Com o assunto sobre a
investigação da Divindade por parte dos filósofos, inicia-se a questão sobre a
alma, levada a cabo por São Justino no Diálogo com Trifão.
E São Justino comenta sobre
a opinião de alguns de que a alma é imortal e imaterial, e que por essa razão,
embora muitos cometam atos maus, esses não recebem a punição, já que a alma
sendo imaterial não é sensível, e como também é imortal não necessitaria de
Deus. Esse é o contexto da investigação de São Justino a respeito da alma. E
mais adiante essa questão será resolvida.
Vendo que a afirmação de que
os maus não serão punidos porque a alma é imaterial e imortal, e a sua
consequente independência de Deus, supostamente, é claro, podemos ver que tais
crenças não são cristãs, e por isso são Justino irá combatê-las. Se alguém
pensa que essa é a doutrina da Igreja Católica está em engano, totalmente
enganado, e irá ficar surpreso por saber que não é.
Mais perto do tema da alma,
propriamente dito, no capítulo quatro, o Velho pergunta a são Justino se a alma
é “também divina e imortal”, confirmando o contexto apresentado acima. Isso
significa que sua questão gira em torno da alma como uma parte de Deus, ou
seja, se é também uma divindade, ou que possui imortalidade por si mesma, como
Deus a possui. É preciso muita atenção nesse contexto para entender o que São
Justino irá argumentar na sua resposta.
Logo depois, o Velho
pergunta se as almas dos homens e dos animais são diferentes. A isso São
Justino responde que não, mas que as almas são todas semelhantes. Sendo assim,
argumenta o Velho, os animais poderão ver a Deus. A isso são Justino responde
que não, pois muitos homens não verão a Deus, mas somente os que viverão
justamente, purificados pela justiça, e pelas virtudes.
Dessa forma, a justificação
aqui é vista como interconectada com a prática das boas obras, e que somente
verão a Deus aqueles que praticarem a justiça, vivendo santamente. Os demais
que não procedem dessa forma não poderão ter a visão de Deus.
São Justino explica, adiante,
que os animais possuem um corpo que os impossibilita ver a Deus. Esse é o
contexto para entender sua argumentação. Então o Velho pergunta se a alma vê a
Deus enquanto está no corpo ou depois que o deixa. Essa questão tem como
pressuposto comum a distinção alma e corpo, sua possível separação, e presume a
imortalidade da alma. Aliás, é uma ideia posta ao sistema holista apregoado
atualmente.
Diante disso, São Justino
continua o raciocínio sem negar o pressuposto básico. Por essa razão, temos que
toda a argumentação de São Justino no Diálogo tem a imortalidade da alma como
base.
De fato, esse seria o
momento para São Justino negar a imortalidade da alma, de forma radical, e
afirmar que ela é como a dos animais, mortal e corruptível, e que não poderia
permanecer depois da morte. Mas, o que ele diz é contrário a tudo isso. Ele
alude ao momento quando a alma é libertada do corpo. Não poderia isso estar de
acordo com aquilo que os “holistas” afirmam. Mas, ainda a questão está longe de
ser tão clara. O que São Justino afirma durante o diálogo irá tornar esse tema
ainda mais radiante.
No capítulo cinco, o Velho
alude à doutrina da alma não-criada e imortal. São Justino conhece essa
doutrina, mas afirma não concordar com seus proponentes. Aqui é mais outro
lugar em que muitos baseiam-se para afirmar que São Justino era um
“mortalista”, pois não concorda que a alma é imortal.
Mas, tenhamos calma, pois o
caso das almas “semelhantes” entre homens e animais, como visto acima, e que é
usado como argumento pelos mortalistas, foi dissolvido, e esse também será o
caso.
Diante da pergunta do Velho,
se as almas são imortais, São Justino afirma que não, pois as mesmas são
criadas como é o mundo. Parece que São Justino está aqui negando a imortalidade
da alma, de forma categórica. Porém, o que o Velho diz a seguir não deixa isso
no ar. Ele afirma que não está dizendo que todas as almas morrem, e explica que
algumas almas estão em um lugar melhor, e outras em um pior, à espera do
julgamento, e que esse durará enquanto Deus quiser que dure e que essas almas
existam.
Essa doutrina lembra aquilo
que os mortalistas afirmam do castigo. A diferença fundamental é que para o
Velho as almas não morrem, mas ficam à espera do galardão ou do juízo em
lugares diferentes, e que no fim elas receberão o justo castigo de Deus.
São Justino afirma que a
alma é corruptível, e que somente Deus é não-criado e imortal. Essas afirmações
são tidas por muitos como incompatíveis com a doutrina da imortalidade da alma.
De fato, a fé católica ensina que a alma é imortal. Mas, o que São Justino está
dizendo é que Deus e a alma humana não são da mesma natureza, o que é verdade.
Deus é imortal como fonte de toda imortalidade. A alma não. E isso é doutrina
da Igreja Católica.
Em outras palavras, comparemos
com os anjos, que possuem imortalidade, mas são criaturas, não tendo a
imortalidade em si mesmos, sendo esse atributo dado a eles por Deus. Também a
alma humana, sendo criada, não pode ter a mesma natureza de Deus, e por isso
sua imortalidade vem de Deus.
Isso veremos ao continuar o
diálogo. Nesse sentido, as almas morrem, ou seja, podem morrer, se isso fosse a
Vontade de Deus, e são de fato punidas. Pense bem: Deus é imortal, e assim é
impossível que morra ou possa ser destruído. A alma não. Ela é imortal porque
Deus a fez assim, da mesma forma que os anjos. Doutra maneira, se fosse a
vontade de Deus ambos poderiam deixar de existir. São essas as afirmações de
São Justino que parecem consubstanciar a doutrina dos mortalistas, mas que, na
verdade, não o fazem.
O Velho elabora um
pensamento importante. Ele afirma que a alma é ou tem vida. Que ela vive
ninguém nega, afirma. Então diz também que ela vive não como sendo a própria
vida, mas participante da vida. Isso por vontade de Deus.
A estrutura de corpo, alma e
espírito encontra-se na explicação do Velho. Na morte, a alma deixa o corpo, e
o homem deixa de existir. Quando a alma deve deixar de existir, afirma o Velho,
o espírito a abandona, e ela volta para onde veio. Assim, a vida do corpo é a
alma, e a vida da alma é o espírito, segundo essa explicação. Também não é o
mesmo que o holismo ensina, estamos mais apropriado para a explicação
imortalista, sendo esclarecimento da natureza da alma, mostrando em que sentido
ela é imortal: o espírito de Deus não a deixa morrer.
Dessa forma, a fé cristã
sempre teve em consideração a alma como imortal, ainda que faça uma separação,
como nessa obra de São Justino, entre a imortalidade de Deus e a imortalidade
da alma. Essa última é um dom concedido ao homem.
Ainda, no capítulo oito da
obra sobre a ressurreição, São Justino mostra que Deus também salva o corpo.
Essa argumentação já é uma prova quanto à imortalidade da alma, pois muitos
pensavam que somente a alma iria ter o reino. Essa é a posição pagã ensinada
pela filosofia helenista.
Mas, São Justino ensina que
o homem é corpo e alma. No capítulo dez ele afirma que o corpo é a casa da
alma, e a alma a casa do espírito. Essa mesma estrutura é mostrada na
argumentação do Velho, como foi provado acima. Agora, podemos ter certeza da
doutrina de São Justino, que ensina a imortalidade da alma.
Portanto, diante de tudo
isso, a doutrina de São Justino é que a alma é imortal, mas que sua
imortalidade vem de Deus, que colocou espírito vivificante na alma. São Justino
ensina a distinção corpo e alma, ensina que a alma pode viver à parte do corpo,
e que, portanto, é imortal, e será reunida ao corpo na ressurreição.
Havia no tempo de São
Justino os que negavam a ressurreição, como visto na carta de São Paulo aos
coríntios. A razão que colocavam, contra a verdade da ressurreição, seria que o
corpo corrupto não poderia mais ser restaurado, entre outras coisas.
Usando a linguagem física
entendida pelos filósofos pagãos, por causa da incredulidade deles, São
Justino, em sua obra Sobre a Ressurreição (On
the Ressurrection), faz
comparações para provar a ressurreição. Dessas podemos colher a verdade da
imortalidade da alma.
Então, São Justino afirma sobre
a alma e o corpo que, cada um sozinho não pode fazer nada. Ao falar da
ressureição da carne, argumenta que se Cristo quisesse uma ressurreição apenas
espiritual, teria feito isso mostrando o corpo vivendo sozinho à parte, e a
alma vivendo sozinha à parte. Essa é uma maneira estranha de ver, mesmo nos
moldes a que estamos acostumados. A ressurreição é de ambos, corpo e alma. Mas, tal coisa não quer dizer que a alma
morreu. Apenas está frisando que na ressurreição a alma volta à sua união intrínseca
com o corpo.
No capítulo 9 escreve: “Se a ressurreição fosse apenas espiritual, seria
necessário que Ele, ao ressuscitar os mortos, devesse mostrar o corpo deitado à
parte, por si só, e a alma vivendo separada por si só. Mas agora ele não fez
asim, mas levantou o corpo, confirmando a promessa de vida.”[1]
Diante disso, a seguir São
Justino afirma que a ressurreição é aquela da carne que viveu, pois o espírito
não morre, e que a alma deixa o corpo na morte: “A ressurreição é uma ressurreição da carne
que morreu. Pois o espírito não morre; a alma está no corpo, e sem uma alma ele
não pode viver. O corpo, quando a alma abandona-lo, não existe mais. Para o
corpo é a casa da alma; e a alma a casa do espírito”.[2]
Em sua Apologia 1, no
capítulo 18, São Justino, falando da morte, afirma que a sensação permanece em
todos os que viveram, e parte desse fato para apresentar ao rei a doutrina
quanto ao juízo de condenação, considerando que que a alma não deixa de ter
sensação na morte. Para isso, ele mostra ao rei que ele tem exemplos (na
própria crença pagã do rei), através da necromancia, adivinhações, evocações
das almas dos falecidos, e outras, de que a alma já sofre as consequências da
condenação.
São Justino usa exemplos que
mostram ao rei que o juízo já começa a ter suas repercussões na morte,
portanto, na alma, através da alma. E no capítulo 19 ele trata da ressurreição
da carne. Então, passa a fazer analogias, e assim afirma no capítulo 20: “e enquanto nós afirmamos que as almas dos ímpios, sendo
providas de sensação mesmo depois da morte, são punidas, e que aqueles dos bons
sendo libertos da punição passam uma existência bem-aventurada...”. Mais
provas são produzidas por São Justino, no cap. 21, mas essas já são
suficientes.
São Justino, na mesma obra,
capítulo 44, concede que muito do que os filósofos e poetas gregos aprenderam,
foi através de Moisés, e um desses ensinos foi sobre a imortalidade da alma: “E o que quer que ambos os filósofos e poetas têm dito a
respeito da imortalidade da alma, ou punições após a morte, ou a contemplação
das coisas celestiais, ou doutrinas da mesma espécie, que tenham recebido tais
sugestões dos profetas, como lhes permitiu compreender e interpretar estes
coisas. E, portanto, parece haver sementes da verdade entre todos os homens;
mas eles são acusados de não compreender com precisão [a verdade] quando
afirmam contraditório”.[3]
No Diálogo com Trifão, São
Justino chega à conclusão de que o mundo foi criado por Deus, não se trata de
algo “não-gerado” e eterno, e por conseguinte a alma não é imortal. Eis o
verdadeiro sentido doutrinal.
Essa é a conclusão coerente,
pois significa que somente Deus é imortal. Mas, o que devemos perceber é que São
Justino cria que a imortalidade é um dom de Deus, não sendo um atributo da alma
da mesma forma como o é de Deus.
São Justino esclarece que a
alma não é por si mesma imortal, mas por causa da Vontade de Deus, que deu a
ela imortalidade. O que é discutido no capítulo 5 gira em torno da eternidade
da alma, da sua imortalidade, supostamente por não ter sido criada, sobre o
conceito de ter uma origem não-gerada, o que a tornaria absolutamente imortal. Por
isso, essa ideia é combatida por São Justino. De fato, não é essa a doutrina
cristã católica.
O que deve ser entendido
sobre a alma, mais diretamente e de forma cristã, é apresentado no Diálogo um
capitulo antes, no número 4, e alguns passam despercebido por ele, indo logo ao
capítulo 5, onde está afirmado que a alma não é imortal, no sentido que foi
mostrado acima. Então, com isso passam uma ideia errônea sobre a doutrina
ensinada por São Justino.
Quando chegamos ao capítulo
80, a questão já é conhecida de que São Justino defendia a doutrina bíblica de
que a alma não pode morrer. Então, as suas afirmações que envolvem esse assunto
devem ser contextualizadas.
Nessa passagem da obra, São
Justino trata da questão do reino milenar, após a reconstrução de Jerusalém, a
partir da Parusia, a vinda de Jesus. Ele
e muitos outros cristãos, como o mesmo afirma, acreditava nessa doutrina,
estava persuadido de sua validade e verdade. Talvez as coisas não eram tão
claras a esse respeito, e, sabemos, não havia um pronunciamento oficial da
Igreja quanto ao milênio, de forma que a intepretação de São Justino não é
apresentada como de origem apostólica.
Dessa forma, não era uma
posição dogmática. Assim, ele afirma que “muitos
que pertencem à pura e piedosa fé, e são verdadeiros cristãos, pensam de outra
forma”. Não diria isso se considerasse a negação da doutrina uma
heresia. Desse modo, sabemos que não eram todos os cristãos que criam e
ensinavam o milenarismo, e mesmo assim São Justino afirma que esses eram
verdadeiros e piedosos.
Temos então a prova de que a
crença no milenarismo era tolerada na Igreja, mas não fazia parte da tradição
apostólica, sendo uma opinião piedosa e plausível de muitos. O tempo passou e
essa doutrina foi mais e mais desacreditada.
Então, depois dessas clarificações, desses esclarecimentos necessários, São Justino fala dos falsos cristãos, ou seja, os hereges. E afirma: “Porque, se você caiu com alguns que são chamados cristãos, mas que não admitem isso [a verdade], e arriscam blasfemar o Deus de Abraão, o Deus de Isaac, o Deus de Jacó; que dizem que não há ressurreição dos mortos, e que suas almas, quando morrem, são levadas para o céu não imagino que eles são cristãos...” Essa heresia afirmava que as almas já estão no céu, e que não haveria mais ressurreição. Por isso, São Justino a denuncia com energia.
Assim, esse texto não trata da imortalidade da alma em si, não nega o fato, pois esse era crido por São Justino, mas apenas apresenta a refutação da opinião de que não haveria ressurreição dos mortos. E isso é uma doutrina ímpia, e uma heresia das mais perniciosas. Por tudo isso, São Justino não era um mortalista, e essa questão está refutada.
Gledson Meireles.
[1] “If the resurrection were only
spiritual, it was requisite that He, in raising the dead, should show the body
lying apart by itself, and the soul living apart by itself. But now He did not
do so, but raised the body, confirming in it the promise of life.”
[2] “The resurrection is a resurrection
of the flesh which died. For the spirit dies not; the soul is in the body, and
without a soul it cannot live. The body, when the soul forsakes it, is not. For
the body is the house of the soul; and the soul the house of the spirit.” (http://www.newadvent.org/fathers/0131.htm,
capítulo 10).
[3] “And
whatever both philosophers and poets have said concerning the imortality of the
soul, or punishments after death, or contemplation of things heavenly, or
doctrines of the like kind, they have received such suggestions from the
prophets as have enabled them to understand and interpret these things. And
hence there seem to be seeds of truth among all men; but they are charged with
not accurately understanding [the truth] when they assert contradictories.”
Se tiver tempo de uma olhada no artigo de Lucas banzoli sobre os Pais da igreja e a imortalidade da alma!
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