As igrejas da Ásia comemoravam o dia 14 de Nisã como os judeus, onde o
jejum da quaresma terminava nessa data, indiferentemente do dia da semana que
caísse a mesma. O restante das igrejas em todo o mundo celebrava a páscoa no
dia de domingo. Escreve Eusébio: “Mas não era costume celebrá-la dessa maneira nas
igrejas do restante do mundo que observam a prática que subsistiu pela tradição
apostólica até o presente...”
Vendo isso ficamos informados que havia na Ásia uma tradição antiga em
celebrar a páscoa em data diferente do restante da Igreja no mundo, e que essa
tradição local, embora antiquíssima, não era considerada apostólica, mas um “costume
transmitido por seus pais”, afirmavam os bispos da Ásia.
Eles achavam estar seguindo o que seguiram o apóstolo São João e tantos
outros, e a regra de fé da Bíblia. Mas, Vítor, o bispo de Roma, que era
portanto papa, ainda que naquele momento o título não fosse usado
exclusivamente a ele, o papa Vítor desligou as igrejas da Ásia e outras, por
esse motivo. Porém, diante disso muitos bispos não concordaram com a dureza da
papa. E então: “Eles o exortaram de imediato, pelo contrário, para considerar
aquele curso calculado para promover a paz, a unidade e o amor mútuo”.
O bispo Polícrates da Ásia estava convicto na sua posição. O bispo Vítor
I (189-198) de Roma lançou o anátema e excomungou as igrejas dissidentes.
Outros bispos amigos de Vítor o exortaram a considerar a paz e a união e usar o
momento para fomentar esses valores.
Os bispos foram severos contra Vítor. Santo Ireneu escreve ao papa Vítor
para não dividir, cortando igrejas de Deus que observavam um costume antigo, e que
aquelas diferenças estabeleciam a fé comum entre as comunidades: “e a própria
diferença em nosso jejum estabelece a unidade em nossa fé”. É como afirmar que
os jejuns em dias e formas diferentes unia a todos, pois todos jejuavam.
Então, Santo Ireneu cita a tradição dos papas Sotero, Aniceto, Pio,
Higino, Telésforo e Xisto, que permitiam as igrejas da Ásia agirem assim. Dessa
forma, era conhecida de Roma a prática dos cristãos da Ásia Menor.
Menciona o caso de São Policarpo discutir questões com o papa Aniceto
(154-166), mas logo entrando em concordância. São Policarpo afirmava seguir a
tradição que aprendeu do apóstolo João, e Aniceto afirmava seguir os seus
predecessores. Eusébio afirma que Aniceto cedeu à opinião de Policarpo “sem
dúvida por respeito”. (Eus. Ces. Hist. Ecl. Liv. XXIII, XXIV) Assim, no lugar
que muitos lêem que o papa Aniceto recebeu ordem de Policarpo, o que está na
História é outra afirmação, ou seja, de que ambos discutiram questões, mas que
respeitosamente, por consideração ao irmão Policarpo, o bispo Aniceto aceitou sua
posição e cedeu.
Pelo exposto, pode-se extrair vários fatos. A Igreja geralmente observava
a Páscoa no domingo, enquanto que algumas regiões, como a da Ásia Menor,
mantinha tradição antiga, segundo afirmavam vir de São João, de que a páscoa
era celebrada em 14 de Nisã, como no Antigo Testamento. Mas, ainda em Jerusalém
e em outros lugares os judeus modificaram o dia de celebração após a destruição
da cidade.
O papa Vítor I excedeu no zelo, visto que nenhum dos seus predecessores
havia tomado semelhante atitude, e parece ter sido uma opinião particular, considerando
que os bispos em geral foram contrários à decisão do papa, e como o foi Santo
Irineu.
Disso vemos que o papa Vítor I era reconhecido em sua autoridade, pois
convocou sínodos regionais vários, e lançou ação disciplinar sobre uma região
distante de Roma, e todos viram normalidade em sua atitude, não concordando
apenas que a mesma devesse ser realizada, por pensarem ser questão de menor
monta, e que os papas anteriores conscientes da matéria não fizeram o mesmo.
As repreensões de Santo Irineu e dos bispos ao papa Vítor I são vistos
por muitos como exemplo de que não reconheciam a autoridade suprema do papa.
Mas, tudo o que girou em torno da questão mostra o contrário.
De fato, mostra aquela ocasião muitas características da Igreja Católica
naqueles tempos que são as mesmas hoje. Em meados do século 2º São Policarpo
vai a Roma conversar com o papa sobre questões polêmicas, mas que não atacavam
o dogma. A atitude do papa e do santo foi de manter a paz, deixando as questões
de datas, e etc., em segundo plano. O fato de ir a Roma tratar da questão com
seu bispo já denota a autoridade do papa em pleno século 2º, reconhecida por
alguém que conviveu com os apóstolos.
O que escreveu Santo Irineu é também de importância para entender o
poder do papa no tempo de Vítor I. O santo critica a atitude de dureza desnecessária
do pontífice, mas não nega seu direito de tomá-la. Vítor havia convocado
sínodos em diversas áreas, como na nas Gálias, onde presidia o bispo Irineu, e
na Palestina. Os demais bispos foram contrários a Vítor, mas o que puderam
fazer foi tentar demovê-lo da sua atitude, não negar sua autoridade.
Ainda, santo Irineu cita para argumentar com Vítor que os bispos de Roma
que vieram antes dele foram todos tolerantes para com essas questões de
importância menor. Essa era opinião de Irineu, de que não poderia introduzir
divisão por coisas de pouca monta como essa. Assim afirma dos papas: “em tempo
algum desligaram alguém só por causa da forma”. Esses papas não guardavam o 14
de Nisã, e nem permitiam que outros guardassem costume diferente daquele mantido
em Roma, mas permitia que outras igrejas nas demais localidades mantivessem
costumes tradicionais diferentes, “na forma”, coisas que não afetavam o dogma. Essa é a prova de que o papa de Roma podia
desligar igrejas.
A questão das datas era complicada, pois na Ásia pensavam estar seguindo
o costume de São João, mas em Roma o papa afirmava seguir seus predecessores, o
que remonta ao apóstolo São Pedro. O fato que reforça a posição de Roma contra
a opinião do bispo Polícrates é que segundo Eusébio, e confirmado pela
argumentação de Santo Irineu, as demais igrejas particulares do mundo estavam
unidas na mesma tradição com a comunidade de Roma, o que põe a região da Ásia como
de tradição mais recente.
E santo Irineu que presidia na Gália não escreveu com autoridade igual
ao bispo de Roma, mas como era de costume seu, enviava escritos para exortar e
ensinar a muitos outros bispos, em questões polêmicas, como afirma Eusébio, com
o fim de manter paz e unidade. Irineu concordava com o papa, mas era tolerante
àqueles que guardavam a “tradição de um costume antigo”. As divergências,
explica santo Irineu, vem da pouca exatidão que os antigos conseguiram guardar
quanto aos fatos. Ele diz: “talvez, não tendo regulado com rigidez suficiente, estabeleceram
a prática que nasceu de sua simplicidade e inexperiência.” Mostra assim que
acreditava na boa disposição dos outros que não mantinham a mesma data, e
outras coisas de natureza igual, mas que pensava que isso foi resultado de
perda da tradição apostólica naquele caso. Exortava a todos a manter a
tolerância nessas coisas.
Eusébio afirma que Irineu era “promotor da paz, exortou e negociou
questões tais como essa pela paz das igrejas”. Escrevia com sugeridas
exortações, não como alguém que presidia outras comunidades, e isso fica claro
pelo contexto do que diz.
De outra forma foi a posição de Vítor, que escreveu não para exortar e
sugerir algo, mas com autoridade, não negada, e excomungou bispos e cristãos de
outras localidades, usando e prerrogativa legítima. Isso explica que os que não
ficaram satisfeitos com essa posição do papa tentassem dissuadi-lo dela. O que
fez Santo Irineu foi positivo, pois evitou a excomunhão do bispo Polícrates e
dos cristãos da Ásia, que ficaram todos em comunhão com Roma, tolerados em
celebrar na data que aprenderam, não havendo cisma.
A fim de maior esclarecimento, Santo Irineu chamou Roma de “maior e mais
antiga igreja”, não em consideração a estar sediada na grande capital do
Império, e por ter sido fundada por Pedro e Paulo, como ele mesmo afirma esse
último fato, mas afirma também “aquela igreja que tem a tradição e a fé que vem
a nós depois de ter sido anunciada aos homens pelos apóstolos”. Além disso, que
já é o bastante para mostrar a exclusividade da Igreja em Roma na doutrina cristã
por sua fundação, Santo Irineu afirma que: “Com essa igreja, por causa da sua
superior origem, todas as igrejas devem concordar”. Esse é o bastante para
entender a posição da Igreja de Roma nas questões doutrinais, mas ainda há mais
na obra de Santo Irineu. (Against
Heresies, 3:3:2 [A. D. 189] em www.catholic.com.)
É por isso que o papa Vítor I tinha tal autoridade sobre as outras igrejas.
Com referência o tempo do papa Clemente, quando São Policarpo ainda
vivia, esse escreveu uma Epístola aos Coríntios, para resolver questões naquela
igreja. Muitos supõem que tal fato era corriqueiro, um costume de bispos
exortarem igrejas em outras localidades, assim como faziam os apóstolos, e que
não deveria esse fato servir de pretexto para pensar na autoridade papal de
Clemente.
No entanto, para quem assim pensa, o ônus da prova está do seu lado,
pois São Clemente foi papa, e escreveu sua epístola com tal autoridade. Embora
a prova esteja na responsabilidade de quem nega, acima está a prova da
autoridade papal de Clemente, para servir a quem quiser compreender melhor
as verdades cristãs.
Na epístola ainda há muitas outras verdades. Uma delas é que São Clemente afirma, no
capítulo 5 de sua carta, que após São Pedro dar o seu testemunho, ele “partiu
ao lugar de glória devido a ele”, em outras palavras, ele partiu para o
paraíso, ele partiu para o céu. De São Paulo ele disse o mesmo, afirmando que “partiu
para o lugar santo”. Para quem nega a imortalidade da alma, esse lugar de
glória fica sem sentido. Mas como Clemente cria na doutrina de que os santos
vão para o céu antes da ressurreição, é isso que ele está afirmando.
Em toda a discussão sobre a questão da data da Páscoa também aparece, na menção de Eusébio, algo da tradição das virgens consagradas, como as filhas de Filipe.
Também o fato do jejum para a Páscoa é um costume da Igreja em todos os
lugares, e de tradição apostólica, mantido até os dias atuais, com mudanças
apenas na forma, como afirma Santo Irineu, mas na unidade de doutrina. Tudo o
que está aqui foi apresentado segundo documentos da história da Igreja, de
acordo com sua apresentação.
Gledson Meireles.
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