domingo, 18 de agosto de 2024

Livro: Teologia e Prática da Igreja Católica Romana

Refutação  do tópico sobre a natureza e a graça.

 

A interdependência natureza-graça

 

Quando Leonardo De Chirico afirma que o pecado é secundário na teologia católica, e que na teologia protestante ele é mais arrasador, de modo que a natureza deve ser restaurada pela graça, essa explicação está incorreta.

Na teologia católica o pecado é devastador, mas não destrói a natureza.  Esse é o sentido bíblico. Ainda, a natureza não pode pelo esforço próprio querer a Deus e não pode esforçar-se para ir a Deus, mas o pode pela graça. Esse ponto é diverso daquele que os teólogos protestantes imaginam.

De fato, ao pensar que no sistema católico a natureza e a graça são interdependentes, no sentido que a natureza pode querer o bem e desejar fazê-lo (como que supondo que o fizesse sem a graça), essa posição é totalmente alheia ao catolicismo.

No entanto, se a natureza for iluminada pela graça, então toda a questão muda, pois agora a natureza pode mover-se segundo suas funções próprias, dadas na criação, e pela força de Deus recebida na graça.

Então, a natureza se opõe à graça, e somente pode converter-se a Deus através da graça. Ela pode, também, opor-se à graça, de modo que sua maldade continua ali, e é convertida quando abre-se à graça e pervertida quando a nega.

Não é exato que Santo Agostinho tenha sido pessimista e Santo Tomás relativamente otimista em relação à natureza e graça. Ambos possuem a mesma doutrina básica. O protestantismo possui uma doutrina diversa, que diverge da doutrina católica nesse ponto.

O entendimento de Gregg de que o pecado está subordinado ao elemento natureza na doutrina católica está equivocado. De fato, essa negação protestante leva a um erro grave, que é costumeiramente crido pelos reformados, e que mais adiante irá sendo descortinado.

A citação de De Chirico mostra a posição da doutrina protestante geral. Esse chama da doutrina tomista de relativamente otimista, enquanto De Chirico afirma que a doutrina católica é totalmente positiva em relação à natureza e tem um conceito brando de pecado. E qual o motivo que leva a De Chirico a afirmar que no catolicismo a visão sobre a natureza humana é “totalmente positiva” e o conceito de pecado é “brando”? Isso se deve ao fato que, para os reformados a natureza é praticamente destruída, não tendo mais o livre-arbítrio. E isso é o que consideram correto.

Se no catolicismo a graça começa na natureza como explica o teólogo reformado, então a natureza seria um terreno no qual a graça nasce. Isso é totalmente errôneo, e não condiz com a teologia católica.

Da mesma forma, não é necessário pensar que a natureza tenha sido destruída para ser recriada pela graça.

No entanto, quanto a afirmar que a natureza sempre participa da graça, ou melhor, que sempre pode participar da graça, e que a graça pressupõe que a natureza possa participar dela ad intra, isso é correto, mas a teologia reformada nega esse ponto bíblico. Esse modo de entender a relação natureza e graça está totalmente correto.

De fato, quando o reformado tenta conciliar esses dois elementos, de modo a colocar a natureza totalmente em contraposição com a graça, ele está afirmando o mesmo que a doutrina católica.

Contudo, quando afirma que essa total inabilidade significa que a natureza não possui o livre arbítrio e, portanto, não pode cooperar, então o limite foi ultrapassado, e introduzido um erro.

Para isso, a graça deveria transformar a natureza e agir sozinha, de modo que a natureza não tivesse participação real.

Eis que a doutrina reformada afirma que há de fato participação real, há liberdade, há livre-arbítrio, considerado de outra forma, pois que esse é como que produzido pela graça. Obviamente o teólogo reformado talvez não aceite tal modo de explicação, mas é o que mais se aproxima da doutrina nesse ponto discutido.

Agora, vejamos o que a teologia protestante diz sobre o assunto. Gregg Allison afirma que a graça nada tem a operar na natureza porque a criação foi terrivelmente maculada pelo pecado.

Foi isso mencionado acima ao explicar que a natureza foi totalmente destruída. Esse termo parece explicar o termo “terrivelmente” usado pelo teólogo, porque está no contexto em que diz que a graça “nada” opera na natureza assim maculada pelo pecado.

Então, a graça agiria por fora, ad extra. E o motivo disso seria que a natureza “ignora completamente seu estado de depravação”. Esse ponto é o que foi chamado acima de natureza totalmente destruída pelo pecado, ou terrivelmente maculada, de modo que a graça não pode agir nela.

No entanto, ao dizer que a natureza ignora seu estado de pecado, esse ponto é o mesmo que ensina a fé católica. A teologia evangélica ignora esse ponto, e introduz, por essa causa, um erro terrível ao tentar explicar o mesmo por outra via.

De fato, a natureza não conhece seu estado caído em sua complexidade e profundidade, mas não foi completamente destruída no sentido de perder o livre-arbítrio. Ela não tornou-se outra natureza.

Esse livre-arbítrio pode ser iluminado pela graça para que a natureza opere e possa perceber sua necessidade de salvação. O Protestantismo afirma que esse ponto é unilateral, ou seja, Deus teria que agir para que a natureza se converta, de modo a que a não participa de fato, como foi acima aludido, ainda que a doutrina reformada tente resolver essa contradição.

Se nada pode contribuir com a graça, então o pecador não participou realmente. Essa separação ou fosso entre natureza e graça é um erro, ao invés de ser o correto. Ela desconsidera a fé católica, esboça uma estrutura que a Igreja Católica não ensina, tenta fornecer o conceito de graça de Deus que age na natureza, mas introduz esse equivocado conceito de separação radical entre natureza e graça.

O continuum natureza-graça que o autor protestante considera no catolicismo não é o mesmo que impacto menos devastador do pecado sobre a natureza, porque para a teologia católica a natureza está morta no pecado, seu livre-arbítrio existe e está inabilitado de ir a Deus, e sem a graça não há possibilidade de salvação, o que é o mesmo que o reformado pretende ao ensinar o fosso que separa natureza e graça. Ainda que não aceite o livre-arbítrio, sua ênfase é que a natureza está morta.

No entanto, quando a graça vem à natureza, essa é ressuscitada, fortalecida e capacitada para agir, de modo que o livre-arbítrio é habilitado, pois nunca foi destruído, e pode cooperar com a graça.

Se esse livre-arbítrio fosse algo que viesse unilateralmente da parte de Deus pela graça ad extra (de fora), então de fato essa participação seria meramente verbal, uma forma de metáfora, algo que de fato não estivesse participando, cooperando, mas apenas sendo movido por algo externo. Não é isso que a Bíblia ensina. Também, é de se esperar, que não é isso que o reformado entende, pois tal coisa é errônea, e por isso usa termos que parecem estar conforme a doutrina bíblica da natureza e da graça conforme a continuidade que é criticada pela teologia evangélica.

Quando se diz que isso leva a conceber a razão como capaz de compreender a revelação geral e a existência de Deus, isso é o que está na Escritura. Desse modo, a graça é necessária para levar o pecador à salvação, mas a razão humana não perdeu sua capacidade de saber da existência de Deus.

O conceito de que as coisas para as quais a Escritura  aponta (reino da natureza) como trazendo significados ocultos, é algo que o teólogo compreendeu da doutrina católica, mas que não faz parte dela. É um equívoco, ou um modo muito inadequado de ensinar a teologia católica.

Outra vez vem o “otimismo moderado” é citado pelo autor. Quando na teologia católica a natureza necessita da graça para ser elevada, transformada, salva, a teologia protestante afirma que ela deve ser recriada. Certamente se refere ao mesmo processo, mas erra ao vê-la como inabilitada como que perdesse algo dela mesma. Por isso, as afirmações reformadas de que a bondade da criação permanece e que essa mesma é terrivelmente maculada de modo a não poder participar da graça e que a graça não pode agir nela, são afirmações que a Bíblia não traz. A graça pode de fato agir na natureza, por dentro, ad intra, e não somente por fora. Ela pode restaurar a bondade da criação que permaneceu.

Quando se diz que o homem é religioso, é o mesmo que indica sua bondade original, que não foi destruída, mas perdida na natureza que pode ser elevada. A graça não faz parte do homem, mas esse, como criatura de Deus, tem sua natureza reestabelecida por Deus através da Sua graça. De fato, não se pode pensar que a natureza perdeu a capacidade para a graça.

A doutrina da salvação não é totalmente sinergética, como explica Gregg. Um pequeno exemplo é capaz de destruir essa afirmação. Esse exemplo gera outras observações e objeções reformadas, mas pode destruir o que Gregg afirmou. Trata-se do batismo infantil.

Na teologia católica o batismo é o sacramento da salvação, onde Cristo age salvando o pecador. A criança que é batizada, e não chegou ao uso da razão, e recebe o batismo pela fé da Igreja, é salva. Ela não fez nada para ser salva e merecer a vida eterna. A gratuidade da salvação é mostrada nesse caso. Isso mostra que a participação do salvo na salvação, quando o mesmo chega ao uso da razão, não o faz autor da própria salvação, mas verdadeiro participante, conforme Vontade de Deus.

E sobre a “deificação”, essa é uma doutrina bíblica. A natureza deve ser transformada para entrar no reino dos céus. O ser humano não se torna deus, mas de um modo metafórico se diz isso, por estar cheio da graça.

Os elementos da natureza usados nos sacramentos por Jesus e pelos apóstolos (água, óleo, vinho, pão e etc.) estão no âmbito sacramental, e são sinais da graça.

A Igreja é o corpo de Cristo místico, agindo em nome de Cristo. A hierarquia é bíblica e o bom senso a compreende naturalmente.

As virtudes podem ser praticadas por qualquer um, mas não levan a salvação sem a graça e não podem ser praticadas perfeitamente sem a graça.

A doutrina sobre a virgem Maria também é importante para entender os efeitos da graça na natureza.

Não há descontinuidade como a teologia protestante entende. De fato, a linguagem mesma da Escritura mostra que a maldade da natureza, que é assunto onde concordam ambas a teologias católica e protestante, essa maldade é transformada pela graça, sendo a mesma natureza criada por Deus, com aquele bem original arruinado, não totalmente perdido ou destruído, como se fosse outra natureza. É o mesmo ser decaído que é salvo. Esse ponto pode auxiliar no vislumbre do aspecto transformador da graça na natureza.

A natureza possui capacidade para Deus, mas que não age por ela mesma, pois necessita da graça. Isso é diverso da afirmação protestante de que a natureza não possui capacidade para a graça.

A transformação da natureza pela graça supõe a continuidade da mesma natureza decaída. Isso é bíblico. As comparações com a transformação do universo e da descida da Nova Jerusalém estão conformes essa verdade.

O mundo tem seus elementos renovados, e a Nova Jerusalém desce à terra renovada. Portanto, essa separação natureza e graça é o problema. E, como indicado acima, essa separação que traz a teologia protestante acontece por uma má interpretação da teologia católica, que muitas vezes afirma o mesmo que a teologia protestante pretende afirmar em outros termos.

De fato, a teologia protestante procurou adotar termos diversos para ensinar conceitos bíblicos. Em alguns casos desconsiderou o que já havia sido resolvido. Equivocou-se nesses momentos. Uma vez negando esse ponto, da busca por nova terminologia e novos conceitos, surge um conceito errôneo da doutrina original, e é introduzido um equívoco para tentar corrigir o que não está errado.


Gledson Meireles.

 

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