, como primeira etapa da sua exaltação.

A posição da tradição reformada agora é exposta pelo autor. O método de interpretação reformada tem em vista buscar exemplos em outros textos bíblicos para entender a passagem de 1 Pedro 3, 18-20. Portanto, não se servirá do texto de outros documentos, como do credo, para entender a doutrina.

Por isso, afirmando que a frase “desceu aos infernos” é do sétimo século, que antes disso pouca discussão havia sobre a doutrina, afirma que o ensino das Escrituras é que deve ser procurado para dirimir a questão.

E, com plena concordância de que o ensino bíblico geral é que define, prossigamos seguindo de perto os arrazoados do autor.

Então, começa afirmando que na teologia Reformada não há lugar para pensar que todos os mortos vão para o mesmo lugar, mas que uns vão para o inferno, sendo os condenados, e outros para o céu, os salvos. Isso está de acordo com a doutrina católica, que não ensina a existência do Seio de Abraão para os dias de hoje, já que Cristo o fechou, ao levar os salvos que lá estavam. Assim, em conclusão, o que a doutrina reformada afirma do céu e inferno está conforme a doutrina católica.

A explicação sobre “carne” e “espírito” em 1 Pedro 3, 18-20, com base em Romanos 1, 3-4, não parece ser de ajuda, já que em Romanos o Espírito Santo é que constitui Cristo, e em 1 Pedro é ao Espírito de Cristo que se está referindo. O Espírito de Cristo ali é a alma e divindade da Pessoa de Jesus, e não ao Espírito Santo. Também não é correto afirmar que se deva entender um “estado” da existência de Cristo, como se carne fosse um e espírito outro desse estado.

Quando o autor afirma que não há razão para entender morto na carne e vivificado no Espírito como duas partes do ser, “pois quem morre é o homem e quem ressuscita é o homem, não o corpo ou o espírito”, isso não é exato dizer em termos bíblicos, como mostram os estudos sobre a imortalidade da alma, feitos neste blog.

Quando o autor diz que Cristo subiu para o céu quando entregou o espírito, não está tendo em vista muito do que é estudado sobre a questão. Entregar o espírito no sentido de todos subirem ao céu não é exato afirmar sem um estudo anterior. Por isso, o leitor é convidado a ler os estudos sobre a imortalidade da alma.

Quando o autor interpreta “no qual”, que refere-se ao espírito de Cristo, nesse espírito, com base em 1 Pedro 1, 11, ele comete um erro exegético.

O autor afirma que o texto de 1 Pedro não fala de justos no hades nem de anjos na prisão, mas de pessoas que viveram nos tempos de Noé. Deve-se responder que o texto está explicando quem eram os espíritos em prisão. Ponto final.

Também é errôneo afirma que os salvos no Antigo Testamento foram para o céu, assim com no Novo. O autor cita Salmo 73, 23-24. Os textos que dizem que ninguém morto pode louvar o Senhor (cf. Sl 6,5-6) são bastante complicados para a doutrina reformada, diga-se de passagem.

Importante frisar que nesse particular a doutrina reformada diverge da doutrina católica, e contém modificações em suas expressões de fé, como no conceito de Hades, diferente em Heidelberg e em Westminster.

Por tudo o que foi dito, o leitor perceberá que a posição católica está fundamentada nas Escrituras.

Gledson Meireles.