terça-feira, 23 de março de 2021

A salvação é obra de Deus: comentando um capítulo do livro A Soberania Banida

Refutação ao capítulo 5 do livro A Soberania Banida, R. K. McGregor Wright. A doutrina de Charles Spurgeon.

Deus salva pecadores. O que Spurgeon quis ensinar com essa frase? É óbvio que a mesma não tem todas as informações sobre o que uma determinada corrente teológica ensina ou não, já que ninguém nega a afirmação de que é Deus quem salva os pecadores. Por isso é preciso destrinchar o que o teólogo protestante realmente desejou ensinar com essa afirmação.

A afirmação de que Deus quis salvar alguns dos pecadores que estavam cativos do pecado originado por Adão e Eva não explica muito. De certo, pode já vislumbrar a diferença essencial entre a doutrina católica e a protestante calvinista nesse quesito. Deus intenciona salvar “alguns” dos pecadores, pois o calvinismo, como está sendo tratado aqui, afirma que a cruz não foi para todos.

Até mesmo a afirmação de Wright, de que “Deus interfere na história” para salvar, é um tanto difícil para a doutrina calvinista, pois parece, com essa fraseologia ortodoxa, ter a história como algo autônomo e que Deus passa em determinado momento a intervir no processo histórico, o que não é o que o calvinismo ensina. Mais abaixo veremos outra frase que respira ares ortodoxos.

De fato, quem fez e colocou a história em processo? Daí deve-se dizer que a própria pergunta já naufraga em seu início quando pretende explicar a doutrina reformada nos termos que a mesma de fato não se sustenta, mas pretende sustentar. E é necessário que assim o faça para manter o discurso ortodoxo.

Nesse ponto, a doutrina católica não encontra dificuldades em afirmar ao mesmo tempo que Deus é o Autor da história e que interfere nela para salvar, como é plenamente certa de que Deus salva pecadores, por pura graça, sem ter que explicar esse palavreado perante a crítica como a que se pretende aqui.

A doutrina arminiana tem lá os seus motivos e respostas para a crítica de que o pecador tem neutralidade de resposta ao evangelho. A doutrina católica, como já visto em outros artigos, não está presa a essa dificuldade, e a supera tranquilamente, e pode não ter que tratar dessa questão quando tudo está bem entendido.

A doutrina reformada ensina que Deus faz tudo para a salvação, sendo passiva toda ação do homem nesse aspecto. Os que são salvos são “obrigados” a entrar na salvação. Embora essa seja uma palavra forte, e que parece dizer realmente o que o calvinismo está ensinando, ela está contida nas críticas à doutrina reformada, e tem dela a devida resposta de que Deus não obriga a ninguém contra a vontade a ser salvo, mas que move a vontade a aceitar de bom grado.

Ainda, além de realçar esse aspecto da doutrina calvinista, a parábola citada de Lucas 14, 21.23, contem a mensagem de que os convidados não são salvos. Obviamente dirão que muitos dos convidados possuem apenas o chamado geral, e não o eficaz, e por isso não foram admitidos à festa. Na verdade, aqueles convidados não foram para a festa porque não quiseram, diz o Evangelho de Jesus, e o convite é idêntico, àquele feito aos demais, ou seja, para o mesmo lugar, para a mesma festa, o que torna a posição reformada defeituosa nessa explicação. Deve-se admitir que Deus faz o convite a todos, mas muitos o rejeitam, como aqueles judeus do tempo de Jesus o fizeram.

Enfim, para contrastar a salvação dos gentios, Jesus utiliza a palavra obrigar, para falar do convite à festa, para deixar clara a gravidade da recusa da salvação feita por muitos, e a desfeita que fizeram a Deus.

De fato, não se deve entender cada palavra da parábola literalmente, porque doutro modo diríamos que Deus salva por ira, e ainda que salva muitos por ainda sobrar espaço no céu e para que outros, os que foram convidados primeiro, não entrem. Isso porque a parábola afirma que o servo saiu e levou muitas pessoas para a festa e avisou ao patrão que ainda havia lugar. Nisso, o senhor ordenou que o servo buscasse mais pessoas e enchesse a casa, obrigando todos a entrar. Ainda, haveria espaço para outro mal-entendido, como se os pobres, aleijados, cegos e coxos, e menos ainda, os que vivam entre caminhos e atalhos, não estivessem no primeiro convite! Obviamente não é esse o sentido da parábola, mas se deve fazer essas reflexões para que não se tome uma palavra qualquer e a torne prova para uma doutrina. Por isso, quando se diz que o senhor mandou o servo “obrigar” a entrar na festa, entenda-se o quadro da parábola literalmente, para somente depois entendermos o sentido espiritual dela.

Outros problemas para a teologia reformada haveria se fizéssemos maiores comparações com a parábola no evangelho de São Mateus 22, 1-14, onde os convidados não foram dignos, e, depois da segunda onda de convidados, um deles entrou na festa e não estava com a veste nupcial, sem contar os “maus e bons” que foram convidados .

Voltando à parábola em Lucas 14, tudo isso está no contexto da ira do senhor pela desfeita daqueles primeiros convidados. Essa parábola está ilustrando o amor de Deus em salvar, convidando a todos, mas recebendo a recusa ao seu convite.

Outra passagem muito usada pela teologia reformada, contra o livre-arbítrio, é a de João 15, 16, que Wright afirma não ter resposta da parte arminiana.

Mas, eis que a seguir, mais uma linguagem de Wright soa bem católica, quando diz que Deus “faz o que é necessário para vencer o eleito”. Essa é a frase aludida antes, que tem ares de doutrina católica.

De fato, Deus chama o pecador, estende o Seu poderoso braço para salvar, dá toda a força ao pecador para agarrar em Sua misericordiosa mão salvadora. Mas, muitos não querem. O eleito é pecador, e está agindo contra a revelação de salvação, mas Deus faz de tudo para salvá-lo. No entanto, o que o calvinismo ensina é que mesmo aquela radical aversão à salvação é parte do plano de Deus, para os não-eleitos, e para os eleitos até determinado tempo, o que não faz sentido a ação de Deus para vencer o coração pecaminoso do homem.

A interpretação de 2 Pedro 1, 10, pelo autor reformado, é de que não devemos fazer segura a nossa salvação, mas que devemos nos tornar seguros dela, da vocação e eleição. Ou seja, o crente não deve fazer certa a sua salvação de algum modo, mas já está salvo, e deve estar certo dessa realidade já confirmada.

Vejamos a passagem inteira, para vermos se podemos concordar ou não com essa explicação, e se nesse texto o calvinismo tem ou não alguma base.

Para isso, como de costume, como é correto, como é a verdadeira exegese bíblica, seguindo os dados da sã hermenêutica, não podemos nos esquecer do contexto, principalmente do contexto imediato, aquele mais próximo, que circunda o texto bíblico em apreço.

Então, vejamos que o verso 3 ensina que Deus deu-nos tudo que contribui para nossa vida e piedade, e nos faz conhecê-Lo, que nos chamou através de Sua glória e virtude. Fomos chamados pela glória e virtude de Deus, e recebemos o poder de Deus para O conhecermos.

Assim, entramos nas posses espirituais, para nos afastarmos da corrupção do mundo (v. 4). Aí, no verso 5, há o esforço do cristão, para unir à fé a virtude, etc., para que assim os cristão não fiquem inativos e sem frutos. Ou seja, há uma atividade do crente para garantir que eles sejam ativos e praticantes dos frutos do evangelho. Isso está nos versos 4-8.

A seguir, o v. 9 afirma que sem essas coisas o cristão é míope e cego e esqueceu-se da purificação dos seus pecados. E então? Ele continua bem espiritualmente, continua salvo e com garantia eterna da salvação, ou há algum problema quanto a isso? Vejamos o que segue na Palavra de Deus.

O v. 10 exorta a assegurar a vocação e eleição. Isso concorda com a lembrança, aludida no verso anterior, de que devemos ter sempre a vocação e eleição divinas, da purificação dos nossos pecados. Até aqui, nada há que possa desabonar a tentativa reformada de garantir a sua intepretação da graça contra o livre-arbítrio nessa passagem. Mas, ela continua assim: “Procedendo desse modo, não tropeçareis jamais.” Então, o verso 12 coroa essa verdade: “Assim vos será aberta largamente a entrada no Reino”.

Isso significa que a lembrança da salvação deve estar presente segundo tudo o que foi dito antes: na vida de uma fé ativa e cheia de frutos, para não tropeçar, ou seja, para não pecar, e então será aberta a porta do céu. Vigilância sempre, como está no verso 13. E os cristãos que estavam recebendo aquela carta estavam instruídos e confirmados (v. 12), estavam vivendo retamente. Dessa forma, a passagem não diz que o ato de estar seguros da salvação recebida é o que importa aos cristãos, em contraste com o conceito de tornar segura a salvação, de forma que os cristãos estavam salvos para sempre, mas, ao contrário, que devemos ser obedientes, para participar da natureza divina, ficando longe das corrupções do mundo, esforçando na fé e outras virtudes, praticando as boas obras (porque quem não tiver essas coisas (cf. v. 8) não está reconhecendo a salvação) e assim assegurar a salvação e eleição, da forma ensinada nos versos anteriores, para que agindo assim não caiamos em pecado e tenhamos a porta do céu aberta.

De fato, o conceito de perseverança em resposta do livre-arbítrio à graça recebida de Deus para a salvação está em toda a passagem, assim como a ideia de que é possível tropeçar e perder essa entrada no Reino. Por tudo isso, essas admoestações são necessárias (vv. 13-15). É o evangelho que a santa Igreja Católica anuncia.

Os reformados poderão dizer que a perseverança, os esforços santos dos eleitos, as admoestações, e etc., já estão no plano de salvação, são resultado da eleição, e que isso não nega o que foi dito da gratuidade da salvação.

O problema é que a passagem bíblica não diz isso, mas deixa o crente com o temor de tropeçar. O verdadeiro reformado tem o temor de tropeçar, mas não de perder a salvação, enquanto que o texto bíblico admoesta sobre o temor de tropeçar e não ter aberta a porta do Reino, ou seja, a perda da salvação, se não agirem da forma como foi exposta. O problema é profundo para a teologia calvinista, abordada por Wright, e o autor não pode negar essa conclusão.

Gledson Meireles.

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