sexta-feira, 30 de novembro de 2018

Imortalidade da alma: Santo Irineu

Santo Irineu foi bispo de Lyon. É considerado o maior dos padres dessa época, sendo uma ligação entre os padres apostólicos e as escolas teológicas que vieram mais tarde (cf. Lopes, 2014).
 
Portanto, sua autoridade como homem apostólico é tamanha. É tradicionalmente sabido que Santo Irineu ensinou a imortalidade da alma, ou seja, a mesma doutrina das Escrituras, e que os demais padres ensinaram o mesmo. É suficientemente clara sua posição a esse respeito.
 

No entanto, o livro Os Pais da Igreja contra a imortalidade da alma, no capítulo 17, afirma que apenas o primeiro livro da obra Contra as Heresias é encontrado em grego, e que os demais são traduções latinas, e por isso afirma que essas traduções podem ter sido corrompidas.
O motivo disso é que as traduções foram feitas mais tarde, onde supostamente teria ocorrido mudança doutrinal, e a Igreja já estaria ensinando por toda parte a imortalidade da alma, fazendo com que certas passagens da obra de Irineu parecesse ensinar que a alma é imortal.
Essa suspeita leva o leitor a desconfiar dos 4 livros de tradução latina!, como se os mesmos pudessem ter sido pelo menos “sutilmente corrompidos intencionalmente”, ficando apenas o primeiro livro, que, na opinião do autor, talvez não o tenha sido. Não há qualquer indicação de que tenha havido falsificação, erro de tradução, e qualquer coisa do tipo. Ou seja, não há qualquer indício de erro de tradução nas obras, nem muito menos de falsificação, mas ainda assim é deixada uma dúvida no ar.
Então, passa a defender a tese de que Santo Irineu ensinou mais o aniquilacionismo do que da doutrina do estado intermediário, sendo esse último o que equivale a crer na imortalidade da alma. Mas, isso seria uma contradição patente em toda a obra.
Embora o autor afirme que muitas vezes o “aniquilacionismo” está “evidente” nas “entrelinhas”, ficando difícil para um tradutor corromper o texto, fazendo com que o mesmo escape da fraude, ele cita tantas passagens, que teria esse sentido, que é praticamente impossível tê-las na conta de entrelinhas. Elas são abundantes, formam uma clareza considerável, e só precisam ser interpretadas corretamente. A pergunta é: essas passagens ensinam ou não o aniquilacionismo?
Aos que amam a Deus é conferida a comunhão com Deus, e aos que se separaram de Deus é feita a separação, que eles mesmos escolheram. E Santo Irineu explica que “separação de Deus é morte” (Livro 5, 27, 2)
A linguagem de Santo Irineu: “Ele (Cristo) habitou no lugar onde os mortos estavam”. Cita Mt 12, 40 e Ef 4, 9. Ele critica a opinião dos que dizem que “as partes mais baixas” se referem a este mundo, para onde iria o corpo, e a parte mais íntima iria para o céu. Então, menciona o lugar “onde as almas dos mortos estavam”. Assim, afirma que a alma vai para o lugar invisível.
Essa e outras passagens que serão mostradas a seguir formam a prova de que Santo Irineu ensinou a imortalidade da alma como os demais padres da Igreja.
No livro IV, 39, 4 ele fala dos réprobos que já estão em lugares de trevas preparados para eles, já que eles mesmos o escolheram.
As indicações de que Santo Irineu ensinava o condicionalismo começam com uma grande citação de Irineu, do livro II, 34, 3. A interpretação é feita no sentido de que o texto afirma a aniquilação do ser inteiro, e não a imortalidade da alma, pois afirma que “não irão receber o comprimento de dias”, e que os maus “privam-se da continuidade para todo o sempre”. Santo Irineu estaria afirmando que os jutos irão receber a vida eterna e os ímpios não.
De fato, lendo essas passagens, ainda mais como feitas acima, parece que a ideia é mesmo de um fim da existência dos ímpios. Mesmo o parágrafo inteiro, com essas ênfases, como é feita no livro, dá a entender que se trata mesmo disso. O autor então está certo de que não há dúvida quanto a isso. Mas, vejamos a interpretação do texto inteiro, e seu devido contexto.
Santo Irineu está tratando de duas doutrinas opostas. Uma afirma que as almas são eternas, ou seja, não têm princípio e nem fim, e por isso existirão para sempre. A outra linha afirma que se as almas possuem princípio, elas devem cessar de existir com o corpo. Não podem viver para sempre.
Então, o grande apologista afirma que somente Deus não tem princípio, e somente Ele dá a vida. Entretanto, Deus deu a vida à alma, e elas continuam a existir, não passando de corpo para corpo, mas vivendo após a morte do corpo, com memória e forma pela qual podem ser reconhecidas. Assim, cita o rico e Lázaro, no texto do Evangelho de Lucas, capítulo 16, versículo 9. Por isso, não se trata de má tradução, de corrupção de texto, mas é um entendimento profundo, com citações adequadas e arrazoados sérios e lógicos, afirmando a imortalidade da alma. Esse é o ensino dos primeiros versos do livro II, 34.
Para entender o pensando do apologista, deve-se ainda ler com mais atenção. Ele afirma que as almas lembram-se dos feitos no corpo, quando ainda no estado de existência. Ou seja, está falando que agora não mais existem como pessoas vivas, sendo esse o sentido da “existência” aqui. Quem leu a reflexão de Gêneses 2,7, está preparado para entender o que Santo Irineu fala aqui.
Terminando o capítulo, Santo Irineu explica que o corpo não é a alma. Assim, ele desfaz a tese mortalista. Continuando, afirma que a alma não é a vida. E aqui muitos mortalistas entram em choque, se pensarem bem. Porque uma vez que é a alma que dá vida ao corpo, o apologista afirma que ela não é a vida. Como entender¿ O fato é que ele está afirmando que somente Deus é a fonte da vida, e a vida foi comunicada à alma. Desse modo, a alma foi criada por Deus, não existia antes, e continuará existindo segundo a vontade de Deus, já que Ele pôs vida nela. Termina, assim, explicando a criação e a continuidade de duração da alma.
Resta ainda, para refutar totalmente a leitura condicionalista dessa passagem, provar mais diretamente que os ímpios não serão destruídos. Para isso, basta voltar à citação do Livro IV, 20, 6, e apontar que a vida à qual Santo Irineu se refere-se é a vida espiritual, no verso 5, dada pela graça, e que por isso afirma que Deus vivifica quem o recebe pela fé, e que aquele que o vê recebe a imortalidade, citando Deuteronômio 5, 24 para fundamentar sua exposição. Não trata, portanto, da extinção dos réprobos. O dom da imortalidade é a vida eterna em felicidade com Deus. Não significa que os demais serão aniquilados, tirados da existência. Por isso, é necessária boa interpretação, pois não é inadequada a linguagem de Santo Irineu.
As citações do Livro III, 19, 1 e 7, 1 sobre a incorruptibilidade e a imortalidade dos salvos, e a falta desses dons aos ímpios, não significa a privação da existência desses. Talvez, o livro IV, 39,2, citado como explicação “Contra aqueles que pensavam que os ímpios também existiriam para sempre” (p. 122), na nota 174, seja o contexto para toda a questão, pois fala diretamente dos ímpios. É o momento oportuno para responder a isso.
O livro começa com a explicação sobre o conhecimento do bem e do mal Não obedecer a Deus é o mau, a morte. Obedecê-Lo é a preservação da vida, entendendo ser o estado de graça, a vida espiritual.
Após isso, fala sobre a liberdade do homem em obedecer, a que Deus não impõe Sua Vontade a ninguém e que o homem tem o poder de escolha. Assim, passa a explicar que Deus preparou moradas para ambos os tipos de pessoas. Isso significa que há duas habitações. Novamente, não é problema de tradução, como alguém poderia insinuar, mas uma argumentação bem detalhada que leva a uma conclusão certa e clara.
Aí, das habitações afirma que uma é da luz, para aqueles que buscam a luz de Deus, e a outra é das trevas, aos que escolheram fugir da luz, habitando em um lugar privado de coisas boas.
Dessa forma, o texto que seria uma explicação aos que pensavam na eternidade dos ímpios: “Novamente, como pode ser imortal, quem em sua natureza mortal não obedece ao seu Criador?” De fato, Santo Irineu está claramente mostrando as habitações dos salvos e dos condenados, o que equivale a dizer o céu o e o inferno, e não dá indicações de que os réprobos deixarão de existir. Portanto, essa interpretação revela não ter o entendimento da teologia de Santo Irineu.
Se Irineu fosse um condicionalista, sua doutrina seria oposta a de Tertuliano, que viveu em seu tempo, e de Santo Agostinho, no final do 4º século. Mas não. A doutrina é idêntica. Apenas a linguagem é outra.
Há uma citação de Constable, o qual acredita ser a doutrina de Irineu oposta a de Tertuliano, pois do contrário aquele teria usado linguagem semelhante. Com certeza o autor está errado.
As comparações de punição com aquelas de Nadab e Abiú, Coré, Datan e Abiram, e da família de Jeroboão são feitas no sentido metafórico, e não podem negar o que foi dito acima, de que há um lugar para os condenados, e não se fala de extinção do ser. Assim, quando diz que no inferno ou hades estarão os condenados assim como foram tragados Coré, Datan e Abiram, a imagem sugestiva do inferno é clara.
No final, o autor afirma que os livros de tradução duvidosa podem dar a impressão da crença no estado intermediário, mas não podem ser usados honestamente para fundamentar a doutrina da alma imortal, por entender as citações como ensinando a aniquilação dos não-salvos.
No entanto, foi provado que o ensino está de acordo com a fé na imortalidade da alma, e não introduz o condicionalismo, nem mesmo com as citações apontadas.
Gledson Meireles.

quinta-feira, 29 de novembro de 2018

O Concílio de Jerusalém e a Sola Scriptura


 
No concílio reuniram-se os apóstolos, juntamente com o apóstolo Paulo, e o seu colaborador Barnabé, e também os presbíteros ou anciãos. Essas autoridades trataram da questão da obrigatoriedade da circuncisão e observação da Lei Mosaica por parte dos gentios conversos, e mesmo para todos os cristãos, como necessária para a salvação.

 

Ali estavam os apóstolos, que foram os homens chamados, escolhidos, preparados e comissionados por Jesus para levar o Evangelho a todas as nações. Também foram eles as testemunhas de toda a vida e da ressurreição do Senhor. Foram eles que receberam o Espírito Santo, quando Cristo apareceu-lhes em João 20, e no dia de Pentecostes em Atos 2, que é a abertura da Igreja para a missão na terra.

 

Os apóstolos e anciãos pensaram sobre a questão e debateram sobre os motivos e sentidos que levaram àquela controvérsia. Pautaram-se pela Palavra de Deus, escrita no Antigo Testamento, e da revelação do Novo Testamento deixada por Jesus Cristo e guiada, desde então, pelo Espírito Santo. Todos eles pautaram a avaliação da controvérsia nas Escrituras e na inspiração do Espírito de Deus, pois estavam no período da revelação.

 

A pregação dos judaizantes não estava atrelada ao sentido da fé cristã. Eles não foram enviados pelos apóstolos, e não tinham a autoridade de pregar o que estavam pregando. Eles diziam que era necessário observar a Lei de Moisés para ser salvo. (Atos 15,1)

 

O apóstolo Paulo e Barnabé discutiram calorosamente com eles. Não foi uma discussão passageira e de pouca importância, mas uma “grande discussão”, diz o texto sagrado. (At 15,2).

 

São Paulo era inspirado pelo Espírito Santo para ensinar. Seu ensino estava correto, mas ainda assim não conseguiu liquidar a dúvida e refutar a heresia por meio da pura discussão com aqueles pregadores. Eles não o escutaram.

 

Foi então que, resolveram ir a Jerusalém tratar da questão com os apóstolos. Foram Paulo, Barnabé e alguns outros cristãos.

 

A igreja, os apóstolos e os anciãos de Jerusalém recebeu Paulo e Barnabé. “Chegando a Jerusalém, foram recebidos pela comunidade, pelos apóstolos e pelos anciãos.” (Atos 15,4)

 

A comunidade é a ekklesia, a igreja, no texto grego. Nessa passagem enfaticamente refere-se aos demais cristãos leigos, aqueles que não fazem parte da autoridade docente, que era constituída pelos apóstolos e anciãos. Em sentido geral todos formam a igreja, mas o texto precisa a posição de cada um para o entendimento do que irá ocorrer: o concílio.

 

Ainda em Jerusalém alguns manifestaram o parecer de que a circuncisão e a Lei de Moisés deveriam ser praticadas pelos pagãos convertidos. (cf. v. 5) Então, “os apóstolos e os anciãos”, as autoridades constituídas, reuniram-se. (v. 6) Houve muita discussão. O texto não entra nos pormenores, nem no tempo gasto para o amadurecimento da questão. Certamente, voltaram aos testemunhos e apresentaram os fatos, e provavelmente tornaram enfrentar os argumentos opostos, com base nos textos sagrados usados para mostrar o sentido que fundamentava o parecer contrário. Pensa-se, também que os judaizantes tinham bastante testemunho escriturístico que usaram a seu favor. Era o momento propício para discutir. E discutiram muito.

 

“Ao fim de grande discussão, Pedro levantou-se”. (Atos 15,7) Esse é o momento da decisão. O apóstolo Pedro, como sempre, é apresentado como aquele que fala diante do grupo de cristãos. Nesse momento, em especial, estavam apóstolos e anciãos tratando do tema em apreço.

 

Então, Pedro lembra o fato da sua escolha por Deus para anunciar o evangelho aos pagãos, e certamente menciona a história de Cornélio, quando os gentios receberam o Espírito Santo.

 

E finalmente, brada o chefe dos apóstolos: “Por que, pois, provocais agora a Deus, impondo aos discípulos um jugo que nem nossos pais nem nós pudemos suportar¿”

 

São Pedro afirma que impor a circuncisão e a Lei é provocar a Deus. Eis tamanha exortação aos presentes. E prossegue com a Boa Nova da graça: “Nós cremos que pela graça do Senhor Jesus seremos salvos, exatamente como eles.” (Atos 15,11) Essa foi a mensagem central, que resumiu e definiu a posição do Concílio, e foi o evangelho pregado por toda a parte, em especial e grande escala, por São Paulo: “Nós cremos que pela graça do Senhor Jesus seremos salvos”.

 

Toda a discussão cessou. Houve silêncio agora. A inteira assembleia calou. Pode, então, Paulo e Barnabé contar o que tentaram no início, no caminho, e quando chegaram a Jerusalém, (vv. 3-4) mas que não foram aceitos no sentido de reconhecimento da liberdade dos pagãos em relação à Lei.

 

Agora sim. A proclamação de Pedro, depois que todos falaram e discutiram e apresentaram seus pareceres, fez ouvir a autoridade da Palavra de Deus, para não provocar o Senhor.

 

Temos as seguintes falas no concílio:

 

(1)        A grande discussão

(2)        Pedro levantou-se e disse-lhes

(3)        Ouviram Paulo e Barnabé

(4)        Tiago tomou a palavra

 

O texto original afirma que Tiago respondeu (ἀπεκρίθη Ἰάκωβος - apekrithe Iakobos). Ele refere-se às palavras de Pedro: “Simão narrou como Deus começou a olhar para as nações...”. (v. 13) E mostrou que o que Pedro disse está em concordância com as Escrituras: “com isto concordam as palavras dos profetas”. (v. 15), terminando suas palavras com a concordância referente ao que Pedro falou (v. 19) e as sugestões, de abster-se das carnes oferecidas aos ídolos, da impureza, das carnes sufocadas e do sangue (v. 20), e seu motivo, que é a autoridade de Moisés em cada cidade. (v. 21). Todos concordaram, o Espírito Santo estava guiando ali todo o entendimento da Palavra de Deus.

 

“Então, pareceu bem aos apóstolos e aos anciãos com toda a comunidade”. (v. 22) e no verso 28: “Com efeito, pareceu bem ao Espírito Santo e a nós não vos impor outro peso além do seguinte...”, e volta a repetir o importante parecer do verso 19.

 

Assim, desautorizaram os pregadores de outrora, de base judaizante, (cf. 24), definindo não ser mais necessárias aos pagãos a circuncisão e a observância da Lei. Essa foi a decisão conciliar.

 

Dessa forma, vê-se que em um concílio as experiências, a pregação, e outros elementos que surgirem, certamente, são postos à luz da Palavra de Deus, como feito nesse caso. Pedro mostrou o que Deus havia revelado a ele. Contou a consequência daquela revelação na vida dos pagãos. Admoestou a todos para não provocarem a Deus, tornando a questão resolvida. A paz na Igreja voltou a reinar.

 

O apóstolo Tiago corroborou o que São Pedro havia dito, e propôs medidas importantes e fundamentais para aquela questão, que estava de acordo com o sentimento de toda a Igreja, e portanto foram aceitas, pois expressavam a essência da fé judaica em torno da prática da Lei em relação aos demais povos, orientando todos ao Senhor.

 

A questão central, porém, já estava promulgada: Cremos que pela graça de Jesus seremos salvos, e não pela circuncisão e prática da Lei de Moisés. (Atos 15, 11) Pedro havia falado, como porta-voz de Deus, o silêncio tomou conta da assembleia, a discussão acabou e depois todos puderam falar. E falaram conforme a revelação dada por São Pedro. Resolvida estava a questão.

 

 

A primeira controvérsia e a questão do concílio

 

A primeira controvérsia girou em torno da pregação do evangelho aos pagãos, pois muitos pensavam ser privilégio apenas judaico. O segundo momento, ainda naturalmente ligado a esse, desdobra-se na questão da continuidade da obrigação da circuncisão e da Lei para os pagãos convertidos.

 

Quando Pedro recebeu os pagãos na Igreja, foi repreendido pelos cristãos judeus (lit.: começaram a discutir com ele), após retornar a Jerusalém, por ter entrado na casa de pagãos e tomado a refeição com eles.  (At 11,3)

 

Então, Pedro explicou-lhes o que havia acontecido. O resultado foi que todos se calaram e glorificaram a Deus pelo que tinha feito com os gentios. (At 11,18)

 

Nesse momento, a palavra de São Pedro apenas pode por fim à comoção dos cristãos da circuncisão. O mesmo não ocorreu quando São Paulo contendeu com esses cristãos. (cf. 15,2)

 

Eles não aceitaram a explicação de Paulo, nem deram ouvidos aos exemplos que certamente lhe foram mostrados. Esses judeus não eram autorizados a ensinar o que ensinavam, e por isso mostraram-se endurecidos naquele momento, não aceitando a autoridade do grande apóstolo.

 

Paulo e Barnabé “contaram a todos os irmãos a conversão dos gentios”, “contaram tudo o que Deus tinha feito com eles” (vv. 3-4). Mas, ainda os cristãos judeus não aceitaram seus testemunhos, mesmo já iniciado o concílio. A questão era muito acirrada.

 

Quando Pedro falou, “a assembleia ouviu silenciosamente”. (v. 12)

 

Antes, em reunião com os cristãos de Jerusalém, quando da primeira controvérsia, Pedro “fez-lhes uma exposição de tudo o que acontecera” e todos fizeram silêncio e louvaram a Deus. (At 11,4)

 

Agora, em concílio, Pedro levanta-se, fala, e todos fazem silêncio. O seu testemunho convence mais uma vez. Acima já foi tratada da questão como desenvolvida na reunião conciliar, dessa vez, acentua-se a posição de Pedro nessas controvérsias.

 

O concílio e o sola Scriptura

 

Sabemos dos acontecimentos narrados acima pelas Sagradas Escrituras. Naquele momento, porém, tinham já o Antigo Testamento, mais ou menos organizado, não totalmente definido, e ainda era escrito o Novo Testamento.

 

Tendo a liderança dos apóstolos, as boas novas do Evangelho deviam ainda ser esclarecidas por eles, já que Cristo os havia enviado, e o Espírito inspirava-os nessa missão. Tem-se assim que não havia lugar para uma análise solitária das Escrituras para descobrir o que fazer com relação ao problema que surgia. Ninguém estava livre par estabelecer por si mesmo, por sua própria análise do Antigo Testamento, o que deveria ser feito. Nem os protestantes podem fazer as coisas assim. É o que ensina Vanhoozer.

 

Quanto ao Novo Testamento, pelos idos do ano 50, muito estava para ser escrito, e a resolução daquela questão estava revelada no Evangelho, sendo efetivada a partir de Atos 10.

 

Por esse motivo, mesmo alguns solascripturistas são de parecer que não cabia ainda o livre exame naquele momento, já que as Escrituras estavam sendo terminadas. O problema é que não há indicação nenhuma que isso devesse ocorrer depois. Além do mais, o que está exposto leva à posição de que não há realmente lugar para esse modelo de interpretação.

 

Para referir-se a essa questão em um entendimento mais pormenorizado, deve-se considerar o que Kevin J. Vanhoozer afirma desse concílio. E, acredite, o mesmo introduziu o principio sola Scriptura nesse momento. É importante ler o seu livro.

 

Para ele, esse concílio é um exemplo da prática do sola scriptura, e cita Darell Bock, que considera o evento como uma reunião de “consulta” (em nota, ênfase do autor) e não um concílio. Infelizmente, essa parece não ser uma abordagem plausível, e revela a carga de uma mentalidade anacrônica.

 

Mas, será que no caso desse exemplo ser a prática da doutrina sola Scriptura, essa é mostrada como o foi acima¿ Não exatamente. OO modelo é outro. Leia o livro! Bem, o que Vanhoozer escreve sobre o concílio, lembrando as palavras de Paulo e a intervenção de Tiago, a que chama de “decisiva”, e esquecendo do papel de autoridade de Pedro, mostra que não. Não foi essa a prática. Por isso, a interpretação de Vanhoozer é, obviamente e tipicamente protestante, mas frisa-se isso aqui por sua fidelidade à doutrina da Reforma e ao seu inescapável condicionamento, o que prova ser a leitura bíblica enormemente resultado da tradição onde é feita.

 

Assim, o autor não toca minimamente no nome de São Pedro ao tecer sua análise de Atos 15, corroborando o dito anterior, e nesse exame exalta tacitamente a natureza local da igreja, ao referir-se à autonomia de Antioquia, ainda que o texto de Atos 15 não tenha a mínima indicação a esse respeito, como não há em nenhum do Novo Testamento.

 

Portanto, a Palavra de Deus foi sim o fundamento da decisão conciliar, mas lida por iluminação e orientação do Espírito Santo, pela autoridade da Igreja, em primeiro lugar aos apóstolos, e em conjunto com eles, aos anciãos por eles ordenados, chegando a um consenso após a averiguação da questão, entendendo mais precisamente a revelação direta de Deus feita ao apóstolo São Pedro. O sola Scriptura aqui é bastante diverso do que aparece na tentativa aludida. As Escrituras foram interpretadas na Igreja, pela autoridade eclesiástica, no Espírito Santo à luz da mensagem dada aos apóstolos. Esse modelo serve para todos os tempos.

 

Gledson Meireles.

sábado, 24 de novembro de 2018

Notas

  • O Protestantismo criou uma realidade fluida, porque admite mudanças mais facilitadas, em muitas áreas, para abarcar diferentes igrejas e credos em uma unidade mínima fundamental, chamada denominação, onde cada uma contém diferenças importantes dentro de si mesma, e maiores divergências com as demais, mas que essas não ultrapassam o que foi previamente considerado não essencial.

 
  • No protestantismo alguém pode desenvolver os solas de forma a chegar ao absurdo teológico negado pelo próprio sistema original, o que não é correto fazer, assim como semelhantemente, em escala menor, pode-se concluir dos pontos do calvinismo algo que o próprio calvinismo não concebeu nem pode conceber jamais.
Gledson Meireles.

terça-feira, 20 de novembro de 2018

Imortalidade da alma: Epístola do papa São Clemente

O papa Clemente governou a igreja de Roma entre os anos 88 a 97. De suas obras, uma só restou, a Epístola aos Coríntios. O livro “Os Pais da Igreja contra a imortalidade da alma, capítulo 5” analisa essa epístola e afirma que a mesma evidencia a tese condicionalista. Para refutar essa afirmação, seguem os comentários abaixo.

O autor do livro afirma: “o que Clemente escreve em sua única epístola já é mais que o suficiente para rejeitar a noção de que ele fosse imortalista”.

Vejamos:

A primeira citação (Clemente 14,1-4), é considerada no livro a linguagem máxima para denotar o aniquilacionismo. Contudo, ao contrário disso, ela pode ainda assim ser ambígua e lida como não aniquilacionista, sem fazer qualquer malabarismo.

Certamente, a afirmação de que “mas os pecadores serão exterminados dela” e que “e não existia mais” significam que os ímpios não estão mais na terra, ou mesmo na nova terra dos novos céus e nova terra que esperamos. Como serão banidos do reino, essa passagem pode estar se referindo a isso, e não uma aniquilação.

Nessa mesma acepção pode ser lida a passagem de Provérbios 1,26, citada em segundo lugar.

O autor do artigo refere-se a Apocalipse 20,10, que seria um texto em sentido hiperbólico, mas o texto é um dos mais claros a respeito do inferno. Está sim em um livro de profecias por meio de símbolos, mas nada no versículo ordena a ler nesse uma metáfora.

Afirma uma cena que significa um tormento e não aniquilação. O Demônio é lançado no lago de fogo, onde já estavam a Besta e o Falso Profeta, que denota existirem.

Alguém pode ainda teimar e ler nisso o tormento temporário ainda em execução, ou seja, Satanás entraria no inferno eterno antes que a Besta e o Falso Profeta deixassem de existir. No entanto, o texto não dá a mínima pista para que se pense nessa hipótese, pois continua afirmando com linguagem enfática o tormento deles “dia e noite” e ainda “pelos séculos dos séculos”, uma expressão que é usada quando se fala da vida eterna.

O terceiro texto da Epístola aos Coríntios, de São Clemente de Roma 35,1-4, afirma que a vida na imortalidade é algo preparado aos que aguardam Jesus. Esse texto está de acordo com a fé na imortalidade da alma, pois todos os cristãos que creem assim esperam o dom da imortalidade que será dado na ressurreição, e não têm a imortalidade da alma como a imortalidade do homem, que são coisas diversas, e quem já leu os demais capítulos publicados neste blog sobre a imortalidade da alma entendeu bem essa questão.

A próxima citação, de Clemente 36,2, afirma que por meio de Cristo experimentamos o “conhecimento imortal”. Essa afirmação não nega, em qualquer sentido, a imortalidade da alma. Se é interpretada, como é feito no livro, como afirmando que a imortalidade é somente obtida através de Jesus Cristo, não há o que objetar, e não há nada que pode opor-se à doutrina da imortalidade da alma.

Quando Clemente fala ressurreição (26-27), também não há nada a objetar quanto à imortalidade da alma. O mesmo acontece na citação de 35,1-4, onde “lutamos para sermos encontrados no número dos que o espera” está de acordo com a fé de todos os cristãos que creem na imortalidade da alma. Aliás, São Clemente continua falando da vida de fé e obras para alcançar a salvação, o que mostra que refere-se aos cristãos vivos à espera de Cristo, e não que os mortos O esperam.

A afirmação de que os salvos serão manifestos quando vier o Reino de Deus não é negação da imortalidade da alma. É algo que pode ser lido nesse contexto igualmente.

Não necessariamente afirma que os salvo somente entrarão no céu nesse momento, que é uma leitura formada em relação a João 14, 1-3, mas que Clemente não menciona nesse momento. E que os mortos estarão nas sepulturas até a ressurreição é outra verdade que não nega a imortalidade da alma.

Em Clemente 44,1-2, ao chamar a morte de sono, segundo a linguagem bíblica, não há qualquer indicação de que seja condicionalista. Os cristãos que creem na imortalidade da alma usam a mesma linguagem sem problemas.

Agora, a passagem que fala de São Paulo que “se foi para o lugar santo” (Clemente 5,7), que o autor afirma ser citada por muitos imortalistas, é digna de nota. Como visto acima, nenhuma passagem é claramente condicionalista, e pode ser lida de outra forma, portanto são ambíguas. Assim, essa menção ao apóstolo São Paulo, que foi para o lugar santo, é mais uma prova da imortalidade da alma do que todas as outras lidas como mortalistas, já que essa constitui o contexto sobre o tema. Aliás, no mesmo capítulo, São Clemente afirma que o apóstolo Pedro “foi para o lugar de glória”.

 Podem essas passagens ser entendidas pacificamente pelos mortalistas? Sim, segundo o autor do livro, referindo-se à passagem sobre São Paulo: “No entanto, que Paulo “deixou o mundo” (morreu) e “se foi para o lugar santo”, isso nenhum mortalista discorda.” (...) Isso de modo nenhum indica que ele já esteja lá.” É feito um malabarismo aqui.

Ou seja, os mortos já partem para algum lugar, segundo os condicionalistas, ainda que não existam mais. Essa “partida” não é senão uma força de expressão, pois eles não estão lá, ou melhor, não estão nem indo para lá, não estão em lugar nenhum, na visão mortalista.

Explica melhor o autor: “Se eu digo que uma missão espacial “partiu para Marte”, isso não significa necessariamente que eles já estejam em Marte agora, significa apenas que eles deram início a este processo.”

O problema é que os astronautas existem e estão indo para Marte, nesse exemplo. Em se tratando de uma viagem que requer certo tempo, já estimado, todos esperam, sabendo disso, a chegada dos astronautas ao seu destino e sabem quando isso deverá ocorrer. Contudo, segundo a doutrina condicionalista, os mortos não existem, e não estão indo.

Pensar que Clemente afirmou que Paulo e Pedro foram para o céu, mas não estão lá, é forçar a interpretação da passagem, introduzindo nela o conceito oriundo do mortalismo.

O autor menciona sua explicação de Filipenses 1,23 para entender o que Clemente afirma aqui. Se os leitores voltarem à explicação do mesmo texto já publicada neste blog verá que a imortalidade da alma é bastante clara nessa passagem.

No geral, pode-se afirmar, então, que São Clemente cria na imortalidade da alma, e não na rebuscada doutrina do mortalismo, que afirma que Paulo “deixou o mundo e se foi para o lugar santo”, mas lá não chegou, e não chegará até o dia da ressurreição, um conceito novo, desconhecido da Bíblia e dos padres apostólicos.

Gledson Meireles.

domingo, 18 de novembro de 2018

Existiu uma Inquisição Protestante?

Partindo da obra do historiador Veit Valentin é possível chegar a uma conclusão importante sobre essa “inquisição” tão apregoada e motivos de acalorados e acirrados debates na apologética católica e protestante.

Para uma averiguação mais geral da questão, abaixo estarão resumidos ao máximo os textos que fornecem o entendimento do que se pretende mostrar e ajudam na formação da opinião a respeito desse tema.

Dessa forma, para chegar a ele serão citadas algumas passagens que podem deixar claras certas nuances, amadurecer o assunto e dar certa solidez à posição a que se propõe chegar. No final há sugestões de artigos para aprofundamento do tema.

O que o historiador Veit Valentim diz a respeito do de Lutero em relação aos camponeses:

Primeiro, que Lutero quis ser um conciliador. Mas, vendo que não tinha esperança de conseguir a paz, pôs do lado dos príncipes.

... e descarregou como uma bomba o seu escrito... Um documento de inclemência e de ódio, só compreensível como arma de combate contra o diabo, que Lutero via atuando ativamente em Tomaz Münzer e nos seus.[1]

As autoridades não precisavam de Lutero para defender-se, mas Lutero foi favorável ao massacre, de acordo com o historiador, que afirma a indignação do mundo vendo um homem da Igreja “incitando os poderosos contra os deserdados da sorte”, e a indiferença e até o ódio que os camponeses tiveram de Lutero a partir de então.

O que o historiador Veit Valentim diz a respeito da nova Igreja fundada por Lutero:

Surgem ... teologia e intolerância; surge a Igreja nacional evangélica, ortodoxa num certo sentido papista sem Papa, ... uma nova instituição autoritária da fé cristã...[2]

O que o historiador Veit Valentim diz a respeito do temperamento de Lutero:

Bem, entre outras coisas, ele afirma sobre Lutero após o casamento com a ex-freira Catarina von Bora:

O tom de Lutero nunca foi afável mas adquiriu por esse tempo uma violência e um descomedimento que podia fazer mêdo.[3]

O que o historiador Veit Valentim diz a respeito das aspirações de João Calvino:

Calvino desde o começo queria mais do que uma disciplina eclesiástica apostólica; o pregador e professor aspirava ao poder.

O historiador afirma que Calvino era rígido pensador, rígido estadista. Que reduziu Genebra à obediência, que tudo era feito conforme sua vontade, que a moral religiosa de Genebra era “absolutista e terrorista” (sic).

Calvino passou a ser a própria Genebra; nada se realizou na comunidade sem o seu beneplácito.[4]

Afirma que não havia complacência com nenhuma outra doutrina.

1)   Espionagem:

Os professores era espionados pelos discípulos, os pais pelos filhos...

 

2)   Execuções:

...em quatro anos houve... 58 execuções e 76 desterros.

3)   Muitos inocentes:

... muitos inocentes foram acusados, submetidos a processo por bruxaria e condenados à morte.[5]

O que o historiador Veit Valentim diz a respeito de Calvino diante de oposições:

Calvino perseguia a crítica às suas opiniões com a tortura e a espada, como blasfêmia e sedução.[6]

Valentim afirma que o calvinismo “era mais papista que o Papado de então”. Com suas autoridades, eleitores, anciãos, tribunal, consistório, afirma o historiador, “não tolerava nenhuma liberdade, nenhum gôzo, nenhuma crítica, qualquer manifestação de alegria ...”.

Mais adiante, o historiador afirma que o calvinismo despertava autoridade moral e espiritual. Essa frase agradaria a todos os reformados, mas ele continua afirmando que, diferentemente do luteranismo, “contra a violência empregava a violência: o que era contrário a Deus, o que importava em ser também contra Calvino devia, tinha de ser combatido, exterminado.[7]

Dessas palavras, faz-se a distinção entre os luteranos e os calvinistas da época, embora já tenha apontado certa diferença entre as práticas relativas à liberdade, valor tão ressaltado no século 21, e a forma com que a igreja nascente luterana concebia seu papel de autoridade. De Lutero e do luteranismo o retrato é mais quietista e pacífico.

Depois, o historiador mostra o lado calvinista, e da própria pessoa do reformador João Calvino, como algo bem diferente do espírito liberal e democrático.

O presente artigo não faz juízo de valor em relação à historiografia de Veit Valentim, apenas apresenta algumas afirmações suas, para que o leitor possa conhecer melhor o estilo e julgamentos do autor em relação ao tema chamado de "inquisição protestante". A pergunta já pode ser respondida. Se isso tem outro nome, ou se foi caso isolado, é outra coisa. Nisso tudo estão fatos.

 
Sugestões de leitura: 1 2

 
 
Gledson Meireles.


[1] Idem. p. 265
[2] Idem. pp. 269-70 O historiador continua falando da ligação das doutrinas antigas, da fé na Bíblia e etc. O texto acima foi arbitrariamente selecionado apenas para mostrar certas afirmações do historiador a respeito do assunto. Ele é mais indulgente com Lutero, afirmando mesmo que, o caso da bigamia de Filipe honra e revela isenção de preconceito do reformador.
[3] Tomo II, p. 272
[4] Ibid. p. 277.
[5] Ibid.
[6] Ibid.
[7] Ibid, p. 279.