segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

Papias e a tradição

O bispo Papias, Padre Apostólico, mostra que a tradição apostólica guardada pelos presbíteros era de importância fundamental:

Mas quando encontrava alguém que tivesse sido seguidor dos presbíteros em qualquer lugar, fazia questão de inquirir quais eram as declarações dos presbíteros. O que foi dito por André, Pedro ou Filipe. O que foi dito por Tomé, Tiago, João, Mateus ou qualquer outros dos discípulos de nosso Senhor. O que foi dito por Arístion e pelo presbítero João, discípulos do Senhor; pois não penso que eu me tenha beneficiado com os livros tanto quanto me beneficiei com a voz viva dos que ainda vivem.[1]

Segundo Papias, ele havia aprendido mais por essa via da tradição do que através da leitura dos livros. E, como trata da doutrina cristã, sua explicação tem em comparação a tradição apostólica e as Escrituras Sagradas, e em sua experiência pessoal ele havia ajuntado mais informações por meio da viva voz do que por suas interpretações nas leituras da Bíblia. E isso porque fazia questão em inquirir sobre a doutrina que foi ensinada pelos santos apóstolos. Por isso, disse ter tido mais benefícios com a tradição.

Eusébio afirma que Papias escreveu outros relatos como “tradições não escritas recebidas, assim como certas estranhas parábolas de nosso Senhor e sua doutrina e algumas outras questões um tanto fabulosas demais.[2]

Para Eusébio Papias incluiu em suas narrações intepretações que não condiziam com dados da tradição apostólica, mas que eram opiniões suas, não compreendidas em sua acepção mística e de figuras, mas literalmente, como fez ao apresentar o reino milenar: “Nesses ele afiram que haverá certo milênio após a ressurreição e que haverá um reinado corpóreo de Cristo nesta terra; coisas que parece ter imaginado, como se fossem autorizadas pelas narrações apostólicas, não compreendendo corretamente aquelas questões que propunham misticamente e suas representações”.[3]

Pela menção de Eusébio o milênio não era a doutrina mais difundida na Igreja, e nessa questão a interpretação espiritual era aquela reconhecida como parte da tradição apostólica. Assim, Eusébio pensa que Papias não compreendeu bem essa distinção quando escreveu sobre o milênio, e o fez erradamente como se esse dado estivesse na tradição dos apóstolos. Menciona, então, Santo Irineu, que havia adotado, por influência de Papias, por esse ser escritor antigo, assim como muitos, que adotaram a interpretação milenar literal de Papais.

Sabendo, contudo, que Irineu foi reconhecidamente correto na doutrina, pois no Livro 4, capítulo XXI, Eusébio escreve, depois de citar vários escritores da Igreja: “Musano, também, e Modesto e, por fim, Irineu, cujas opiniões corretas acerca da fé saudável têm chegado a nós nas obras escritas por eles, conforme a receberam da tradição apostólica.[4] Isso mostra que, ainda que certa interpretação não fosse aceita geralmente na igreja, e que estivesse contida na obra de uma padre, esse ainda era considerado saudável em sua doutrina, pois aquela opinião era aceitável, embora ainda discutível, e que esperava o tempo para ser, se possível, cabalmente compreendida. É por isso que santo Irineu escreveu a respeito do milênio e reconhece que outros não adotavam aquela compreensão, e que esses eram igualmente fieis, corretos na doutrina. Essa constatação é uma prova de que o milenarismo ali ensinado não foi entendido como indiscutível doutrina apostólica por santo Irineu, mas uma interpretação possível, que em seu fundamento não era entendida como herética, e naquele momento não havia sido recusada pela Igreja.

É importante notar o valor da tradição em Papias. Muitas das informações que traz estão pautadas unicamente na transmissão que outros fizeram a ele, e que o mesmo tinha registrado, e guardado na memória, como ele escreve alhures. Diversos dados são passados, os quais não possuem a rigidez técnica usada posteriormente para compreender cada um, como nós os compreendemos hoje. 

Assim é que, ao falar da escritura do Evangelho por São Marcos afirma: “Assim Marcos não errou em nada ao escrever algumas coisas como ele as recordava; pois teve o cuidado de atentar para uma coisa: não deixar de lado nada que tivesse ouvido nem afirmar nada falsamente nesses relatos.” Não menciona alguma consideração a respeito da inspiração sob a qual São Marcos estava ao fazer o seu trabalho, mas a falta dessa informação específica no relato não indica mais que o mesmo não tinha em foco tratar da inspiração bíblica, mas mostrar conteúdos que eram guardados na Igreja por tradição.

Gledson Meireles.




[1] Eusébio de Cesareia, História Eclesiástica, Livro III, XXXIX.
[2] Eusébio de Cesareia, História Eclesiástica, Livro III, XXXIX.
[3] Eusébio de Cesareia, História Eclesiástica, Livro III, XXXIX.
[4] Eusébio de Cesareia, História Eclesiástica, Livro IV, XXI

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