Em Romanos 14, 23 está
escrito que tudo o que não provem da fé é pecado. Isso tem um significado
profundo, mas há uma interpretação que tem levado a erros sérios, que pode levar a verdadeiras
heresias, pode-se dizer, e é pregado por pessoas de conhecimento teológico
considerável, e de bastante influência.
De fato, não há no
texto nada que possa levar a essa direção, mas o texto sem o contexto é um pretexto
para a heresia, como afirma ditado muito conhecido.
O texto deu margem a
sugerir que pessoas não convertidas a Cristo pecam em tudo o que fazem, ainda
que as suas obras sejam humanamente boas. Se tudo o que não provem da fé é
pecado, e uma pessoa não tem fé, então tudo o que faz é pecado. O pecado aqui
considerado como a fonte de todas as ações. Essa seria uma intepretação da
passagem.
No entanto, essa
intepretação não tem respaldo do contexto geral da Bíblia. Ainda, a
interpretação verdadeira tem que fluir naturalmente, e estar de acordo com a
Bíblia. A leitura correta de qualquer passagem bíblica não precisa de
explicações que mudem o seu sentido. Essa é uma das características da
verdadeira intepretação.
Antes de prosseguir com
a exegese do texto, é preciso afirmar que o Concílio de Trento condenou a
doutrina semelhante, no decreto sobre a Justificação cânon 25.
Para John Piper, o
texto de Hebreus 14,23 apresenta “a mais penetrante e devastadora definição de
pecado”. Isso porque ele entende que todas as ações que não estão radicadas na
fé, ou, em outras palavras, como ele as usa, que “faltam confiança em Deus”,
são pecados. A explicação é um tanto sedutora, quando afirma que as ações boas
e morais diante dos homens são nesse caso pecados diante de Deus, que sonda o
interior.
Analisando o contexto,
Piper afirma que Paulo está “redefinindo o pecado”.
Em outro artigo, sobre
o mesmo ponto, tratando-o de forma mais direta, o autor leva em consideração
interpretações contrárias à sua, a começar por São João Crisóstomo.
Ele argumenta que o
ponto específico tratado nessa passagem revela um ponto universal. Todas as
ações fora da fé seriam pecados, citando Rm 4, 20; 1 Cor 10,31; Hb 11, 6.
Citando Santo Agostinho, afirma que até as virtudes dos incrédulos são pecados.
Tudo parece fluir de
uma lógica equilibrada, a partir de passagens bíblicas. Mas, será mesmo? Tudo o
que não procede da fé é pecado. Até mesmo uma boa ação seria pecado, uma ofensa
a Deus, merecedora de castigo?
A Bíblia ensina que as
ações dos incrédulos, que vivem fora da graça santificante de Deus, e por isso
vivem longe de Deus, sabendo que esses não agem em amor a Deus, não têm fé, e
não estão no agrado de Deus, pode-se afirmar que a sua vida não é santificada
pela graça salvadora, e que suas ações, por melhor que sejam, não possuem
mérito para serem premiadas, ou galardoadas. Essa é a verdadeira intepretação
da passagem. Por que negar a interpretação de Piper? Porque afirma que todas as
ações são pecaminosas, não por estarem contra a Lei de Deus, mas porque não são
feitas na fé.
Essa visão confunde a
vida de alguém que está fora do reino de Deus com todas as suas ações, mesmo
aquelas que estão de acordo com a Lei de Deus. Sabemos que Deus recompensa um
bem feito por qualquer pessoa, assim como a chuva cai sobre bons e maus, o que
significa que a graça geral de Deus está sobre todos. Portanto, não é correto
afirmar que todas as ações dos incrédulos são pecados.
Para refutar essa
doutrina com mais robustez, deve-se ter atenção às seguintes razões: o texto é
interpretado fora do contexto, partindo de um ponto específico e sugerindo que
esse está dentro de um ponto universal. É algo que faz um salto do contexto
para algo geral, embora o texto em si não afirme isso, nem o seu contexto.
Ainda, os demais textos
que são apresentados para reforçar essa interpretação também não afirmam o que
foi concluído. Em Romanos 4, 20 é dito que Abraão foi forte na fé e deu glória
a Deus. Afirmar com isso que todos os que não têm fé estão a todo o momento
desagradando a Deus com todas as ações é algo que não vem do texto, mas de um
princípio criado que está acima dele.
Em 1 Cor 10, 31 ensina
que tudo o que o cristão faz deve fazê-lo para a glória de Deus. Isso não está
ensinando que todos os incrédulos estão sempre desagradando a Deus em todas as
suas práticas, porque não estão dando glória a Deus. Obviamente, suas vidas não
agradam a Deus, por suas obras más. Porém, na Escritura não está escrito que
todas as suas obras são más, mas aquelas que desagradam a Deus, que não estão
de acordo com Sua Lei expressa.
Mais, ainda, em Hebreus
11, 6 está escrito que sem fé é impossível agradar a Deus. Isso quer dizer que
os incrédulos não podem agradar a Deus, ter a vida de Deus em si mesmos, e
viver de acordo com a Vontade de Deus. Significa, então, que não estão salvos,
e que a fé é a raiz para tudo o possa agradar o Senhor. Assim, mais uma vez,
não significa que um incrédulo faça algo humanamente bom e seja tido como mal.
Obviamente, o Senhor
sonda os corações, e mesmo uma ação boa pode ter uma má intenção, e ser pecado.
No entanto, não se pode afirmar biblicamente que todas as ações dos incrédulos
sejam pecaminosas e merecedoras da ira de Deus. Isso é algo que o texto não
afirma.
Diante de tudo isso,
vamos agora para a interpretação correta da passagem. São Paulo escreve que
tudo o que não procede da fé é pecado. O contexto afirma que são coisas feitas
contra aquilo que a pessoa tem consciência, uma obra que é praticada em
oposição a um dado da consciência.
Para ficar mais claro,
basta pensar que fé é o mesmo que crença, pois exercer fé é crer. Ter fé é
acreditar, é o ato de crer. Dessa forma, tudo o que não provem daquilo que o
cristão crê é pecado. O que não provem da crença é pecado. Comer carne com a
consciência de estar fazendo algo errado é pecado, porque o que come o faz
contra aquilo que ele pensa ser correto.
Já resolvida a questão,
outra coisa pode ser adicionada à refutação. De fato, a tradição apostólica
afirma que o texto não está tratando de um princípio geral, não é uma definição
de pecado, e tem uma esfera limitada de acordo com o que foi explicado acima.
Assim é que São João Crisóstomo explica que o texto não se refere a tudo.
O comentário
protestante de Ellicott afirma que em Romanos 14, 23 há um princípio geral para
esse caso tratado, e afirma que Santo Agostinho errou ao inferir que mesmo as
boas ações são pecado. Barnes argumenta que a passagem não ensina que todos os
atos de um incrédulo são pecados, embora ele creia nessa doutrina. Afirma que a
passagem não trata disso.
Enfim, Santo Tomás
tratou da questão e ensinou que o que procede da incredulidade é pecado. Ensina
que a razão natural pode direcionar a intenção a bens naturais. Somente a fé
direciona ao bem sobrenatural. Por isso, mesmo os que não têm fé podem fazer o
bem pela luz da razão, em um nível natural.
A prova bíblica cabal
está em Atos 10, 4-31, apresentada por Santo Tomás, em que Cornélio tem suas
obras aceitas por Deus, o que não seria possível sem a fé, mesmo que implícita,
e ao mesmo tempo refuta a doutrina que toda obra de um incrédulo é pecado.
Cornélio era ainda incrédulo, e suas obras não eram pecaminosas em geral. Ele era um incrédulo em relação ao evangelho,
mas não um incrédulo que não possuísse uma fé implícita, que dirigia suas
intenções ao bem.
Em consideração a Rm
14, 23, argumentando com 1 Cor 10, 31, Santo Tomás afirma que a relação do fiel
com o bem é diferente daquela dos infiéis com o mal. Não há condenação na vida
do cristão que tem a fé viva. No entanto, na vida do incrédulo há o bem da
natureza. Quando ele age de acordo com a razão sem um fim mal, “ele não peca”,
afirma Santo Tomás.
Mas, explica o grande
teólogo, o bem que o incrédulo faz não tem mérito diante de Deus, pois não é
proveniente da graça. Ele explica que nada é bom sem Deus, nenhum bem é
meritório sem a graça, e a melhor virtude é falsa. Fora da graça todo bem
praticado contra a fé ou contra a consciência é pecado. Essa é a explicação
correta, equilibrada, escriturística.
Essa realidade é um
tanto mal compreendida entre os que abraçam o antigo erro de que tudo o que o
infiel faz é pecado. A mente e o coração corrompidos não podem agradar a Deus.
Isso não quer dizer que nada pode sair de bem, temporalmente falando, sem fins
para a vida eterna, de um coração mal. Assim é que os maus podem agir para o
bem do mundo, e isso é reconhecimento pela teologia reformada. E isso é o que
Santo Tomás está afirmando.
Também, o mérito diante
de Deus pelas obras praticadas pelos que têm fé não significa uma salvação por
obras, já que as obras em si não contêm nada que possa produzir mérito. Por
isso Santo Tomás explica que somente os atos que nascem da graça de Deus, estão
envoltos pela graça.
O sentido correto que
ajuda a traçar essa linha divisória entre a heresia e a verdade é que a verdade
harmoniza-se com a Escritura e com a razão, enquanto a heresia esbarra-se em
ambas.
Quando se pensa que a
melhor das virtudes ou das boas obras são pecados, quando praticadas por um
incrédulo, está apenas afirmando que elas nascem de uma natureza corrompida e
fora da graça, por não agradarem a Deus, por não unirem o homem a Deus, pode
não ajuntarem méritos para a vida eterna.
Essa realidade não pode
chegar ao ponto de destruir a natureza humana, e a razão, afirmando que todo e
qualquer ato é pecado, pois uma vez que a natureza humana foi criada por Deus,
é boa em si, embora corrompida, ela não foi completamente corrompida em toda a
sua essência, mas apresenta a corrupção em todas as suas partes. Por isso, ao
afirmar que a razão ainda pode agir bem naturalmente, e por isso praticar obras
que não sejam pecados, está afirmando que embora essas obras não mereçam de
Deus a graça, elas não O ofendem por serem praticadas por um infiel.
Esse assunto é bastante
complexo e profundo. Que o Senhor nos ajude a compreendê-lo. Louvado seja nosso
Senhor Jesus Cristo.
Gledson Meireles.
Nenhum comentário:
Postar um comentário