quarta-feira, 3 de maio de 2023

Livro: A lenda da imortalidade da alma, considerações do capítulo 2

Refutando afirmações nas considerações do capítulo 2 

Ao tentar provar que a alma é meramente um aspecto do ser, restrita a tudo o que o corpo pode experimentar, há o texto de Ap 6, 9-11, tratado no tópico, que não possui o que foi pretendido para o argumento. Ali, as almas aparecem fora do corpo. Além do mais, já participam da promessa. Isso é bastante considerável.

Os textos que geralmente são apresentados como indicando a alma imortal são poucos. De fato, apenas alguns, como 1 Reis 17, 21; Jó 14, 22; Mateus 10, 28 e Mateus 16, 25. É preciso entender as implicações.

O texto de 1 Reis fala do princípio de vida ao dizer que a alma voltou ao corpo para ressuscitar um morto. No texto de Jó aparece a carne que sofre e a alma que lamenta. Em Mateus há o famoso texto onde a alma não morre, e o outro onde é dito que a alma deve ser salva, no sentido de vida que terá sido dada de volta na ressurreição para sempre.

São alusões à alma espiritual, mas o contexto bíblico geral, que aparece no conjunto das refutações feitas aqui é que prova a imortalidade da alma.

Podemos afirmar que assim como 1 Rs 17, 21 fala da alma como vida, voltando ao corpo, o que denota o princípio espiriutal, a alude à imortalidade da alma, vemos que em Tg 2, 27 está escrito que o corpo sem espírito é morto. Assim, a alma é o espírito que dá vida. O corpo sem alma é morto, o corpo sem espírito é morto.

O mortalismo ensina o monismo, onde o ser humano não é divisível. Dessa forma, quando São Paulo fala do combate entre espírito e carne isso seria apenas as duas orientações éticas que o ser humano experimenta em si, em sua condição pecaminosa.

Mas, na questão da morte, isso parece exigir uma resolução. Se o homem já está submisso à Lei de Deus pelo espírito (cf. Rm 7, 26), enquanto ainda está escravo da Lei do pecado pela carne, deve-se questionar o que ocorre quando morre o salvo. Se essa libertação é apenas um penhor o salvo leva para um dia ser ressuscitado, como exige a interpretação mortalista, então nenhum salvo estaria usufruindo dessa libertação ainda, visto que a carne ainda está sujeita à Lei do pecado.

No entanto, se a Lei do pecado na carne equivale a dizer que todo o ser deve sofrer a morte sem existência para que um dia seja salvo na ressurreição, isso mostra que de fato essa submissão à Lei de Deus seria útil somente enquanto vida, e tendo resultados somente na ressurreição.

Por outro lado, a doutrina da imortalidade da alma, como tradicionalmente é defendida pela Bíblia e diante de quaisquer objeções apresentadas, ensina que o salvo já está liberto da lei do pecado, pois serve Lei de Deus em seu espírito, e na morte já pode usufruir da glória com Cristo, à espera do dia em que seu corpo será liberto da Lei do pecado.

O morto está livre do pecado, e assim ensina Romanos 6, 7, pois o salvo está morto para o pecado: Pois quem morreu, libertado está do pecado. Essa libertação é feita pela crucificação do velho homem (v. 6). Cristo morreu pelo pecado, e agora está vivo, como ensina o v. 10.

Se todos os salvos devem considerar-se mortos para o pecado e vivos para Deus “em Cristo Jesus”, então de alguma forma essa vida de Cristo já vale para os vivos e para os mortos, pois a salvação em Cristo já está garantida, Cristo está vivo, e os cristãos podem usufruir dessa realidade. Esse é outro problema para o mortalismo que afirma que ninguém usufrui da salvação após a morte, pois não existiria, mas isso seria somente na ressurreição.

O homem exterior e o homem interior em 2 Cor 4, 16 é também lembrado nesse ponto, já que se fala da tribulação presente e das coisas que são procuradas pelo salvo, que são invisíveis e eternas (v. 18). Parece mesmo afirmar que já agora os salvos mortos, que renovaram seu interior dia a dia (v. 16), vivem para Deus nas coisas que procuraram, que agora são invisíveis. Dessa forma, já explica-se a glória das almas pela sua união com Cristo.

Há algo no homem que é muito profundo. São Paulo afirma que deleita-se na Lei de Deus no “no homem interior” (R 7, 22). Mas há nos membros (μέλεσίν) outra lei que luta contra a lei da mente (νοός).

No verso 18 chega a dizer que nada de bom habita “em mim”, mas não no sentido de não habitar o bem na pessoa inteira. A passagem é mais clara, pois São Paulo esclarece que essa parte não é o todo da pessoa, mas “na minha carne”: “Eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não habita o bem, porque o querer o bem está em mim, mas não sou capaz de efetuá-lo”. O mal está em um lugar na pessoa, e o bem em outro.

Se há o querer fazer o bem, e ao mesmo tempo outra força que exerce tamanho poder que faz praticar o mal, ou seja, que faz certamente querer o mal, esses dois desejos na mesma pessoa devem vir de duas partes diferentes, de dois aspectos do ser, mas que não podem, ao que parece, serem o ser total, como se o mesmo não pudesse ser separado em partes. Essas duas orientações éticas são mostradas como arraigadas em partes da pessoa humana.

De fato, se o bem não habita nos membros, os membros não podem constituir o ser inteiro, já que se diz que o querer o bem está “em mim” também. Fica claro que existem duas partes sob duas leis. Obviamente, a pessoa como um todo sofre essa luta, na dualidade, no holismo bíblico.

No verso 26 temos que servimos à Lei de Deus na mente e à lei do pecado na carne. O homem interior é a mente, é o espírito, é a alma. O homem exterior, então, é o corpo, é a carne, são os membros.

O verso 23 é muito emblemático para a dualidade da natureza humana, e parece ultrapassar a simples realidade de aspecto, introduzindo mesmo a distinção e o caráter separável de corpo e alma.

O contexto inteiro afirma que há em nós uma Lei (Rm 7, 21) que nos faz desejar o bem, mas se encontra em nós outra Lei, e o que resulta é o mal. Nós nos deleitamos, segundo o homem interior, na Lei de Deus, mas encontramos em nossos membros outra lei, que luta contra a lei da mente. Isso é bastante profundo. A carne está sujeita á lei do pecado e luta contra a mente que está submissa à lei de Deus.

Obviamente a integralidade da natureza humana explica esse conflito, quando um querer é substituído por outro, gerando outro ato, o pecado, onde um aspecto na nossa natureza está manchado e mais levado ao pecado, produzindo essa tendência que mancha e atinge todo o ser, proveniente da carne, mas que outro aspecto possui a lei santa de Deus.

Se isso for somente relativo aos aspectos distintos, mas não separáveis, parece haver um problema quando o assunto é a morte.

Se a Escritura afirma em Rm 8, 23 que esperamos a redenção do corpo, isso parece voltar a atenção a essa realidade de que a mente já está santificada pelo Espírito Santo que habita em nós. Parece indicar que a mente está em maior profundidade, a ponto da lei de Deus ser chamada da lei da mente e contraposta à lei que está nos membros.

Disso resulta que, se existisse um monismo, a morte aniquilaria aquilo que possui as primícias do Espírito, aquilo que já está preparado, aquilo que foi renovando-se dia a dia, como homem interior, e que, de certa forma, seria o mesmo que admitir a morte do que está lutando através da santa lei de Deus.

Assim, o ser humano tem em si duas leis, uma de Deus e outra do pecado, em diferentes aspectos do ser. Mas ao dizer que a lei dos membros luta contra a lei da mente, se os membros que estão completamente entregues ao mal fossem o homem inteiro, onde um aspecto do homem estaria deleitando-se em Deus, com a Sua lei gravada na mente, com o bem de Deus em si, não concordaria com a afirmação de que há o bem na mente: “Homem infeliz que sou! Quem me livrará deste corpo que me acarreta a morte?” (Rm 7,2 4).

 

Como ficar livre de si mesmo? O apóstolo poderia apenas estar pedindo a transformação total do ser, mas o contexto afirma que é no corpo, na carne, nos membros, que está a concupiscência, a outra lei, a lei do pecado que luta contra a lei do espírito. Ao dizer que o corpo é que será redimido no último dia, que é o que será livrado do homem, que é aquilo que está sendo subjugado por aquele que está vivo para Deus, a Bíblia está afirmando a dualidade, o que é separável nas duas parte na morte, da alma e do corpo.

Por isso, Jesus disse que o espírito está pronto, mas a carne é fraca (Mateus 26, 41). Se a morte é para o mortalismo o aniquilamento do ser inteiro, essa parte preparada não recebe nenhuma serventia para os mortos, pois não seria parte separável, e seria aniquilada até o dia da redenção da outra parte, que indicaria todo o ser, a saber, da carne.

Para manter a morte em sua força total o mortalismo afirma que ela deve atingir todo o ser, e interpreta essa situação como inexistência de corpo e alma. Mas isso já entra em conflito com o que foi apresentado. Dessa forma, há separação corpo e alma na morte, e, portanto, a alma não é um termo que indica apenas algo material.

Gledson Meireles.

 

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