Santo Irineu foi bispo
de Lyon. É considerado o maior dos padres dessa época, sendo uma ligação entre
os padres apostólicos e as escolas teológicas que vieram mais tarde (cf. Lopes,
2014).
Portanto, sua autoridade
como homem apostólico é tamanha. É tradicionalmente sabido que Santo Irineu
ensinou a imortalidade da alma, ou seja, a mesma doutrina das Escrituras, e que
os demais padres ensinaram o mesmo. É suficientemente clara sua posição a esse
respeito.
No entanto, o livro Os Pais da Igreja contra a imortalidade da
alma, no capítulo 17, afirma que apenas o primeiro livro da obra Contra as Heresias
é encontrado em grego, e que os demais são traduções latinas, e por isso afirma
que essas traduções podem ter sido corrompidas.
O motivo disso é que as
traduções foram feitas mais tarde, onde supostamente teria ocorrido mudança
doutrinal, e a Igreja já estaria ensinando por toda parte a imortalidade da
alma, fazendo com que certas passagens da obra de Irineu parecesse ensinar que
a alma é imortal.
Essa suspeita leva o leitor
a desconfiar dos 4 livros de tradução latina!, como se os mesmos pudessem ter
sido pelo menos “sutilmente corrompidos intencionalmente”, ficando apenas o
primeiro livro, que, na opinião do autor, talvez não o tenha sido. Não há
qualquer indicação de que tenha havido falsificação, erro de tradução, e
qualquer coisa do tipo. Ou seja, não há qualquer indício de erro de tradução
nas obras, nem muito menos de falsificação, mas ainda assim é deixada uma
dúvida no ar.
Então, passa a defender a
tese de que Santo Irineu ensinou mais o aniquilacionismo do que da doutrina do
estado intermediário, sendo esse último o que equivale a crer na imortalidade
da alma. Mas, isso seria uma contradição patente em toda a obra.
Embora o autor afirme que
muitas vezes o “aniquilacionismo” está “evidente” nas “entrelinhas”, ficando difícil
para um tradutor corromper o texto, fazendo com que o mesmo escape da fraude,
ele cita tantas passagens, que teria esse sentido, que é praticamente
impossível tê-las na conta de entrelinhas. Elas são abundantes, formam uma
clareza considerável, e só precisam ser interpretadas corretamente. A pergunta
é: essas passagens ensinam ou não o aniquilacionismo?
Aos que amam a Deus é
conferida a comunhão com Deus, e aos que se separaram de Deus é feita a
separação, que eles mesmos escolheram. E Santo Irineu explica que “separação de
Deus é morte” (Livro 5, 27, 2)
A linguagem de Santo Irineu:
“Ele (Cristo) habitou no lugar onde os mortos estavam”. Cita Mt 12, 40 e Ef 4,
9. Ele critica a opinião dos que dizem que “as partes mais baixas” se referem a
este mundo, para onde iria o corpo, e a parte mais íntima iria para o céu. Então,
menciona o lugar “onde as almas dos mortos estavam”. Assim, afirma que a alma
vai para o lugar invisível.
Essa e outras passagens que serão
mostradas a seguir formam a prova de que Santo Irineu ensinou a imortalidade da
alma como os demais padres da Igreja.
No livro IV, 39, 4 ele fala
dos réprobos que já estão em lugares de trevas preparados para eles, já que
eles mesmos o escolheram.
As indicações de que Santo
Irineu ensinava o condicionalismo começam com uma grande citação de Irineu, do
livro II, 34, 3. A interpretação é feita no sentido de que o texto afirma a
aniquilação do ser inteiro, e não a imortalidade da alma, pois afirma que “não
irão receber o comprimento de dias”, e que os maus “privam-se da continuidade
para todo o sempre”. Santo Irineu estaria afirmando que os jutos irão receber a
vida eterna e os ímpios não.
De fato, lendo essas
passagens, ainda mais como feitas acima, parece que a ideia é mesmo de um fim
da existência dos ímpios. Mesmo o parágrafo inteiro, com essas ênfases, como é
feita no livro, dá a entender que se trata mesmo disso. O autor então está
certo de que não há dúvida quanto a isso. Mas, vejamos a interpretação do texto
inteiro, e seu devido contexto.
Santo Irineu está tratando
de duas doutrinas opostas. Uma afirma que as almas são eternas, ou seja, não
têm princípio e nem fim, e por isso existirão para sempre. A outra linha afirma
que se as almas possuem princípio, elas devem cessar de existir com o corpo.
Não podem viver para sempre.
Então, o grande apologista
afirma que somente Deus não tem princípio, e somente Ele dá a vida. Entretanto,
Deus deu a vida à alma, e elas continuam a existir, não passando de corpo para
corpo, mas vivendo após a morte do corpo, com memória e forma pela qual podem
ser reconhecidas. Assim, cita o rico e Lázaro, no texto do Evangelho de Lucas,
capítulo 16, versículo 9. Por isso, não se trata de má tradução, de corrupção
de texto, mas é um entendimento profundo, com citações adequadas e arrazoados
sérios e lógicos, afirmando a imortalidade da alma. Esse é o ensino dos
primeiros versos do livro II, 34.
Para entender o pensando do
apologista, deve-se ainda ler com mais atenção. Ele afirma que as almas
lembram-se dos feitos no corpo, quando ainda no estado de existência. Ou seja,
está falando que agora não mais existem como pessoas vivas, sendo esse o
sentido da “existência” aqui. Quem leu a reflexão de Gêneses 2,7, está
preparado para entender o que Santo Irineu fala aqui.
Terminando o capítulo, Santo
Irineu explica que o corpo não é a alma. Assim, ele desfaz a tese mortalista.
Continuando, afirma que a alma não é a vida. E aqui muitos mortalistas entram
em choque, se pensarem bem. Porque uma vez que é a alma que dá vida ao corpo, o
apologista afirma que ela não é a vida. Como entender¿ O fato é que ele está
afirmando que somente Deus é a fonte da vida, e a vida foi comunicada à alma.
Desse modo, a alma foi criada por Deus, não existia antes, e continuará
existindo segundo a vontade de Deus, já que Ele pôs vida nela. Termina, assim,
explicando a criação e a continuidade de duração da alma.
Resta ainda, para refutar
totalmente a leitura condicionalista dessa passagem, provar mais diretamente
que os ímpios não serão destruídos. Para isso, basta voltar à citação do Livro
IV, 20, 6, e apontar que a vida à qual Santo Irineu se refere-se é a vida espiritual,
no verso 5, dada pela graça, e que por isso afirma que Deus vivifica quem o
recebe pela fé, e que aquele que o vê recebe a imortalidade, citando
Deuteronômio 5, 24 para fundamentar sua exposição. Não trata, portanto, da
extinção dos réprobos. O dom da imortalidade é a vida eterna em felicidade com
Deus. Não significa que os demais serão aniquilados, tirados da existência. Por
isso, é necessária boa interpretação, pois não é inadequada a linguagem de
Santo Irineu.
As citações do Livro III,
19, 1 e 7, 1 sobre a incorruptibilidade e a imortalidade dos salvos, e a falta
desses dons aos ímpios, não significa a privação da existência desses. Talvez,
o livro IV, 39,2, citado como explicação “Contra aqueles que pensavam que os
ímpios também existiriam para sempre” (p. 122), na nota 174, seja o contexto
para toda a questão, pois fala diretamente dos ímpios. É o momento oportuno
para responder a isso.
O livro começa com a
explicação sobre o conhecimento do bem e do mal Não obedecer a Deus é o mau, a
morte. Obedecê-Lo é a preservação da vida, entendendo ser o estado de graça, a
vida espiritual.
Após isso, fala sobre a
liberdade do homem em obedecer, a que Deus não impõe Sua Vontade a ninguém e
que o homem tem o poder de escolha. Assim, passa a explicar que Deus preparou
moradas para ambos os tipos de pessoas. Isso significa que há duas habitações.
Novamente, não é problema de tradução, como alguém poderia insinuar, mas uma
argumentação bem detalhada que leva a uma conclusão certa e clara.
Aí, das habitações afirma que
uma é da luz, para aqueles que buscam a luz de Deus, e a outra é das trevas,
aos que escolheram fugir da luz, habitando em um lugar privado de coisas boas.
Dessa forma, o texto que
seria uma explicação aos que pensavam na eternidade dos ímpios: “Novamente,
como pode ser imortal, quem em sua natureza mortal não obedece ao seu Criador?”
De fato, Santo Irineu está claramente mostrando as habitações dos salvos e dos
condenados, o que equivale a dizer o céu o e o inferno, e não dá indicações de
que os réprobos deixarão de existir. Portanto, essa interpretação revela não
ter o entendimento da teologia de Santo Irineu.
Se Irineu fosse um
condicionalista, sua doutrina seria oposta a de Tertuliano, que viveu em seu
tempo, e de Santo Agostinho, no final do 4º século. Mas não. A doutrina é idêntica.
Apenas a linguagem é outra.
Há uma citação de Constable,
o qual acredita ser a doutrina de Irineu oposta a de Tertuliano, pois do
contrário aquele teria usado linguagem semelhante. Com certeza o autor está
errado.
As comparações de punição
com aquelas de Nadab e Abiú, Coré, Datan e Abiram, e da família de Jeroboão são
feitas no sentido metafórico, e não podem negar o que foi dito acima, de que há
um lugar para os condenados, e não se fala de extinção do ser. Assim, quando
diz que no inferno ou hades estarão os condenados assim como foram tragados
Coré, Datan e Abiram, a imagem sugestiva do inferno é clara.
No final, o autor afirma que
os livros de tradução duvidosa podem dar a impressão da crença no estado
intermediário, mas não podem ser usados honestamente para fundamentar a
doutrina da alma imortal, por entender as citações como ensinando a aniquilação
dos não-salvos.
No entanto, foi provado que
o ensino está de acordo com a fé na imortalidade da alma, e não introduz o
condicionalismo, nem mesmo com as citações apontadas.
Gledson Meireles.