domingo, 5 de abril de 2020

São Tiago: fé e obras

Iniciamos a grande semana, a Semana Santa, onde comemoramos o centro da nossa fé, Jesus ressuscitado. Nos preparamos para a festa da Páscoa do Senhor.
 


São Tiago: fé e obras

A questão da justificação pela fé e pelas obras em São Paulo e em São Tiago é pacífica entre cristão católicos e cristãos protestantes no que se refere à unidade entre os dois pensamentos, e na diferença de enfoques de ambos. Não há contradição entre eles.

Também é pacífico o entendimento de que São Paulo trata da fé que justifica e traz salvação, e São Tiago fala da fé que frutifica em obras, após o homem ser salvo, pois ele dirige-se aos cristãos, gente de fé.

Em uma apreciação protestante, São Paulo fala da salvação pela fé somente e São Tiago fala de como a fé somente é demonstrada pelas obras. Por outro lado, a interpretação católica é que São Paulo trata da conversão do pecado, falando das obras antes da conversão, que não contam em nada, e a fé como único meio de ser salvo. Enquanto isso, São Tiago fala do cristão, já salvo, mostrando sua fé por meio das obras.

Em termos assim colocados não se percebe diferença essencial, ambas as explicações concluindo na vida de fé e obras.

Franklin Ferreira citando Franz A. O. Piper que diz que as obras humanas e a graça são como água e fogo, está tratando da fé somente para fins de salvação.

Em outro lugar lembra afirmação de Martinho Lutero no prefácio da Epístola aos Romanos, onde escreve que a fé e as obras são inseparáveis como luz e fogo.

Nesse ponto, são duas coisas diferentes, já que Franz fala da salvação, que não admite obras, que é doutrina luterana, e Lutero, naquele momento, trata da fé do salvo, que exige obras.

Essas duas apreciações são importantes para entender a doutrina protestante. É um paradoxo. Ao mesmo tempo em que as obras são totalmente excluídas e devem ser pensadas como trapos não valendo coisa alguma para a salvação, elas são exigidas e imprescindíveis na vida do salvo, caso contrário não há salvação.

É nesse cenário que entramos na santa Epístola de São Tiago para verificar diretamente na Palavra de Deus qual o lugar das obras na vida do salvo, (1) se são apenas testemunhos da veracidade da fé ou (2) se realmente são contadas como algo em comunhão com a fé.

Antes, vejamos o que ensina São Pedro, na primeira epístola. Um verso bastante citado pelos protestantes, para elucidar a salvação pela fé, é 1 Pedro 1,23. Detenhamo-nos nessa passagem por um instante, e entremos no texto sagrado de São Tiago.

Em toda a passagem de 1 Pedro 1,18-24, o apóstolo ensina que fomos resgatados pelo sangue de Cristo, que temos fé em Deus por meio de Cristo, que em obediência purificamos nossas almas para praticar um amor sincero. Então afirma que fomos regenerados pela Palavra de Deus. Já entrevemos de alguma forma a fé e obediência, encontrada no ensino bíblico geral.

São Pedro inicia o capítulo 2 exortando para que os cristãos não vivam na malícia, na astúcia, na inveja e em qualquer tipo de maledicência. E eis que no verso 2 apresenta o conceito de “crescimento espiritual para a salvação”. Essa noção é bastante conhecida no Catolicismo. Mas, vejamos mais adiante.

O verso 16 menciona a liberdade, onde os cristãos vivem servindo a Deus. Nessa passagem alude àqueles que tomam a liberdade para viver na malícia, aproveitando-se da lei da liberdade, que é citada em Tiago 2, 25.

O contexto de obras é muito convincente. Fala daqueles que não obedecem à Palavra, e que esse é o destino dos ímpios. Após isso, no verso 17, temos as obras, como por exemplo ser educados para com o próximo, amar os irmãos, temer a Deus e respeitar o rei.
E o verso 20 traz a ideia do mérito. Mérito na doutrina católica não é algo que surge do homem e convence a Deus, que cria uma dívida para com Deus. Pelo contrário, é a ação da graça no homem que coopera livremente e fortalecido pela graça, e que após isso pode contar com as benções de Deus. Essa é a noção que São Tiago afirma, em outras palavras: “Que mérito teria alguém se suportasse pacientemente açoites por ter praticado o mal? Ao contrário, se é por ter feito o bem que sois maltratados, e se o suportardes pacientemente, isso é coisa agradável aos olhos de Deus.”

Na conduta que agrada a Deus, a “coisa agradável”, temos o mérito cristão. Sofrer com paciência a injustiça que outros causam, é algo que agrada a Deus. O agrado a Deus volta Sua face ao homem, dando-lhe merecimento. Esse é o mérito que vem de Deus. Por isso, à pergunta no verso 20: “Que mérito tem?” a resposta é nenhum, enquanto que na segunda parte “Ao contrário (...) se suportardes pacientemente”, redunda em ‘encontrareis o mérito diante do Senhor’. É a graça de Deus que confere o mérito ao homem.

Para aquele que sofre por ter praticado o mal, a justiça está sendo aplicada, e não há qualquer mérito da sua parte. Ao passo que o que sofre por ter feito o bem, e o aceita com paciência, Deus o retribui na Sua graça.

Em todo o contexto, ao ingressar no texto de São Tiago, temos a obra que cumpre a justiça de Deus. Nenhuma obra humana o pode fazer. No entanto, trabalhando na graça, a noção de obra de justiça proveniente da graça já é despertada em Tiago 1,20, que afirma “a ira do homem não cumpre a justiça de Deus”. Isso alude à realidade de que a obediência a Deus é parte do cumprimento da Sua justiça.

No verso 21 a rejeição da impureza, da malícia e o recebimento da Palavra com mansidão é atrelada à salvação. É a Palavra de Deus recebida que pode salvar. Interessante isso que a Palavra de Deus afirma: “que pode” salvar. É tradução do grego δυνάμενον (dynamenon, ser capaz).

O calvinismo treme diante de ideia de condicionamento ao repetir incessantemente que a Palavra de Deus não traz condição de salvação, mas salva eficazmente. Ninguém duvida desse poder. No entanto, ao afirmar que a “palavra de Deus semeada, que pode salvar as vossas almas”, temos uma capacidade que evoca um condicionamento que é presente na Palavra de Deus, e que parece não coadunar com o sistema teológico reformado. A Palavra salva, desde que o homem a recebe em obediência.

Essa noção ainda é desenvolvida adiante, no acima aludido verso 25, afirmando da bondade daqueles que meditam “a Lei perfeita da liberdade e nela persevera”. É uma meditação na Lei de Deus, e uma perseverança nela, na prática, em obras, e afirma que “este será feliz no seu proceder”. Entendendo isso, é o mesmo que afirmar que a Palavra semeada que salva vossas almas.

Nesse contexto de obras em obediência à Lei, segue a definição de religião pura, que exclui os que não refreiam língua e vivem na corrupção do mundo, mas que é daquele que visita órfãos e viúvas e conserva-se puro dessa corrupção. (cf. Tiago 1,26-7).

Continuando a tratar da vivência cristã, chega o verso 14 que questiona eloquentemente sobre o proveito da fé sem obras, e se isso poderá salvá-lo! O tema da salvação está sempre presente.

Quando a doutrina católica afirma que as obras que antecedem a fé são inúteis, mas que as obras que nascem da fé são salvíficas, o contexto indica esse entendimento.

Por isso, em Tiago 2, 9 afirma que o pecado da distinção de pessoas levará o pecador a ser considerado “transgressor” da Lei. Está tratando assim da vida de cristãos. Assim é que o verso 12 ensina que devemos viver como quem será julgado pela Lei da Liberdade. Tenhamos a Lei de Deus em mente, e procedamos segundo ela.

Nesse sentido também temos a Deus o Juiz que pode salvar a perder quem não observa a Lei. O texto refere-se à Lei que o cristão deve obedecer: quem fala mal do irmão não obedece a Lei. (cf. Tiago 4, 11.12)

Não haverá aqui algo diverso da noção de que as obras apenas tem o caráter de santificar e nunca de salvar ou condenar? Lembrando que em São Tiago a fé é considerada em si mesma, como está em Tg 2,19, que é a fé meramente intelectual.

E novamente lembramos da Epístola de São Paulo aos Gálatas, que apresenta a mesma doutrina, falando da liberdade cristã em Gl 2,4.

Temos então oportunidade de corroborar ambos os enfoques sobre a justificação de Abraão, em Tiago 2, 23 e Romanos 4.3. São Tiago trata da obediência de Abraão enquanto São Paulo fala da sua conversão.

Considerando tudo isso, quando se diz, com George W. Knight III (apud FERREIRA) que Tiago fala “daqueles que parecem confessar aceitação do Evangelho” e que as obras de Abraão “não são para obter aprovação de Deus”, o contexto da epístola não corrobora totalmente essa interpretação. Ela flui da doutrina reformada, e não das Escrituras.

De fato, não há indicação de que se trata de quem ‘parece confessar o evangelho’, pois a fé que S. Tiago mostra em 1,19 é a fé em Deus, que até os demônios têm. O que fala a ela é a obediência, que a completa.

Por isso, não se trata de que obras não são para aprovação de Deus, como se não tivesse qualquer ligação com a salvação, mas que elas são necessárias para acompanhar a fé. O mesmo que são Paulo afirma de semear no Espírito, tendo como fruto a vida eterna (cf. Gl 6,8). Que significa essa comparação de semear e colher fruto? O apóstolo trata da importância de praticar boas obras. E biblicamente o fruto dessa semeadura no Espírito é a vida eterna, que é o mesmo que afirmar que o fruto é a salvação.

Voltando à noção de fé que inclui o conceito de obras (que praticamente não há o que reprovar) deve-se ter em mente que melhor é concluir com a Bíblia, de que fé e obras são duas coisas distintas, tendo em vista mais clara compreensão das obras na vida cristã.

Elas não contam para a justificação inicial, mas para a salvação final. Para o protestante elas não influem nem antes nem em parte alguma do processo. No entanto, a Palavra de Deus afirma que a fé atua sinergisticamente em relação às obras, e que as obras são feitas perfeitas pela fé. (cf. Tiago 2,22) Eis o ensino do Evangelho.

FONTE: FERREIRA, Franklin. Pilares da Fé: a atualidade da mensagem da reforma. São Paulo, Vida Nova, 2017.
Gledson Meireles.

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