sábado, 18 de dezembro de 2021

Desceu à mansão dos mortos: um estudo sobre a descida de Jesus ao mundo dos mortos considerando alguns argumentos de dois autores

A respeito do vídeo “Jesus pregou para os mortos?”, do pastor e arqueólogo adventista Rodrigo Silva.

Ele apresenta de forma concisa, e bastante clara, as interpretações que existem a respeito da passagem da epístola de São Pedro 3,18ss, depois apresenta sua interpretação.

Refere-se ao que é “aparentemente reforçado” em 1 Pedro 4, 6, sobre a pregação de Jesus às almas dos mortos.

A interpretação adventista é de que Cristo pregou através do Seu espírito aos rebeldes pecadores no tempo de Noé. Estaria tratando de um evento passado, do Antigo Testamento, e não do tempo em que Cristo esteve na terra.

Já escrevi extensa resposta sobre esse texto sagrado, e aqui vou considerar alguns argumentos do pastor Rodrigo.

Ele diz, por exemplo, a partir de Tiago 2, 26, que não há como pregar sem o corpo: “Se o corpo sem espírito é morto (não tem o que fazer) como que Cristo, sem o corpo, poderia pregar em espírito. Não faz sentido!”. A resposta adventista seria: somente em corpo, vivo.

Mas, tal raciocínio já está preso no paradigma adventista de que não é possível o espírito sobreviver sem o corpo. No entanto, a Bíblia diz o contrário, que não é possível o corpo sobreviver sem o espírito. Deve-se portanto entender os que ocorre com o espírito após a morte.

Outra questão é que o evangelho foi também pregado “a mortos”, e no dia do juízo Deus julgará “os vivos e os mortos”. O pastor argumenta no que juízo final não haverá nenhum morto, e, portanto, a passagem se refere a mortos espirituais. Os ímpios ressuscitados estariam vivos, mas mortos em pecado, e por isso o juízo aos mortos.

Esses dois argumentos não passam no escrutínio bíblico. Embora interessantes, e possam servir para outros contextos de estudo, não refuta que Cristo foi de fato pregar aos mortos.

A primeira prova de que essa interpretação acima não tem base bíblica é que a Bíblia ensina que Jesus padeceu na carne e foi vivificado no espírito. Isso se deu na paixão de Cristo na cruz, onde Ele morreu, mas sua alma foi vivificada pelo poder de Deus. Então Ele foi aos espíritos em prisão. Isso é o que ensina 1 Pedro 3, 18-19.

A outra prova de que a interpretação adventista está equivocada é que em 1 Pedro 4, 6 os que são mortos recebem o julgamento para viver, para serem salvos. Isso contradiz toda a argumentação do pr. Rodrigo.

E no juízo final todos estarão vivos, mas Cristo é juiz dos vivos e dos mortos porque a maioria da humanidade passará pela morte, exceto os que estiverem vivos no dia da vinda de Jesus. Assim, os mortos serão julgados quando ressuscitarem, e os vivos junto com eles naquele tempo. Ainda mais, Cristo passou pela morte para ser o juiz também dos mortos. Isso é o que ensina a Bíblia.

O estudo completo da passagem está aqui.

O artigo “Uma análise da expressão “desceu ao hades””, do pastor presbiteriano Heber Carlos de Campos estuda as visões católica, anglicana, luterana, anabatista, arminiana e calvinista quando à descida de Jesus ao hades.

O autor inicia afirmando que a expressão “desceu ao hades” com referência a Cristo – é uma expressão não encontrada nas Escrituras.

No entanto, deve-se já de antemão acervar, sabe-se que a alma de Cristo ficou no Hades, conforme Atos 2, 27, que diz que a carne não deixará a minha alma na região dos mortos e não permitirá que Ele conheça a corrupção. Não é necessária a existência da “expressão”, exceto para fins da filologia. Portanto, é inócua uma argumentação que parta desse princípio. E o artigo tomou tal ponto como parte do seu fundamento argumentativo. Em nota o autor explica que hades significa morte, ou seja, o mesmo que dizer que o termo deve ser traduzido por morte em Atos 2. Mas, o contexto dirime essa questão a ilumina todo o assunto.

As expressões “ad inferna” e “ad inferos” referem-se a essa verdade bíblica e teológica. Se não fazia parte “do texto” original do credo, é uma explicação da doutrina bíblica, bastando para isso que se leia Atos 2, 27.

A expressão “desceu aos infernos” é apena uma substituição de “foi sepultado”, e que as duas expressões usadas juntas não dá origem a “outra doutrina”, pelo exposto acima. Cristo morreu, seu corpo foi para o sepulcro e sua alma desceu ao hades, como está em Atos 2, 27.

O catecismo explica que a expressão desceu aos infernos tem a intenção de explicar que Cristo morreu verdadeiramente. O estudo da origem da inserção da frase não deve servir de empecilho para crermos que Jesus desceu à mansão dos mortos e esteve com as almas dos justos do Antigo Testamento. A frase pode ser do quarto século, mas sua doutrina é do primeiro.

A ideia de que Cristo desceu às regiões espirituais dos mortos é bíblica (Atos 2, 27; Ef 4, 8-9, 1 Pedro 3, 18-19; 1 Pedro 4, 6). Não se trata de um texto isolado, mas de um conjunto de passagens escriturísticas.

O que Witsius e J. N. D. Kelly observaram apenas confirma o entendimento antigo da doutrina. Até aqui, não há o que objetar contra a mesma em termos bíblicos e históricos. Os textos estão na esteira da explicação da doutrina.

No Ocidente, após santo Agostinho, tornou-se comum explicar 1 Pedro 3, 19 nessa parte do credo, segundo Kelly, citado pelo autor do artigo.

Então o autor acredita que a doutrina da “descida ao Hades” teve o intuito de reviver a doutrina pagã do Hades, o que não faz sentido pelo observado acima. A afirmação é equivocada.

No paganismo, segundo o autor, o Hades é o inferno, enquanto que para os cristãos que começaram a ver 1 Pedro 3, 19 como explicação da frase “desceu ao Hades”, o Hades é também paraíso, ou seja, há o Paraíso e o Hades na composição do Hades, o que seria inconsistente.

Para responder a isso, o autor deve notar que a doutrina bíblica, que os cristãos seguem, não é idêntica à doutrina pagã, e que o termo Hades original, ainda que tenha essa coerência de inferno, apenas, não tem a ver com a cosmovisão cristã que se utiliza do mesmo termo, mas é diversa. Tendo isso em mente, deve-se entender o Hades no conceito bíblico, e não naquele do mundo grego.

Agora, a questão do Hades ser uma forma de explicar os sofrimentos da paixão e cruz, essa é outra história.

A explicação do autor de que os que estão no limbus patrum não são salvos pela graça mas não são réprobos, não parece ser exata. Na salvação tudo é pela graça, mesmo que antes do Novo Testamento. Assim, os salvos antes de Cristo foram salvos também por Cristo. É a explicação correta de que Jesus foi somente às almas dos justos.

A tradição anglicana com sua ideia de conquista pode ter sido passada para o imaginário católico, talvez, como afirma o autor das “modificações” trazidas para âmbito católico, mas não traz mudança de doutrina, deve ser observado.

A tradição radical contem docetismo, como afirma o autor, e pode ser descartada como parte da ortodoxia. Ela vai além do que a Bíblia afirma, com muita imaginação.

A explicação do Hades como inferno deste mundo também no âmbito da reforma radical, e não tem a ver com a doutrina católica. Outra boa observação deve ser feita aqui. Também há heresia de que os sofrimentos são “exemplos”, algo que não é conforme a doutrina católica.

A visão de Serveto é ainda menos bíblica.

A tradição luterana é essencialmente idêntica à católica.

A tradição arminiana é uma leitura da patrística, parece que sem uma definição, pelo que apresentou o autor.

A tradição reformada é uma leitura nova da questão, parecendo, segundo afirmações do autor, que não se crê entre os reformados que Cristo tenha espacialmente ido ao Hades.

Essa é a análise histórica da questão. Assim, a doutrina católica da descida à mansão dos mortos está totalmente de pé, fundamentada na Bíblia, e debatida entre os protestantes. Temos a visão católica, a visão da reforma, entre elas a radical, a arminiana, a luterana e a reformada. O autor está defendendo a reformada. Enquanto ele apresenta suas razões, façamos a análise de seus argumentos, respondendo-os com a autoridade das Escrituras, a Bíblia.

Então, agora na análise bíblica, o autor, que nega a descida de Jesus ao local do Hades, tenta refutar o que acredita ser um abuso do texto 1 Pedro 3, 18-20, que chama de “o mais usado e o mais abusado”.

Ele inicia tendo em consideração a teologia arminiana. Nessa seção o autor afirma que 1 Pedro 3, 19 tem interpretação que não favorece ligação com 1 Pedro 4, 6. Isso é estranho, pois ambas as afirmações bíblicas estão no mesmo contexto, apensas a poucos versículos de aproximação um do outro. Portanto, trata-se do mesmo assunto, do mesmo contexto, com ligação inegável.

O pensamento de que os antediluvianos se converteram antes da morte é uma “fantasiosa suposição” diz o autor. No entanto, não se pode negar isso por nenhum testemunho positivo. Pense nisso.

Sobre a pregação no hades, com citação de Clemente de Alexandria, e de autor arminiano, Ziethe, essa não tem base bíblica. A Bíblia diz, com o exemplo de Cristo, que o evangelho “foi” pregado, e não que está sendo pregado ou que será pregado aos espíritos em prisão. Ensinar essa nova ideia é ir contra a revelação bíblica.

Então, o autor passa a analisar os textos bíblicos, em consideração a argumentos arminianos.

O estudo é dividido entre histórica, teologia e bíblia.

O texto de Mateus 5, 26 é interpretação, segundo o autor, pelo comentarista F. W. Farrar, como proponente da evangelização no Hades. Então, o autor diz que se o evangelho liberta gratuitamente, quando se tem que pagar até o último centavo, isso encerra contradição. De fato. Então, a interpretação de Mateus 5, 26 não diz respeito à descida ao inferno, como de fato não diz mesmo, pois essa passagem sempre foi entendida como referente ao purgatório.

Exemplo aqui de um reformado analisando argumento de um erudito arminiano. O reformado tem razão nesse ponto, e mostra incoerência cometida um intérprete arminiano na exegese de um texto bíblico. (ver nota 63 sobre obra de hermenêutica)

Outro texto que “os pressupostos arminianos” levam a ser interpretado como ensinando o evangelho no Hades é o de Mateus 12, 31-32. O autor critica essa interpretação, com grande razão. De fato, na doutrina católica esse texto é também referente ao purgatório. Agora, aqui, em referência ao purgatório, o autor reformado não poderia refutar os argumentos. Prossigamos no acompanhamento das suas críticas aos argumentos arminianos.

A respeito de Mateus 11, 20-23 o raciocínio lógico realmente é feito no terreno das hipóteses, o que pode ser descartado.

Enfim, o autor afirma que “nem todos os arminianos” creem assim. Desse modo, ele mostra essas interpretações dessas passagens porque coadunam com o pensamento proveniente do arminianismo.

Passa, então, a analisar a posição da tradição luterana. Citando Scharlemann, mostra que a interpretação é estranha.

Não sendo consenso os detalhes dessa questão na tradição luterana, importante notar que Lutero, no fim da vida, interpretou 1 Pedro no sentido da descida de Cristo ao hades, e que portanto cria na imortalidade da alma. Isso fica patente pelo ano de edição de sua obra, 1545, e pelo reconhecimento desse fato por eruditos luteranos.

Interessante também é a observação do autor quanto à conceituação de Hades entre os luteranos. Para eles, o hades é o lugar da prisão, dos anjos e incrédulos. Cristo teria descido ao inferno com o corpo glorificado, como primeira etapa da sua exaltação.

A posição da tradição reformada agora é exposta pelo autor. O método de interpretação reformada tem em vista buscar exemplos em outros textos bíblicos para entender a passagem de 1 Pedro 3, 18-20. Portanto, não se servirá do texto de outros documentos, como do credo, para entender a doutrina.

Por isso, afirmando que a frase “desceu aos infernos” é do sétimo século, que antes disso pouca discussão havia sobre a doutrina, afirma que o ensino das Escrituras é que deve ser procurado para dirimir a questão.

E, com plena concordância de que o ensino bíblico geral é que define, prossigamos seguindo de perto os arrazoados do autor.

Então, começa afirmando que na teologia Reformada não há lugar para pensar que todos os mortos vão para o mesmo lugar, mas que uns vão para o inferno, sendo os condenados, e outros para o céu, os salvos. Isso está de acordo com a doutrina católica, que não ensina a existência do Seio de Abraão para os dias de hoje, já que Cristo o fechou, ao levar os salvos que lá estavam. Assim, em conclusão, o que a doutrina reformada afirma do céu e inferno está conforme a doutrina católica.

A explicação sobre “carne” e “espírito” em 1 Pedro 3, 18-20, com base em Romanos 1, 3-4, não parece ser de ajuda, já que em Romanos o Espírito Santo é que constitui Cristo, e em 1 Pedro é ao Espírito de Cristo que se está referindo. O Espírito de Cristo ali é a alma e divindade da Pessoa de Jesus, e não ao Espírito Santo. Também não é correto afirmar que se deva entender um “estado” da existência de Cristo, como se carne fosse um e espírito outro desse estado.

Quando o autor afirma que não há razão para entender morto na carne e vivificado no Espírito como duas partes do ser, “pois quem morre é o homem e quem ressuscita é o homem, não o corpo ou o espírito”, isso não é exato dizer em termos bíblicos, como mostram os estudos sobre a imortalidade da alma, feitos neste blog.

Quando o autor diz que Cristo subiu para o céu quando entregou o espírito, não está tendo em vista muito do que é estudado sobre a questão. Entregar o espírito no sentido de todos subirem ao céu não é exato afirmar sem um estudo anterior. Por isso, o leitor é convidado a ler os estudos sobre a imortalidade da alma.

Quando o autor interpreta “no qual”, que refere-se ao espírito de Cristo, nesse espírito, com base em 1 Pedro 1, 11, ele comete um erro exegético.

O autor afirma que o texto de 1 Pedro não fala de justos no hades nem de anjos na prisão, mas de pessoas que viveram nos tempos de Noé. Deve-se responder que o texto está explicando quem eram os espíritos em prisão. Ponto final.

Também é errôneo afirma que os salvos no Antigo Testamento foram para o céu, assim com no Novo. O autor cita Salmo 73, 23-24. Os textos que dizem que ninguém morto pode louvar o Senhor (cf. Sl 6,5-6) são bastante complicados para a doutrina reformada, diga-se de passagem.

Importante frisar que nesse particular a doutrina reformada diverge da doutrina católica, e contém modificações em suas expressões de fé, como no conceito de Hades, diferente em Heidelberg e em Westminster.

Por tudo o que foi dito, o leitor perceberá que a posição católica está fundamentada nas Escrituras.

Gledson Meireles.

Nenhum comentário:

Postar um comentário