sexta-feira, 24 de março de 2023

Livro: A lenda da imortalidade da alma, sobre o evangelho pregado aos mortos

Refutação do item: O evangelho pregado aos mortos

A própria passagem de 1 Pedro 4, 6 mostra que os “mortos” são de fato as pessoas que morreram literalmente, fisicamente, e não espiritualmente. De fato, o texto diz que “também” ou “até” os mortos foram evangelizados.

Todos os que ouvem a pregação do evangelho são primeiramente mortos em pecados e vivem após a conversão. Assim, sempre se prega o evangelho, ordinariamente, naturalmente, logicamente, aos mortos.

Mas, agora, o texto diz que também aos mortos foi pregado o evangelho, o que só pode ser aos mortos que estão na mansão dos mortos.

O texto lembra o julgamento do pecador em 1 Coríntios 5, 5, que tem como sentido a excomunhão, que serve para a destruição da carne  e a salvação do espírito no dia do Senhor.

Em 1 Pedro 4, 6, os mortos são condenados na carne, julgados de segundo os homens na carne, para que possam viver segundo Deus no espírito.

As traduções trazem o sentido de que o evangelho foi pregado “também” aos mortos, “até” aos mortos, traduzindo a conjunção kai (que significa e, até, também, segundo a Strong´s Concordance 2532). O contexto determina o sentido. Assim é que em Mateus 8, 27 a conjunção tem o sentido de até: “que até os eventos e o mar obedecem?”.

O argumento é que o texto diz que os mortos deverão prestar contas a Deus. Também afirma que isso implica em que os mortos não foram julgados ainda, porque sem julgamento não pode ter sido lançados em nenhum lugar. O problema é que os anjos estão presos em trevas eternas aguardando o juízo, o que prova que é possível ter sido lançado em um lugar antes do juízo final.

 Além do mais, o texto é claro que afirmar, com a doutrina bíblica inteira, que Jesus é juiz dos vivos e dos mortos, como diz Atos 10, 42 e 1 Timóteo 4, 1. Portanto, trata-se de algo extraordinário que o evangelho tenha sido pregado também aos mortos.

 Para o mortalismo os mortos não estão em lugar nenhum, não estão conscientes porque não existem. Então, a explicação é que os mortos são os que estavam mortos quando São Pedro escreveu a carta, mas que estavam vivos quando ouviram o evangelho.

 Essa interpretação é feita para evitar a ideia de que haveria oportunidade de salvação após a morte. Não há outra razão que os intérpretes protestantes citados poderiam dar para apoio dela.

Outro argumento é que o vero kerusso seria um outra pregação ou proclamação, e que seria a vitória da cruz que Jesus foi proclamar aos anjos.

Há uma ligação do verso 5 e do verso 6. O v. 5 trata dos pecadores que terão de dar contas a Jesus, pois Jesus vai julgar vivos e mortos. Assim, quando morrerem terão de prestar contas diante do tribunal de Cristo. Jesus foi constituído juiz dos vivos e dos mortos.

O verso 4 mostra que “eles” estão vivos, cometendo muitos pecados, e que “darão conta” a Deus. São os mesmos que cobrem os cristãos de calúnia. Essa passagem não parece tratar de ímpios que já estavam mortos.

 Vamos extrair o sentido do tendo em consideração as explicações dadas:

 Os quais hão de dar conta ao que está preparado para julgar os vivos e os mortos.

Porque por isto foi pregado o evangelho também aos mortos, para que, na verdade, fossem julgados segundo os homens na carne, mas vivessem segundo Deus em espírito.

 Quando o verso 5 afirma que Jesus está preparado para julgar os vivos e os mortos, o verso 6 começa explicando que esse foi o motivo do evangelho ter sido pregado aos mortos.

 Dessa forma, é possível que quando se diz: “vivessem segundo Deus em espírito”, isso se refira à vida da graça usufruída pelas santas almas à espera da ressurreição. De fato, a carta aos efésios afirma que Jesus subiu aos céus levando prisioneiros.

 Elas sofreram a morte, foram julgados segundo os homens na carne, mas o evangelho foi pregado a elas para que vivessem segundo Deus em espírito.

Diante disso, a explicação do livro mortalista não faz sentido:

É por isso que Pedro diz que a razão do evangelho ter sido pregado aos mortos é porque eles terão que prestar contas a Deus no dia do juízo, já que é justamente o fato deles terem sido evangelizados que os tornava indesculpáveis perante Deus.

Caso assim fosse, o evangelho não teria sido pregado aos mortos, já que eles estariam vivos no tempo em que ouviram a mensagem da salvação. O texto poderia ter dito que ‘por isso o evangelho foi pregado a eles’.

Não faz sentido dizer que os pecadores que agora estão perseguindo a Igreja deverão prestar contas as Deus pois foi por esse motivo que o evangelho foi pregado aos mortos! Na verdade, o evangelho é pregado sempre aos vivos. A única ocasião em que houve pregação aos mortos foi quando Jesus desceu à mansão dos mortos.

Voltemos ao texto e vejamos que a explicação do motivo do evangelho ter sido pregado aos mortos é que Jesus irá julgar vivos e mortos. Assim, os mortos ouviram o evangelho enquanto mortos. Os mortos que ouviram o evangelho para viver no espírito.

Agora, temos ocasião para duas coisas. A primeira é mostrar que a dualidade humana explica melhor os textos bíblicos, pois mantem a inteireza do ser, o holismo bíblico. No entanto, o holismo apregoado pelo mortalismo, que afirma que não há separação corpo e alma, esse possui certas falhas ao tentar explicar muitas passagens como está sendo provado no presente estudo.

Assim, o texto de Romanos 8, 10 afirma: “Ora, se Cristo está em vós, o corpo, em verdade, está morto pelo pecado, mas o Espírito vive pela justificação”. O corpo material, que sofre com a morte a degradação total, já está morto através do pecado. Essa parte material do ser humano é afetada pelo pecado, pela fraqueza da concupiscência, de forma mais brutal que o espírito, pois o verso 11 afirma que o Espírito Santo dará vida aos “corpos mortais”. Isso o mortalismo faz questão de negar, quando critica a ressurreição como sendo apenas a vida do corpo que volta.

Mas, na linguagem de Romanos 8, 11, temos que Deus dará vida aos corpos mortais. O texto afirma que no homem vivo o corpo está morto por causa do pecado e o espírito está vivo por causa da justificação. Na ressurreição, então, o corpo receberá a vida. Isso mostra a dualidade do ser humano, corpo e alma distintos.

Se o mortalismo afirma que não há separação, como explicar que o homem está morto no corpo, que ainda não recebeu redenção, mas vivo no espírito? Se o corpo só receberá a vida, pela glorificação, na ressurreição, e o espírito já está vivo, isso já explica o motivo dos mortos serem julgados na carne mas poderem viver no espírito segundo Deus, como está em 1 Pedro 4, 6.

Se o Espírito daquele que ressuscitou Jesus dos mortos habita em vós, ele, que ressuscitou Jesus Cristo dos mortos, também dará a vida aos vossos corpos mortais, pelo seu Espirito que habita em vós”.

O mortalismo explica que a antítese carne-espírito e carne-alma é apenas ética e não ontológica. Teríamos então que o corpo está eticamente morto e o espírito eticamente vivo. O mesmo ser está morto e vivo, morto quanto ao pecado e vivo quanto à justificação. É compreensível, e bastante plausível.

O que fica mais interessante, porém, é que o contexto todo trata da morte física, afirmando que Jesus ressurgiu dos mortos  e que a vida será dada aos corpos mortais. Se isso é apenas ético, então a vida será dada a vós inteiramente, já o corpo está morto pelo pecado e perecerá na morte física. E, então, o Espírito Santo irá ressuscitar o corpo, que é a pessoa inteira.

No entanto, se temos que o corpo está morto e o espírito está vivo, e que o Espírito Santo habita no salvo, então se vê que o Espírito Santo está no espírito do homem, na alma imortal, e não no corpo. Assim, através da habitação do Espírito na alma, haverá também a ressurreição do corpo que não possuía a vida, por causa do pecado, em primeiro lugar, e por causa da morte.

O espírito humano, por sua vez, na justificação, já recebe a vida, e portanto na morte continua com a vida da graça. Isso parece fazer maior sentido, quando se tem corpo e espírito como partes ontológicas.

É claro que o mortalismo reconhece que o espírito não é apenas o princípio de vida, mas também a fonte da vida psíquica e racional, como explica o dr. Samuele Bacchiocchi.

Mas, então, o Espírito Santo estaria vivificando o homem em sua mente e razão, enquanto que o corpo e suas moções estariam mortas. O homem, sendo indivisível, estaria tendo em si algo mortificado e algo vivificado. Essa mortificação então deveria atingi-lo todo, e a vivificação igualmente, o que tornaria algo contraditório.

Na morte, o que foi mortificado perece, e o ser é extinto. Para que serviu o espírito que estava vivo pela justificação? Para o mortalismo tudo desaparece na morte e volta na ressurreição. Então, os mortos não viveriam no espírito segundo Deus, já que não existiriam. Isso torna sem sentido a explicação clara da vida no espírito usufruída pelos mortos.

Se o corpo que ressuscitará é a pessoa inteira, já que não havia nada que sobrou na morte, se é apenas aspecto da pessoal total, então por que se diz que será dada a vida aos corpos na mesma passagem que contrasta o corpo morto em pecado e o espírito vivo em justificação? Se a pessoa inteira receberá a vida, todos os aspectos seriam vivificados. Porém, a passagem de Romanos 8, 11 afirma que o Espírito Santo que habita na pessoa regenerada faz o espírito viver, não o corpo, que receberá vida na ressurreição.

Somente na ressurreição se tem a “redenção do nosso corpo”, o que é mais uma frase que indica o sentido ontológico que o ético apenas.

Nessa concepção mortalista, onde o corpo é figuradamente mostrado como submisso à influência do pecado ou ao pode do Espírito, no sentido de que toda a pessoa está sendo referida, fica difícil entender que o corpo está morto, denotando a pessoa total estando morta, e o espírito está vivo, denotando a pessoa total estando viva. Parece não caber perfeitamente esse emprego figurado nessa passagem.

O corpo é corpo de pecado, corpo desta morte, em Romanos 6, 6, e 7, 24. Não parece ser somente no sentido de quando se torna instrumento do pecado. De fato, o corpo está sempre presente na vida humana, e o texto afirma que deve ser mortificado e que a redenção é esperada (cf. Rm 8, 23). O corpo é para o Senhor e o Senhor para o corpo, e Ele ressuscitará “a nós pelo seu poder”.

O dr. Bacchiochi afirma que o corpo deve ser renovado neste mundo, sendo isso a pessoa inteira, pois é templo do Espírito Santo, e ressuscitado no mundo por vir, sendo também a pessoa inteira (Imortalidade ou Ressurreição, p. 100).

No entanto, ainda não fica claro que a redenção em Romanos 8 é esperada para o corpo, já que o espírito já está vivo. Isso sugere que o monismo mortalista possui essas limitações.

O mortalismo ensina que o corpo é a pessoa inteira. As passagens que falam de corpo e espírito ou corpo e alma seriam apenas expressões de aspectos da pessoa. O imortalismo entende bem essas verdades, e os mortalistas precisam reconhecer que não há aí nenhuma prova contra a imortalidade da alma.

Quando Jesus afirma que o espírito está preparado e a carne é fraca, e São Paulo afirma que serve a Deus no espírito e ao pecado nos membros, essa noção é bem explicada pela perspectiva ética, visto que a dualidade humana também não separa drasticamente corpo e alma, pois o que atinge o corpo chega também à alma e vice versa.

Assim, os exemplos apresentados de corpo como pessoa integral, para defender um sentido ético do contraste corpo e alma, não difere do que é usado nos dias de hoje.

Desse modo, como o português há não muito tempo ainda utilizava almas para falar de pessoas, o corpo é citado hoje com o sentido de eu. O corpo como aparece em 1 Coríntios 13, 3 não apresenta diferença essencial do que temos como conceito.  Alguém que afirme cuidar do seu corpo está dizendo que cuida de si mesmo, como um todo.

O que a doutrina da dualidade da natureza humana explica melhor, sendo superior nesses casos, porém, sãos as passagens em que é possível ter experiências sem o corpo, como quando São Paulo teve a visão do céu e afirma que não sabe se estava no corpo ou fora dele.

Também quando é possível servir a Deus despido, ou seja, sem o corpo, ou quando os mortos vivem segundo Deus no espírito, quando na carne foram julgados pela morte.

Ainda, quando o apóstolo afirma que deseja partir e estar com Cristo, não é somente o “anseio de ver um fim para a sua angustiada existência e estar com Cristo”, pois o mesmo diz que o morrer é lucro, o que torna claro que na morte há encontro com Cristo, pois que no corpo ele está longe do Senhor, o que mostra que há separação corpo e alma, onde longe do corpo na morte é possível ter melhor união com Cristo.

Ainda que o mortalismo veja essa linguagem como poética de fé, e não de lógica da ciência, ela implica que de alguma forma há encontro com Cristo na morte. A perspectiva monista não explica tais coisas.

Para o mortalismo é impossível ter uma visão sem o corpo, como é impossível sair do corpo e estar com Cristo, como é impossível viver no espírito estando morto, pois a extinção do corpo extinguiria o espírito igualmente. Portanto, o mortalismo é uma visão limitada. De qualquer forma, o texto é claro de que o evangelho foi pregado aos mortos.

 Gledson Meireles.

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