sábado, 24 de setembro de 2016

São Justino e a imortalidade da alma


Com o assunto sobre a investigação da Divindade por parte dos filósofos, inicia-se a questão sobre a alma, levada a cabo por São Justino no Diálogo com Trifão.

E São Justino comenta sobre a opinião de alguns de que a alma é imortal e imaterial, e que por essa razão, embora muitos cometam atos maus, esses não recebem a punição, já que a alma sendo imaterial não é sensível, e como também é imortal não necessitaria de Deus. Esse é o contexto da investigação de São Justino a respeito da alma. E mais adiante essa questão será resolvida.

Vendo que a afirmação de que os maus não serão punidos porque a alma é imaterial e imortal, e a sua consequente independência de Deus, supostamente, é claro, podemos ver que tais crenças não são cristãs, e por isso são Justino irá combatê-las. Se alguém pensa que essa é a doutrina da Igreja Católica está em engano, totalmente enganado, e irá ficar surpreso por saber que não é.

Mais perto do tema da alma, propriamente dito, no capítulo quatro, o Velho pergunta a são Justino se a alma é “também divina e imortal”, confirmando o contexto apresentado acima. Isso significa que sua questão gira em torno da alma como uma parte de Deus, ou seja, se é também uma divindade, ou que possui imortalidade por si mesma, como Deus a possui. É preciso muita atenção nesse contexto para entender o que São Justino irá argumentar na sua resposta.

Logo depois, o Velho pergunta se as almas dos homens e dos animais são diferentes. A isso São Justino responde que não, mas que as almas são todas semelhantes. Sendo assim, argumenta o Velho, os animais poderão ver a Deus. A isso são Justino responde que não, pois muitos homens não verão a Deus, mas somente os que viverão justamente, purificados pela justiça, e pelas virtudes.

Dessa forma, a justificação aqui é vista como interconectada com a prática das boas obras, e que somente verão a Deus aqueles que praticarem a justiça, vivendo santamente. Os demais que não procedem dessa forma não poderão ter a visão de Deus.

São Justino explica, adiante, que os animais possuem um corpo que os impossibilita ver a Deus. Esse é o contexto para entender sua argumentação. Então o Velho pergunta se a alma vê a Deus enquanto está no corpo ou depois que o deixa. Essa questão tem como pressuposto comum a distinção alma e corpo, sua possível separação, e presume a imortalidade da alma. Aliás, é uma ideia posta ao sistema holista apregoado atualmente.

Diante disso, São Justino continua o raciocínio sem negar o pressuposto básico. Por essa razão, temos que toda a argumentação de São Justino no Diálogo tem a imortalidade da alma como base.

De fato, esse seria o momento para São Justino negar a imortalidade da alma, de forma radical, e afirmar que ela é como a dos animais, mortal e corruptível, e que não poderia permanecer depois da morte. Mas, o que ele diz é contrário a tudo isso. Ele alude ao momento quando a alma é libertada do corpo. Não poderia isso estar de acordo com aquilo que os “holistas” afirmam. Mas, ainda a questão está longe de ser tão clara. O que São Justino afirma durante o diálogo irá tornar esse tema ainda mais radiante.

No capítulo cinco, o Velho alude à doutrina da alma não-criada e imortal. São Justino conhece essa doutrina, mas afirma não concordar com seus proponentes. Aqui é mais outro lugar em que muitos baseiam-se para afirmar que São Justino era um “mortalista”, pois não concorda que a alma é imortal.

Mas, tenhamos calma, pois o caso das almas “semelhantes” entre homens e animais, como visto acima, e que é usado como argumento pelos mortalistas, foi dissolvido, e esse também será o caso.

Diante da pergunta do Velho, se as almas são imortais, São Justino afirma que não, pois as mesmas são criadas como é o mundo. Parece que São Justino está aqui negando a imortalidade da alma, de forma categórica. Porém, o que o Velho diz a seguir não deixa isso no ar. Ele afirma que não está dizendo que todas as almas morrem, e explica que algumas almas estão em um lugar melhor, e outras em um pior, à espera do julgamento, e que esse durará enquanto Deus quiser que dure e que essas almas existam.

Essa doutrina lembra aquilo que os mortalistas afirmam do castigo. A diferença fundamental é que para o Velho as almas não morrem, mas ficam à espera do galardão ou do juízo em lugares diferentes, e que no fim elas receberão o justo castigo de Deus.

São Justino afirma que a alma é corruptível, e que somente Deus é não-criado e imortal. Essas afirmações são tidas por muitos como incompatíveis com a doutrina da imortalidade da alma. De fato, a fé católica ensina que a alma é imortal. Mas, o que São Justino está dizendo é que Deus e a alma humana não são da mesma natureza, o que é verdade. Deus é imortal como fonte de toda imortalidade. A alma não. E isso é doutrina da Igreja Católica.

Em outras palavras, comparemos com os anjos, que possuem imortalidade, mas são criaturas, não tendo a imortalidade em si mesmos, sendo esse atributo dado a eles por Deus. Também a alma humana, sendo criada, não pode ter a mesma natureza de Deus, e por isso sua imortalidade vem de Deus.

Isso veremos ao continuar o diálogo. Nesse sentido, as almas morrem, ou seja, podem morrer, se isso fosse a Vontade de Deus, e são de fato punidas. Pense bem: Deus é imortal, e assim é impossível que morra ou possa ser destruído. A alma não. Ela é imortal porque Deus a fez assim, da mesma forma que os anjos. Doutra maneira, se fosse a vontade de Deus ambos poderiam deixar de existir. São essas as afirmações de São Justino que parecem consubstanciar a doutrina dos mortalistas, mas que, na verdade, não o fazem.

O Velho elabora um pensamento importante. Ele afirma que a alma é ou tem vida. Que ela vive ninguém nega, afirma. Então diz também que ela vive não como sendo a própria vida, mas participante da vida. Isso por vontade de Deus.

A estrutura de corpo, alma e espírito encontra-se na explicação do Velho. Na morte, a alma deixa o corpo, e o homem deixa de existir. Quando a alma deve deixar de existir, afirma o Velho, o espírito a abandona, e ela volta para onde veio. Assim, a vida do corpo é a alma, e a vida da alma é o espírito, segundo essa explicação. Também não é o mesmo que o holismo ensina, estamos mais apropriado para a explicação imortalista, sendo esclarecimento da natureza da alma, mostrando em que sentido ela é imortal: o espírito de Deus não a deixa morrer.

Dessa forma, a fé cristã sempre teve em consideração a alma como imortal, ainda que faça uma separação, como nessa obra de São Justino, entre a imortalidade de Deus e a imortalidade da alma. Essa última é um dom concedido ao homem.

Ainda, no capítulo oito da obra sobre a ressurreição, São Justino mostra que Deus também salva o corpo. Essa argumentação já é uma prova quanto à imortalidade da alma, pois muitos pensavam que somente a alma iria ter o reino. Essa é a posição pagã ensinada pela filosofia helenista.

Mas, São Justino ensina que o homem é corpo e alma. No capítulo dez ele afirma que o corpo é a casa da alma, e a alma a casa do espírito. Essa mesma estrutura é mostrada na argumentação do Velho, como foi provado acima. Agora, podemos ter certeza da doutrina de São Justino, que ensina a imortalidade da alma.

Portanto, diante de tudo isso, a doutrina de São Justino é que a alma é imortal, mas que sua imortalidade vem de Deus, que colocou espírito vivificante na alma. São Justino ensina a distinção corpo e alma, ensina que a alma pode viver à parte do corpo, e que, portanto, é imortal, e será reunida ao corpo na ressurreição.

Havia no tempo de São Justino os que negavam a ressurreição, como visto na carta de São Paulo aos coríntios. A razão que colocavam, contra a verdade da ressurreição, seria que o corpo corrupto não poderia mais ser restaurado, entre outras coisas.

Usando a linguagem física entendida pelos filósofos pagãos, por causa da incredulidade deles, São Justino, em sua obra Sobre a Ressurreição (On the Ressurrection), faz comparações para provar a ressurreição. Dessas podemos colher a verdade da imortalidade da alma.

Então, São Justino afirma sobre a alma e o corpo que, cada um sozinho não pode fazer nada. Ao falar da ressureição da carne, argumenta que se Cristo quisesse uma ressurreição apenas espiritual, teria feito isso mostrando o corpo vivendo sozinho à parte, e a alma vivendo sozinha à parte. Essa é uma maneira estranha de ver, mesmo nos moldes a que estamos acostumados. A ressurreição é de ambos, corpo e alma.  Mas, tal coisa não quer dizer que a alma morreu. Apenas está frisando que na ressurreição a alma volta à sua união intrínseca com o corpo.

No capítulo 9 escreve: “Se a ressurreição fosse apenas espiritual, seria necessário que Ele, ao ressuscitar os mortos, devesse mostrar o corpo deitado à parte, por si só, e a alma vivendo separada por si só. Mas agora ele não fez asim, mas levantou o corpo, confirmando a promessa de vida.[1]

Diante disso, a seguir São Justino afirma que a ressurreição é aquela da carne que viveu, pois o espírito não morre, e que a alma deixa o corpo na morte: “A ressurreição é uma ressurreição da carne que morreu. Pois o espírito não morre; a alma está no corpo, e sem uma alma ele não pode viver. O corpo, quando a alma abandona-lo, não existe mais. Para o corpo é a casa da alma; e a alma a casa do espírito”.[2]

Em sua Apologia 1, no capítulo 18, São Justino, falando da morte, afirma que a sensação permanece em todos os que viveram, e parte desse fato para apresentar ao rei a doutrina quanto ao juízo de condenação, considerando que que a alma não deixa de ter sensação na morte. Para isso, ele mostra ao rei que ele tem exemplos (na própria crença pagã do rei), através da necromancia, adivinhações, evocações das almas dos falecidos, e outras, de que a alma já sofre as consequências da condenação.

São Justino usa exemplos que mostram ao rei que o juízo já começa a ter suas repercussões na morte, portanto, na alma, através da alma. E no capítulo 19 ele trata da ressurreição da carne. Então, passa a fazer analogias, e assim afirma no capítulo 20: “e enquanto nós afirmamos que as almas dos ímpios, sendo providas de sensação mesmo depois da morte, são punidas, e que aqueles dos bons sendo libertos da punição passam uma existência bem-aventurada...”. Mais provas são produzidas por São Justino, no cap. 21, mas essas já são suficientes.

São Justino, na mesma obra, capítulo 44, concede que muito do que os filósofos e poetas gregos aprenderam, foi através de Moisés, e um desses ensinos foi sobre a imortalidade da alma: “E o que quer que ambos os filósofos e poetas têm dito a respeito da imortalidade da alma, ou punições após a morte, ou a contemplação das coisas celestiais, ou doutrinas da mesma espécie, que tenham recebido tais sugestões dos profetas, como lhes permitiu compreender e interpretar estes coisas. E, portanto, parece haver sementes da verdade entre todos os homens; mas eles são acusados ​​de não compreender com precisão [a verdade] quando afirmam contraditório”.[3]

No Diálogo com Trifão, São Justino chega à conclusão de que o mundo foi criado por Deus, não se trata de algo “não-gerado” e eterno, e por conseguinte a alma não é imortal. Eis o verdadeiro sentido doutrinal.

Essa é a conclusão coerente, pois significa que somente Deus é imortal. Mas, o que devemos perceber é que São Justino cria que a imortalidade é um dom de Deus, não sendo um atributo da alma da mesma forma como o é de Deus.

São Justino esclarece que a alma não é por si mesma imortal, mas por causa da Vontade de Deus, que deu a ela imortalidade. O que é discutido no capítulo 5 gira em torno da eternidade da alma, da sua imortalidade, supostamente por não ter sido criada, sobre o conceito de ter uma origem não-gerada, o que a tornaria absolutamente imortal. Por isso, essa ideia é combatida por São Justino. De fato, não é essa a doutrina cristã católica.

O que deve ser entendido sobre a alma, mais diretamente e de forma cristã, é apresentado no Diálogo um capitulo antes, no número 4, e alguns passam despercebido por ele, indo logo ao capítulo 5, onde está afirmado que a alma não é imortal, no sentido que foi mostrado acima. Então, com isso passam uma ideia errônea sobre a doutrina ensinada por São Justino.

Quando chegamos ao capítulo 80, a questão já é conhecida de que São Justino defendia a doutrina bíblica de que a alma não pode morrer. Então, as suas afirmações que envolvem esse assunto devem ser contextualizadas.

Nessa passagem da obra, São Justino trata da questão do reino milenar, após a reconstrução de Jerusalém, a partir da Parusia, a vinda de Jesus. Ele e muitos outros cristãos, como o mesmo afirma, acreditava nessa doutrina, estava persuadido de sua validade e verdade. Talvez as coisas não eram tão claras a esse respeito, e, sabemos, não havia um pronunciamento oficial da Igreja quanto ao milênio, de forma que a intepretação de São Justino não é apresentada como de origem apostólica.

Dessa forma, não era uma posição dogmática. Assim, ele afirma que “muitos que pertencem à pura e piedosa fé, e são verdadeiros cristãos, pensam de outra forma”. Não diria isso se considerasse a negação da doutrina uma heresia. Desse modo, sabemos que não eram todos os cristãos que criam e ensinavam o milenarismo, e mesmo assim São Justino afirma que esses eram verdadeiros e piedosos.

Temos então a prova de que a crença no milenarismo era tolerada na Igreja, mas não fazia parte da tradição apostólica, sendo uma opinião piedosa e plausível de muitos. O tempo passou e essa doutrina foi mais e mais desacreditada.

Então, depois dessas clarificações, desses esclarecimentos necessários, São Justino fala dos falsos cristãos, ou seja, os hereges. E afirma: “Porque, se você caiu com alguns que são chamados cristãos, mas que não admitem isso [a verdade], e arriscam blasfemar o Deus de Abraão, o Deus de Isaac, o Deus de Jacó; que dizem que não há ressurreição dos mortos, e que suas almas, quando morrem, são levadas para o céu não imagino que eles são cristãos...” Essa heresia afirmava que as almas já estão no céu, e que não haveria mais ressurreição. Por isso, São Justino a denuncia com energia.
 
Assim, esse texto não trata da imortalidade da alma em si, não nega o fato, pois esse era crido por São Justino, mas apenas apresenta a refutação da opinião de que não haveria ressurreição dos mortos. E isso é uma doutrina ímpia, e uma heresia das mais perniciosas. Por tudo isso, São Justino não era um mortalista, e essa questão está refutada.
 
Para acompanhar a reflexão acesse: Parte 1 , Parte 2 , Parte 3.
 
Gledson Meireles.





[1] “If the resurrection were only spiritual, it was requisite that He, in raising the dead, should show the body lying apart by itself, and the soul living apart by itself. But now He did not do so, but raised the body, confirming in it the promise of life.”


[2] “The resurrection is a resurrection of the flesh which died. For the spirit dies not; the soul is in the body, and without a soul it cannot live. The body, when the soul forsakes it, is not. For the body is the house of the soul; and the soul the house of the spirit.” (http://www.newadvent.org/fathers/0131.htm, capítulo 10).


[3] “And whatever both philosophers and poets have said concerning the imortality of the soul, or punishments after death, or contemplation of things heavenly, or doctrines of the like kind, they have received such suggestions from the prophets as have enabled them to understand and interpret these things. And hence there seem to be seeds of truth among all men; but they are charged with not accurately understanding [the truth] when they assert contradictories.”

Um comentário:

  1. Se tiver tempo de uma olhada no artigo de Lucas banzoli sobre os Pais da igreja e a imortalidade da alma!

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