Refutação:
O recebimento da justiça de Cristo
As
citações em que se vêem os padres da Igreja falando do recebimento da justiça
de Cristo pelos crentes, citadas por Busenitz, seriam um prenúncio da doutrina
dos Reformadores.
Um
exemplo, talvez o mais evidente, segundo o autor reformado, seria da Epístola
a Diogneto, na qual ele escreve que: “Pois
o que mais conseguiria cobrir nossos pecados exceto sua justiça”, falando
da “doce permuta”, onde a “perversidade de muitos fosse oculta em um
único justo, e a justiça de um justificasse muitos transgressores”.
Essas
palavras estariam “em plena concordância
com a visão clássica da Reforma”, mas também estão em total conformidade
com a perspectiva Católica ensinada no Concílio de Trento.
E
não podia ser diferente, pois a doutrina de Trento é a mesma doutrina da
Sagrada Escritura e testemunhada pelos padres da Igreja.
Mas,
há um ponto em que devemos nos deter mais. O autor protestante não diz que essa
doutrina escrita por esse autor do século segundo é igual à dos reformadores,
mas que os “pais prenunciam a doutrina”
dos reformadores sobre a justiça imputada de Cristo. Assim, o que Diogneto escreveu
está em total concordância com o Concílio de Trento, mas, talvez, apenas seria
exemplo do preparo para o desenvolvimento da doutrina dos reformadores.
Jordan
Cooper, por sua vez, explica a passagem de Diogneto como se fosse idêntica a
dos Reformadores, onde a justiça de Cristo é colocada sobre o pecado mas não
infundida, causando transformação interior. Para Cooper, isso seria coerente
com a afirmação do autor Diogneto, onde fala da justiça alheia.
Contudo,
diferentemente da doutrina dos reformadores, é um fato que Diogneto não escreve
que o pecado é apenas coberto sem deixar de existir. Não diz que a justificação
é apenas a não imputação do pecado e imputação da justiça. Diz sim, que a
perversidade de muitos fica oculta no único justo e a Sua justiça justifica muitos
transgressores. Essa linguagem é linguagem católica.
Isso
se entende de forma realista, pois o que para Deus é oculto não existe. Se os
pecados ficam ocultos para Deus na justificação do pecador, é porque eles são
perdoados, destruídos, e a justiça de Cristo cobre o seu lugar, limpando a alma
pecadora.
A
Bíblia afirma: “Ora, sabemos que o juízo
de Deus contra aqueles que fazem tais coisas corresponde à verdade”
(Romanos 2, 2). Deus não pode imputar a justiça de Cristo sem que ela seja dada
ao pecador, e não imputar o pecado se o mesmo continua no pecador. A imputação
da justiça inclui sua infusão na justificação e a não imputação significa ao
mesmo tempo o perdão e a destruição do pecado.
Imputar
a justiça e não transferi-la realmente ao justificado e não imputar o pecado
que está no pecador é mentira. Por outro lado, o juízo de Deus corresponde à
verdade. Quando Deus justifica o ímpio, o ímpio é declarado justo, pois, recebe
a justiça de Cristo.
Um
ponto importante é que o Concílio de Trento não ensina que a justiça do pecador
possa justificar. Por isso, o pecador não pode vangloriar-se, pois não é sua própria
justiça a base da justificação. Esse ponto é mantido na doutrina dos
reformadores protestantes.
Agora
com citação de São Basílio (300-379), no século quarto, Busenitz fala da
justificação não pela própria justiça, mas o pecador é justificado unicamente pela fé em Cristo.
Obviamente,
como diz Michael Haykin, São Basílio se opõe fundamentalmente à noção de que o
homem possa salvar-se a si mesmo por meio das boas obras. E afirma que esse
texto de São Basílio era um dos citados pelos reformadores para provar que a doutrina
reformada não era nova.
Vamos
notando aqui como é comprovada a doutrina por meio da patrística. O autor
Nathan Busenitz citou a Carta a Diogneto, do século II, e agora cita São
Basílio do século IV.
Vemos
que isso é o que faz a Igreja Católica. Por exemplo, para corroborar a doutrina
da imaculada conceição, que é combatida pelos protestantes, a Igreja cita
fontes do século II, III, IV e assim por diante, de modo a formar um corpo de
textos para reforçar o argumento.
A
próxima citação é de São João Crisóstomo (347-407), do quarto século e início
do quinto século. Ele afirma que o propósito da morte de Cristo foi fazer o bem em nós...a fim de nos tornar
justos. Os pecados não foram somente abolidos na cruz mas a justiça de
Cristo foi concedida, diz São João Crisóstomo.´
Ainda,
Cristo se fez pecador para tornar justos os pecadores. Obviamente não se trata
de tornar-se pecador ontologicamente, mas ser vítima do pecado, sem pecado, inocentemente,
para que os pecadores, de fato, se tornem realmente justos.
E
São João Crisóstomo especifica a palavra da Escritura, afirmando que São Paulo
não escreveu que Jesus se tornou pecador, mas “pecado” para que fôssemos feitos
“justiça”.
Cristo
que não pecou e não conheceu pecado, Se tornou pecado, no sentido de vítima
inocente oferecida em sacrifício, para que o pecador que não operou para a
justiça e não conheceu a justiça, tenha a justiça d de Cristo.
E
afirma que a justificação não é por obras, pois não se pode encontrar nenhuma
mancha, “mas pela graça, caso em que
todos os pecados são destruídos”. É claro que se os pecados são destruídos
eles deixam de existir. É a mesma doutrina do Concílio de Trento.
Mas
Busenitz entende bem a permuta, onde Cristo assume a culpa do pecador e a Sua
justiça é dada ao pecador. Deus tratou a Cristo “como uma oferta pelo pecado
sobre a cruz”, como explicado acima. E afirma que os crentes não são justos por
hábito, e conclui o autor protestante: “mas
Deus, por causa de Cristo, os trata como qualitativamente justos (em termos de
sua condição perante ele”. Esse ponto está errado.
Como
afirmado antes, Deus não trata os pecadores justificados “como qualitativamente
justos”, mas infunde a justiça de Cristo para que sejam de fato justos, não com
justiça própria, mas com a de Cristo. E a partir daí construam a justiça
própria com as boas obras que Deus preparou.
São
João Crisóstomo escreve: “fomos, de uma vez
por todas, libertos da punição, e despidos de toda iniquidade, e fomos
também renascidos do alto, e ressuscitados, tendo sepultado o velho
homem, e fomos redimidos, santificados, levados à adoção, justificados, e
feitos irmãos do Filho Unigênito, e herdeiros do mesmo corpo juntamente
com ele, e reconhecidos como sua carne, até mesmo como um corpo com a cabeça, fomos unidos a ele!”
Note
o leitor que São João Crisóstomo fala da libertação da punição, do perdão, da
regeneração, da ressurreição espiritual, da redenção, da santificação, da
adoção, da justificação, tudo como sendo o mesmo momento. O mesmo que é
ensinado no Concílio de Trento, e diferentemente do que é ensinado pelos
Reformadores.
A
imensurável justiça de Cristo é a base pela qual Deus declara justo o pecador,
conforme 2 Coríntios 5, 21, porque Deus dá ao pecador a justiça de Cristo e não
apenas imputa a justiça como sendo o
pecador, como já explicado acima. Assim, o entendimento protestante da
imputação apenas é um erro grave.
O
Cânon 10 do Concílio de Trento ensina: “Se
alguém disser que os homens são justos sem a justiça de Cristo, pela qual Ele
mereceu para nós sermos justificados, ou que é por aquela justiça mesma que
eles são formalmente justos, que seja anátema.” Então, a justiça humana não
pode justificar.
Assim,
ensina o Cânon 11: “Se alguém disser que
os homens são justificados ou pela imputação somente da justiça de Cristo ou
pela remissão dos pecados somente à exclusão da graça e da caridade que é
derramada nos seus corações pelo Espírito Santo, e que é inerente neles, ou
mesmo que a graça pela qual somos justificados é somente o favor de Deus, que
seja anátema”.
Portanto,
é preciso que o cristão católico creia que a justificação acontece quando Deus
declara justo o pecador, tornando-o justo verdadeiramente, e perdoando seus
pecados, ao mesmo tempo em que derramada o amor nos corações perdoados pela
ação do Espírito Santo. É como algo forense e transformador no interior do ímpio.
limpando o seu pecado e santificando-o.
Assim,
o que escreve São João Crisóstomo está de acordo com o Concílio de Trento e tem
essa oposição à doutrina dos reformadores.
Continua
citando São João Crisóstomo, quando diz que fomos comprados e adornados pelo
sangue de Cristo e nos igualamos a anjos e arcanjos. Isso significa o que está
acima explicado no Concílio de Trento, que na justificação há também a ação
interna do Espírito Santo. De fato, continua São João Crisóstomo, ensinando que
os redimidos estão revestidos do próprio Rei.
Não
se trata apenas de tirar a capa do pecado e por o manto de Cristo, mas recebê-lo
por ter sido declarado justo e tornado justo nessa justiça.
A
citação de São João Crisóstomo, citada em seguida, corrobora essa leitura: “Aqueles
que, por sua fé em Cristo, haviam abandonado o fardo de seus pecados como uma
velha capa...”. Se os pecados são abandonados, ficaram para trás, como
acontece ao deixar uma velha capa. O homem assim perdoado não está com seus
antigos pecados por baixo da capa, mas deixou-os naquela capa velha deixada. O
fardo dos pecados é equiparado à capa que é tirada.
Assim,
ele fala da “luz da justificação”, que ilumina a alma, e não apenas que cobre o
pecado.
Essa
linguagem não “está de acordo com a ênfase da Reforma na natureza extrínseca da
justiça imputada de Cristo, com a qual o crente é revestido”.
Nathan
Busenitz afirma que o corpus patrístico
prenuncia distinções importantes da doutrina reformada. Uma dela é a
necessidade da justiça extrínseca, a qual vem de Deus. Mas isso é o mesmo que
ensina o Concílio de Trento. Não é a justiça própria que justifica, é
necessária uma justiça extrínseca. Sem a justiça de Cristo não há justificação,
e quem ensinar isso seja anátema, declara o concílio.
A
imputação do pecado do crente a Cristo é algo pacífico, pois Jesus se fez
pecado por nós, e a imputação da justiça alheia ao crente é também aceitável,
contanto que a justiça seja derramada no interior do justificado.
A
continuidade que há entre os pais da Igreja e o Concílio de Trento é clara.
Quanto às ênfases dos Reformadores, nada é encontrado no corpus patrístico.
E
o autor protestante tenta através da investigação histórica uma aproximação
entre o entendimento de Santo Agostinho e o dos reformadores, pois entende que
está em conformidade.
Em
nota há uma citação de São Cirilo de Jerusalém (313-386) que mostra que a
justiça que pode ser acumulada por uma vida de boas obras é dada por Cristo
instantaneamente. Mas isso corrobora a leitura católica de sempre.
A
justiça através das boas obras, na graça de Deus, que pode ser alcançada por
muitos anos é recebida gratuitamente e imediatamente na justificação: “Para os justos, foram muitos anos sendo aprazíveis
a Deus; mas o que lograram alcançar após muitos anos de bem fazer, esse Jesus
agora lhes concede em uma hora apenas. (Homilia sobre a Humildade, 20, 3)”
Dificilmente
Lutero escreveria algo assim, pois ensinava que as obras antes da justificação
são pecaminosas e mesmo as boas obras na graça não contam em nada para a
salvação. Ao passo que São Cirilo fala naturalmente das obras dos justos, alcançadas
aos poucos durante a vida, e as compara com a obra imensa concluída por Cristo
que pode ser recebida pela fé.
Gledson Meireles.