quinta-feira, 29 de novembro de 2018

O Concílio de Jerusalém e a Sola Scriptura


 
No concílio reuniram-se os apóstolos, juntamente com o apóstolo Paulo, e o seu colaborador Barnabé, e também os presbíteros ou anciãos. Essas autoridades trataram da questão da obrigatoriedade da circuncisão e observação da Lei Mosaica por parte dos gentios conversos, e mesmo para todos os cristãos, como necessária para a salvação.

 

Ali estavam os apóstolos, que foram os homens chamados, escolhidos, preparados e comissionados por Jesus para levar o Evangelho a todas as nações. Também foram eles as testemunhas de toda a vida e da ressurreição do Senhor. Foram eles que receberam o Espírito Santo, quando Cristo apareceu-lhes em João 20, e no dia de Pentecostes em Atos 2, que é a abertura da Igreja para a missão na terra.

 

Os apóstolos e anciãos pensaram sobre a questão e debateram sobre os motivos e sentidos que levaram àquela controvérsia. Pautaram-se pela Palavra de Deus, escrita no Antigo Testamento, e da revelação do Novo Testamento deixada por Jesus Cristo e guiada, desde então, pelo Espírito Santo. Todos eles pautaram a avaliação da controvérsia nas Escrituras e na inspiração do Espírito de Deus, pois estavam no período da revelação.

 

A pregação dos judaizantes não estava atrelada ao sentido da fé cristã. Eles não foram enviados pelos apóstolos, e não tinham a autoridade de pregar o que estavam pregando. Eles diziam que era necessário observar a Lei de Moisés para ser salvo. (Atos 15,1)

 

O apóstolo Paulo e Barnabé discutiram calorosamente com eles. Não foi uma discussão passageira e de pouca importância, mas uma “grande discussão”, diz o texto sagrado. (At 15,2).

 

São Paulo era inspirado pelo Espírito Santo para ensinar. Seu ensino estava correto, mas ainda assim não conseguiu liquidar a dúvida e refutar a heresia por meio da pura discussão com aqueles pregadores. Eles não o escutaram.

 

Foi então que, resolveram ir a Jerusalém tratar da questão com os apóstolos. Foram Paulo, Barnabé e alguns outros cristãos.

 

A igreja, os apóstolos e os anciãos de Jerusalém recebeu Paulo e Barnabé. “Chegando a Jerusalém, foram recebidos pela comunidade, pelos apóstolos e pelos anciãos.” (Atos 15,4)

 

A comunidade é a ekklesia, a igreja, no texto grego. Nessa passagem enfaticamente refere-se aos demais cristãos leigos, aqueles que não fazem parte da autoridade docente, que era constituída pelos apóstolos e anciãos. Em sentido geral todos formam a igreja, mas o texto precisa a posição de cada um para o entendimento do que irá ocorrer: o concílio.

 

Ainda em Jerusalém alguns manifestaram o parecer de que a circuncisão e a Lei de Moisés deveriam ser praticadas pelos pagãos convertidos. (cf. v. 5) Então, “os apóstolos e os anciãos”, as autoridades constituídas, reuniram-se. (v. 6) Houve muita discussão. O texto não entra nos pormenores, nem no tempo gasto para o amadurecimento da questão. Certamente, voltaram aos testemunhos e apresentaram os fatos, e provavelmente tornaram enfrentar os argumentos opostos, com base nos textos sagrados usados para mostrar o sentido que fundamentava o parecer contrário. Pensa-se, também que os judaizantes tinham bastante testemunho escriturístico que usaram a seu favor. Era o momento propício para discutir. E discutiram muito.

 

“Ao fim de grande discussão, Pedro levantou-se”. (Atos 15,7) Esse é o momento da decisão. O apóstolo Pedro, como sempre, é apresentado como aquele que fala diante do grupo de cristãos. Nesse momento, em especial, estavam apóstolos e anciãos tratando do tema em apreço.

 

Então, Pedro lembra o fato da sua escolha por Deus para anunciar o evangelho aos pagãos, e certamente menciona a história de Cornélio, quando os gentios receberam o Espírito Santo.

 

E finalmente, brada o chefe dos apóstolos: “Por que, pois, provocais agora a Deus, impondo aos discípulos um jugo que nem nossos pais nem nós pudemos suportar¿”

 

São Pedro afirma que impor a circuncisão e a Lei é provocar a Deus. Eis tamanha exortação aos presentes. E prossegue com a Boa Nova da graça: “Nós cremos que pela graça do Senhor Jesus seremos salvos, exatamente como eles.” (Atos 15,11) Essa foi a mensagem central, que resumiu e definiu a posição do Concílio, e foi o evangelho pregado por toda a parte, em especial e grande escala, por São Paulo: “Nós cremos que pela graça do Senhor Jesus seremos salvos”.

 

Toda a discussão cessou. Houve silêncio agora. A inteira assembleia calou. Pode, então, Paulo e Barnabé contar o que tentaram no início, no caminho, e quando chegaram a Jerusalém, (vv. 3-4) mas que não foram aceitos no sentido de reconhecimento da liberdade dos pagãos em relação à Lei.

 

Agora sim. A proclamação de Pedro, depois que todos falaram e discutiram e apresentaram seus pareceres, fez ouvir a autoridade da Palavra de Deus, para não provocar o Senhor.

 

Temos as seguintes falas no concílio:

 

(1)        A grande discussão

(2)        Pedro levantou-se e disse-lhes

(3)        Ouviram Paulo e Barnabé

(4)        Tiago tomou a palavra

 

O texto original afirma que Tiago respondeu (ἀπεκρίθη Ἰάκωβος - apekrithe Iakobos). Ele refere-se às palavras de Pedro: “Simão narrou como Deus começou a olhar para as nações...”. (v. 13) E mostrou que o que Pedro disse está em concordância com as Escrituras: “com isto concordam as palavras dos profetas”. (v. 15), terminando suas palavras com a concordância referente ao que Pedro falou (v. 19) e as sugestões, de abster-se das carnes oferecidas aos ídolos, da impureza, das carnes sufocadas e do sangue (v. 20), e seu motivo, que é a autoridade de Moisés em cada cidade. (v. 21). Todos concordaram, o Espírito Santo estava guiando ali todo o entendimento da Palavra de Deus.

 

“Então, pareceu bem aos apóstolos e aos anciãos com toda a comunidade”. (v. 22) e no verso 28: “Com efeito, pareceu bem ao Espírito Santo e a nós não vos impor outro peso além do seguinte...”, e volta a repetir o importante parecer do verso 19.

 

Assim, desautorizaram os pregadores de outrora, de base judaizante, (cf. 24), definindo não ser mais necessárias aos pagãos a circuncisão e a observância da Lei. Essa foi a decisão conciliar.

 

Dessa forma, vê-se que em um concílio as experiências, a pregação, e outros elementos que surgirem, certamente, são postos à luz da Palavra de Deus, como feito nesse caso. Pedro mostrou o que Deus havia revelado a ele. Contou a consequência daquela revelação na vida dos pagãos. Admoestou a todos para não provocarem a Deus, tornando a questão resolvida. A paz na Igreja voltou a reinar.

 

O apóstolo Tiago corroborou o que São Pedro havia dito, e propôs medidas importantes e fundamentais para aquela questão, que estava de acordo com o sentimento de toda a Igreja, e portanto foram aceitas, pois expressavam a essência da fé judaica em torno da prática da Lei em relação aos demais povos, orientando todos ao Senhor.

 

A questão central, porém, já estava promulgada: Cremos que pela graça de Jesus seremos salvos, e não pela circuncisão e prática da Lei de Moisés. (Atos 15, 11) Pedro havia falado, como porta-voz de Deus, o silêncio tomou conta da assembleia, a discussão acabou e depois todos puderam falar. E falaram conforme a revelação dada por São Pedro. Resolvida estava a questão.

 

 

A primeira controvérsia e a questão do concílio

 

A primeira controvérsia girou em torno da pregação do evangelho aos pagãos, pois muitos pensavam ser privilégio apenas judaico. O segundo momento, ainda naturalmente ligado a esse, desdobra-se na questão da continuidade da obrigação da circuncisão e da Lei para os pagãos convertidos.

 

Quando Pedro recebeu os pagãos na Igreja, foi repreendido pelos cristãos judeus (lit.: começaram a discutir com ele), após retornar a Jerusalém, por ter entrado na casa de pagãos e tomado a refeição com eles.  (At 11,3)

 

Então, Pedro explicou-lhes o que havia acontecido. O resultado foi que todos se calaram e glorificaram a Deus pelo que tinha feito com os gentios. (At 11,18)

 

Nesse momento, a palavra de São Pedro apenas pode por fim à comoção dos cristãos da circuncisão. O mesmo não ocorreu quando São Paulo contendeu com esses cristãos. (cf. 15,2)

 

Eles não aceitaram a explicação de Paulo, nem deram ouvidos aos exemplos que certamente lhe foram mostrados. Esses judeus não eram autorizados a ensinar o que ensinavam, e por isso mostraram-se endurecidos naquele momento, não aceitando a autoridade do grande apóstolo.

 

Paulo e Barnabé “contaram a todos os irmãos a conversão dos gentios”, “contaram tudo o que Deus tinha feito com eles” (vv. 3-4). Mas, ainda os cristãos judeus não aceitaram seus testemunhos, mesmo já iniciado o concílio. A questão era muito acirrada.

 

Quando Pedro falou, “a assembleia ouviu silenciosamente”. (v. 12)

 

Antes, em reunião com os cristãos de Jerusalém, quando da primeira controvérsia, Pedro “fez-lhes uma exposição de tudo o que acontecera” e todos fizeram silêncio e louvaram a Deus. (At 11,4)

 

Agora, em concílio, Pedro levanta-se, fala, e todos fazem silêncio. O seu testemunho convence mais uma vez. Acima já foi tratada da questão como desenvolvida na reunião conciliar, dessa vez, acentua-se a posição de Pedro nessas controvérsias.

 

O concílio e o sola Scriptura

 

Sabemos dos acontecimentos narrados acima pelas Sagradas Escrituras. Naquele momento, porém, tinham já o Antigo Testamento, mais ou menos organizado, não totalmente definido, e ainda era escrito o Novo Testamento.

 

Tendo a liderança dos apóstolos, as boas novas do Evangelho deviam ainda ser esclarecidas por eles, já que Cristo os havia enviado, e o Espírito inspirava-os nessa missão. Tem-se assim que não havia lugar para uma análise solitária das Escrituras para descobrir o que fazer com relação ao problema que surgia. Ninguém estava livre par estabelecer por si mesmo, por sua própria análise do Antigo Testamento, o que deveria ser feito. Nem os protestantes podem fazer as coisas assim. É o que ensina Vanhoozer.

 

Quanto ao Novo Testamento, pelos idos do ano 50, muito estava para ser escrito, e a resolução daquela questão estava revelada no Evangelho, sendo efetivada a partir de Atos 10.

 

Por esse motivo, mesmo alguns solascripturistas são de parecer que não cabia ainda o livre exame naquele momento, já que as Escrituras estavam sendo terminadas. O problema é que não há indicação nenhuma que isso devesse ocorrer depois. Além do mais, o que está exposto leva à posição de que não há realmente lugar para esse modelo de interpretação.

 

Para referir-se a essa questão em um entendimento mais pormenorizado, deve-se considerar o que Kevin J. Vanhoozer afirma desse concílio. E, acredite, o mesmo introduziu o principio sola Scriptura nesse momento. É importante ler o seu livro.

 

Para ele, esse concílio é um exemplo da prática do sola scriptura, e cita Darell Bock, que considera o evento como uma reunião de “consulta” (em nota, ênfase do autor) e não um concílio. Infelizmente, essa parece não ser uma abordagem plausível, e revela a carga de uma mentalidade anacrônica.

 

Mas, será que no caso desse exemplo ser a prática da doutrina sola Scriptura, essa é mostrada como o foi acima¿ Não exatamente. OO modelo é outro. Leia o livro! Bem, o que Vanhoozer escreve sobre o concílio, lembrando as palavras de Paulo e a intervenção de Tiago, a que chama de “decisiva”, e esquecendo do papel de autoridade de Pedro, mostra que não. Não foi essa a prática. Por isso, a interpretação de Vanhoozer é, obviamente e tipicamente protestante, mas frisa-se isso aqui por sua fidelidade à doutrina da Reforma e ao seu inescapável condicionamento, o que prova ser a leitura bíblica enormemente resultado da tradição onde é feita.

 

Assim, o autor não toca minimamente no nome de São Pedro ao tecer sua análise de Atos 15, corroborando o dito anterior, e nesse exame exalta tacitamente a natureza local da igreja, ao referir-se à autonomia de Antioquia, ainda que o texto de Atos 15 não tenha a mínima indicação a esse respeito, como não há em nenhum do Novo Testamento.

 

Portanto, a Palavra de Deus foi sim o fundamento da decisão conciliar, mas lida por iluminação e orientação do Espírito Santo, pela autoridade da Igreja, em primeiro lugar aos apóstolos, e em conjunto com eles, aos anciãos por eles ordenados, chegando a um consenso após a averiguação da questão, entendendo mais precisamente a revelação direta de Deus feita ao apóstolo São Pedro. O sola Scriptura aqui é bastante diverso do que aparece na tentativa aludida. As Escrituras foram interpretadas na Igreja, pela autoridade eclesiástica, no Espírito Santo à luz da mensagem dada aos apóstolos. Esse modelo serve para todos os tempos.

 

Gledson Meireles.

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