Iniciamos a grande semana, a Semana Santa, onde comemoramos o centro da nossa fé, Jesus ressuscitado. Nos preparamos para a festa da Páscoa do Senhor.
São
Tiago: fé e obras
A questão da justificação
pela fé e pelas obras em São Paulo e em São Tiago é pacífica entre cristão católicos
e cristãos protestantes no que se refere à unidade entre os dois pensamentos, e
na diferença de enfoques de ambos. Não há contradição entre eles.
Também é pacífico o
entendimento de que São Paulo trata da fé que justifica e traz salvação, e São
Tiago fala da fé que frutifica em obras, após o homem ser salvo, pois ele
dirige-se aos cristãos, gente de fé.
Em uma apreciação protestante,
São Paulo fala da salvação pela fé somente e São Tiago fala de como a fé
somente é demonstrada pelas obras. Por outro lado, a interpretação católica é
que São Paulo trata da conversão do pecado, falando das obras antes da
conversão, que não contam em nada, e a fé como único meio de ser salvo.
Enquanto isso, São Tiago fala do cristão, já salvo, mostrando sua fé por meio
das obras.
Em termos assim colocados
não se percebe diferença essencial, ambas as explicações concluindo na vida de
fé e obras.
Franklin Ferreira citando
Franz A. O. Piper que diz que as obras humanas e a graça são como água e fogo,
está tratando da fé somente para fins de salvação.
Em outro lugar lembra afirmação
de Martinho Lutero no prefácio da Epístola aos Romanos, onde escreve que a fé e
as obras são inseparáveis como luz e fogo.
Nesse ponto, são duas coisas
diferentes, já que Franz fala da salvação, que não admite obras, que é doutrina
luterana, e Lutero, naquele momento, trata da fé do salvo, que exige obras.
Essas duas apreciações são
importantes para entender a doutrina protestante. É um paradoxo. Ao mesmo tempo
em que as obras são totalmente excluídas e devem ser pensadas como trapos não
valendo coisa alguma para a salvação, elas são exigidas e imprescindíveis na
vida do salvo, caso contrário não há salvação.
É nesse cenário que entramos
na santa Epístola de São Tiago para verificar diretamente na Palavra de Deus
qual o lugar das obras na vida do salvo, (1) se são apenas testemunhos da
veracidade da fé ou (2) se realmente são contadas como algo em comunhão com a
fé.
Antes, vejamos o que ensina
São Pedro, na primeira epístola. Um verso bastante citado pelos protestantes,
para elucidar a salvação pela fé, é 1 Pedro 1,23. Detenhamo-nos nessa passagem
por um instante, e entremos no texto sagrado de São Tiago.
Em toda a passagem de 1
Pedro 1,18-24, o apóstolo ensina que fomos resgatados pelo sangue de Cristo,
que temos fé em Deus por meio de Cristo, que em obediência purificamos nossas almas para praticar um amor sincero. Então afirma que fomos regenerados
pela Palavra de Deus. Já entrevemos de alguma forma a fé e obediência,
encontrada no ensino bíblico geral.
São Pedro inicia o capítulo
2 exortando para que os cristãos não vivam na malícia, na astúcia, na inveja e
em qualquer tipo de maledicência. E eis que no verso 2 apresenta o conceito de
“crescimento espiritual para a salvação”.
Essa noção é bastante conhecida no Catolicismo. Mas, vejamos mais adiante.
O verso 16 menciona a
liberdade, onde os cristãos vivem servindo a Deus. Nessa passagem alude àqueles
que tomam a liberdade para viver na malícia, aproveitando-se da lei da liberdade,
que é citada em Tiago 2, 25.
O contexto de obras é muito
convincente. Fala daqueles que não obedecem à Palavra, e que esse é o destino
dos ímpios. Após isso, no verso 17, temos as obras, como por exemplo ser
educados para com o próximo, amar os irmãos, temer a Deus e respeitar o rei.
E o
verso 20 traz a ideia do mérito. Mérito na doutrina católica não é algo que
surge do homem e convence a Deus, que cria uma dívida para com Deus. Pelo
contrário, é a ação da graça no homem que coopera livremente e fortalecido pela
graça, e que após isso pode contar com as benções de Deus. Essa é a noção que
São Tiago afirma, em outras palavras: “Que
mérito teria alguém se suportasse pacientemente açoites por ter praticado o mal?
Ao contrário, se é por ter feito o bem que sois maltratados, e se o suportardes
pacientemente, isso é coisa agradável aos olhos de Deus.”
Na conduta que agrada a Deus, a “coisa agradável”,
temos o mérito cristão. Sofrer com paciência a injustiça que outros causam, é
algo que agrada a Deus. O agrado a Deus volta Sua face ao homem, dando-lhe
merecimento. Esse é o mérito que vem de Deus. Por isso, à pergunta no verso 20:
“Que mérito tem?” a resposta é
nenhum, enquanto que na segunda parte “Ao
contrário (...) se suportardes
pacientemente”, redunda em ‘encontrareis o mérito diante do Senhor’. É a
graça de Deus que confere o mérito ao homem.
Para aquele que sofre por
ter praticado o mal, a justiça está sendo aplicada, e não há qualquer mérito da
sua parte. Ao passo que o que sofre por ter feito o bem, e o aceita com
paciência, Deus o retribui na Sua graça.
Em todo o contexto, ao
ingressar no texto de São Tiago, temos a obra que cumpre a justiça de Deus.
Nenhuma obra humana o pode fazer. No entanto, trabalhando na graça, a noção de
obra de justiça proveniente da graça já é despertada em Tiago 1,20, que afirma
“a ira do homem não cumpre a justiça de Deus”. Isso alude à realidade de que a
obediência a Deus é parte do cumprimento da Sua justiça.
No verso 21 a rejeição da
impureza, da malícia e o recebimento da Palavra com mansidão é atrelada à
salvação. É a Palavra de Deus recebida que pode salvar. Interessante isso que a
Palavra de Deus afirma: “que pode” salvar. É tradução do grego δυνάμενον
(dynamenon, ser capaz).
O calvinismo treme diante de
ideia de condicionamento ao
repetir incessantemente que a Palavra de Deus não traz condição de salvação,
mas salva eficazmente. Ninguém duvida desse poder. No entanto, ao afirmar que a
“palavra de Deus semeada, que pode salvar as vossas almas”, temos uma
capacidade que evoca um condicionamento que é presente na Palavra de Deus, e
que parece não coadunar com o sistema teológico reformado. A Palavra salva, desde
que o homem a recebe em obediência.
Essa noção ainda é
desenvolvida adiante, no acima aludido verso 25, afirmando da bondade daqueles
que meditam “a Lei perfeita da liberdade e nela persevera”. É uma meditação na
Lei de Deus, e uma perseverança nela, na prática, em obras, e afirma que “este
será feliz no seu proceder”. Entendendo isso, é o mesmo que afirmar que a
Palavra semeada que salva vossas almas.
Nesse contexto de obras em
obediência à Lei, segue a definição de religião pura, que exclui os que não refreiam
língua e vivem na corrupção do mundo, mas que é daquele que visita órfãos e
viúvas e conserva-se puro dessa corrupção. (cf. Tiago 1,26-7).
Continuando a tratar da
vivência cristã, chega o verso 14 que questiona eloquentemente sobre o proveito
da fé sem obras, e se isso poderá salvá-lo! O tema da salvação está sempre
presente.
Quando a doutrina católica
afirma que as obras que antecedem a fé são inúteis, mas que as obras que nascem
da fé são salvíficas, o contexto indica esse entendimento.
Por isso, em Tiago 2, 9
afirma que o pecado da distinção de pessoas levará o pecador a ser considerado
“transgressor” da Lei. Está tratando assim da vida de cristãos. Assim é que o
verso 12 ensina que devemos viver como quem será julgado pela Lei da Liberdade.
Tenhamos a Lei de Deus em mente, e procedamos segundo ela.
Nesse sentido também temos a
Deus o Juiz que pode salvar a perder quem não observa a Lei. O texto refere-se
à Lei que o cristão deve obedecer: quem fala mal do irmão não obedece a Lei.
(cf. Tiago 4, 11.12)
Não haverá aqui algo diverso
da noção de que as obras apenas tem o
caráter de santificar e nunca de salvar ou condenar? Lembrando que em São Tiago
a fé é considerada em si mesma, como está em Tg 2,19, que é a fé meramente
intelectual.
E novamente lembramos da
Epístola de São Paulo aos Gálatas, que apresenta a mesma doutrina, falando da
liberdade cristã em Gl 2,4.
Temos então oportunidade de corroborar
ambos os enfoques sobre a justificação de Abraão, em Tiago 2, 23 e Romanos 4.3.
São Tiago trata da obediência de Abraão enquanto São Paulo fala da sua
conversão.
Considerando tudo isso,
quando se diz, com George W. Knight III (apud FERREIRA) que Tiago fala
“daqueles que parecem confessar aceitação do Evangelho” e que as obras de
Abraão “não são para obter aprovação de Deus”, o contexto da epístola não
corrobora totalmente essa interpretação. Ela flui da doutrina reformada, e não
das Escrituras.
De fato, não há indicação de
que se trata de quem ‘parece confessar o evangelho’, pois a fé que S. Tiago
mostra em 1,19 é a fé em Deus, que até os demônios têm. O que fala a ela é a
obediência, que a completa.
Por isso, não se trata de
que obras não são para aprovação de Deus, como se não tivesse qualquer ligação
com a salvação, mas que elas são necessárias para acompanhar a fé. O mesmo que
são Paulo afirma de semear no Espírito, tendo como fruto a vida eterna (cf. Gl
6,8). Que significa essa comparação de semear e colher fruto? O apóstolo trata
da importância de praticar boas obras. E biblicamente o fruto dessa semeadura
no Espírito é a vida eterna, que é o mesmo que afirmar que o fruto é a
salvação.
Voltando à noção de fé que
inclui o conceito de obras (que praticamente não há o que reprovar) deve-se ter
em mente que melhor é concluir com a Bíblia, de que fé e obras são duas coisas
distintas, tendo em vista mais clara compreensão das obras na vida cristã.
Elas não contam para a
justificação inicial, mas para a salvação final. Para o protestante elas não
influem nem antes nem em parte alguma do processo. No entanto, a Palavra de
Deus afirma que a fé atua sinergisticamente
em relação às obras, e que as obras são feitas perfeitas pela fé. (cf. Tiago 2,22) Eis o ensino do Evangelho.
FONTE: FERREIRA, Franklin.
Pilares da Fé: a atualidade da mensagem da reforma. São Paulo, Vida Nova, 2017.
Gledson Meireles.
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