Refutando afirmações nas considerações do capítulo 2
Ao tentar provar
que a alma é meramente um aspecto do ser, restrita a tudo o que o corpo pode
experimentar, há o texto de Ap 6, 9-11, tratado no tópico, que não possui o que
foi pretendido para o argumento. Ali, as almas aparecem fora do corpo. Além do
mais, já participam da promessa. Isso é bastante considerável.
Os textos que
geralmente são apresentados como indicando a alma imortal são poucos. De fato,
apenas alguns, como 1 Reis 17, 21; Jó 14, 22; Mateus 10, 28 e Mateus 16, 25. É
preciso entender as implicações.
O texto de 1
Reis fala do princípio de vida ao dizer que a alma voltou ao corpo para
ressuscitar um morto. No texto de Jó aparece a carne que sofre e a alma que
lamenta. Em Mateus há o famoso texto onde a alma não morre, e o outro onde é
dito que a alma deve ser salva, no sentido de vida que terá sido dada de volta
na ressurreição para sempre.
São alusões à
alma espiritual, mas o contexto bíblico geral, que aparece no conjunto das
refutações feitas aqui é que prova a imortalidade da alma.
Podemos afirmar
que assim como 1 Rs 17, 21 fala da alma como vida, voltando ao corpo, o que
denota o princípio espiriutal, a alude à imortalidade da alma, vemos que em Tg
2, 27 está escrito que o corpo sem espírito é morto. Assim, a alma é o espírito
que dá vida. O corpo sem alma é morto, o corpo sem espírito é morto.
O mortalismo
ensina o monismo, onde o ser humano não é divisível. Dessa forma, quando São
Paulo fala do combate entre espírito e carne isso seria apenas as duas
orientações éticas que o ser humano experimenta em si, em sua condição
pecaminosa.
Mas, na questão
da morte, isso parece exigir uma resolução. Se o homem já está submisso à Lei
de Deus pelo espírito (cf. Rm 7, 26), enquanto ainda está escravo da Lei do
pecado pela carne, deve-se questionar o que ocorre quando morre o salvo. Se
essa libertação é apenas um penhor o salvo leva para um dia ser ressuscitado,
como exige a interpretação mortalista, então nenhum salvo estaria usufruindo
dessa libertação ainda, visto que a carne ainda está sujeita à Lei do pecado.
No entanto, se a
Lei do pecado na carne equivale a dizer que todo o ser deve sofrer a morte sem
existência para que um dia seja salvo na ressurreição, isso mostra que de fato
essa submissão à Lei de Deus seria útil somente enquanto vida, e tendo
resultados somente na ressurreição.
Por outro lado,
a doutrina da imortalidade da alma, como tradicionalmente é defendida pela
Bíblia e diante de quaisquer objeções apresentadas, ensina que o salvo já está
liberto da lei do pecado, pois serve Lei de Deus em seu espírito, e na morte já
pode usufruir da glória com Cristo, à espera do dia em que seu corpo será
liberto da Lei do pecado.
O morto está
livre do pecado, e assim ensina Romanos 6, 7, pois o salvo está morto para o
pecado: Pois quem morreu, libertado está
do pecado. Essa libertação é feita pela crucificação do velho homem (v. 6).
Cristo morreu pelo pecado, e agora está vivo, como ensina o v. 10.
Se todos os
salvos devem considerar-se mortos para o pecado e vivos para Deus “em Cristo
Jesus”, então de alguma forma essa vida de Cristo já vale para os vivos e para
os mortos, pois a salvação em Cristo já está garantida, Cristo está vivo, e os
cristãos podem usufruir dessa realidade. Esse é outro problema para o
mortalismo que afirma que ninguém usufrui da salvação após a morte, pois não
existiria, mas isso seria somente na ressurreição.
O homem exterior
e o homem interior em 2 Cor 4, 16 é também lembrado nesse ponto, já que se fala
da tribulação presente e das coisas que são procuradas pelo salvo, que são
invisíveis e eternas (v. 18). Parece mesmo afirmar que já agora os salvos
mortos, que renovaram seu interior dia a dia (v. 16), vivem para Deus nas
coisas que procuraram, que agora são invisíveis. Dessa forma, já explica-se a
glória das almas pela sua união com Cristo.
Há algo no homem
que é muito profundo. São Paulo afirma que deleita-se na Lei de Deus no “no
homem interior” (R 7, 22). Mas há nos membros (μέλεσίν) outra lei que
luta contra a lei da mente (νοός).
No verso 18
chega a dizer que nada de bom habita “em mim”, mas não no sentido de não
habitar o bem na pessoa inteira. A passagem é mais clara, pois São Paulo
esclarece que essa parte não é o todo da pessoa, mas “na minha carne”: “Eu sei que em mim, isto é, na minha
carne, não habita o bem, porque o querer o bem está em mim, mas não sou
capaz de efetuá-lo”. O mal está em um lugar na pessoa, e o bem em outro.
Se há o querer
fazer o bem, e ao mesmo tempo outra força que exerce tamanho poder que faz
praticar o mal, ou seja, que faz certamente querer o mal, esses dois desejos na
mesma pessoa devem vir de duas partes diferentes, de dois aspectos do ser, mas
que não podem, ao que parece, serem o ser total, como se o mesmo não pudesse
ser separado em partes. Essas duas orientações éticas são mostradas como
arraigadas em partes da pessoa humana.
De fato, se o
bem não habita nos membros, os membros não podem constituir o ser inteiro, já
que se diz que o querer o bem está “em mim” também. Fica claro que existem duas
partes sob duas leis. Obviamente, a pessoa como um todo sofre essa luta, na
dualidade, no holismo bíblico.
No verso 26
temos que servimos à Lei de Deus na mente e à lei do pecado na carne. O homem
interior é a mente, é o espírito, é a alma. O homem exterior, então, é o corpo,
é a carne, são os membros.
O verso 23 é
muito emblemático para a dualidade da natureza humana, e parece ultrapassar a
simples realidade de aspecto, introduzindo mesmo a distinção e o caráter
separável de corpo e alma.
O contexto
inteiro afirma que há em nós uma Lei (Rm 7, 21) que nos faz desejar o bem, mas
se encontra em nós outra Lei, e o que resulta é o mal. Nós nos deleitamos,
segundo o homem interior, na Lei de Deus, mas encontramos em nossos membros
outra lei, que luta contra a lei da mente. Isso é bastante profundo. A carne
está sujeita á lei do pecado e luta contra a mente que está submissa à lei de
Deus.
Obviamente a
integralidade da natureza humana explica esse conflito, quando um querer é
substituído por outro, gerando outro ato, o pecado, onde um aspecto na nossa
natureza está manchado e mais levado ao pecado, produzindo essa tendência que
mancha e atinge todo o ser, proveniente da carne, mas que outro aspecto possui
a lei santa de Deus.
Se isso for
somente relativo aos aspectos distintos, mas não separáveis, parece haver um
problema quando o assunto é a morte.
Se a Escritura
afirma em Rm 8, 23 que esperamos a redenção do corpo, isso parece voltar a
atenção a essa realidade de que a mente já está santificada pelo Espírito Santo
que habita em nós. Parece indicar que a mente está em maior profundidade, a
ponto da lei de Deus ser chamada da lei da mente e contraposta à lei que está
nos membros.
Disso resulta
que, se existisse um monismo, a morte aniquilaria aquilo que possui as
primícias do Espírito, aquilo que já está preparado, aquilo que foi
renovando-se dia a dia, como homem interior, e que, de certa forma, seria o
mesmo que admitir a morte do que está lutando através da santa lei de Deus.
Assim, o ser humano tem em si duas leis, uma de Deus e outra do pecado,
em diferentes aspectos do ser. Mas ao dizer que a lei dos membros luta contra a
lei da mente, se os membros que estão completamente entregues ao mal fossem o
homem inteiro, onde um aspecto do homem estaria deleitando-se em Deus, com a
Sua lei gravada na mente, com o bem de Deus em si, não concordaria com a
afirmação de que há o bem na mente: “Homem infeliz que sou! Quem me livrará
deste corpo que me acarreta a morte?” (Rm 7,2 4).
Como ficar livre de si mesmo? O apóstolo poderia apenas estar pedindo a
transformação total do ser, mas o contexto afirma que é no corpo, na carne, nos
membros, que está a concupiscência, a outra lei, a lei do pecado que luta
contra a lei do espírito. Ao dizer que o corpo é que será redimido no último
dia, que é o que será livrado do homem, que é aquilo que está sendo subjugado
por aquele que está vivo para Deus, a Bíblia está afirmando a dualidade, o que
é separável nas duas parte na morte, da alma e do corpo.
Por isso, Jesus
disse que o espírito está pronto, mas a carne é fraca (Mateus 26, 41). Se a
morte é para o mortalismo o aniquilamento do ser inteiro, essa parte preparada
não recebe nenhuma serventia para os mortos, pois não seria parte separável, e
seria aniquilada até o dia da redenção da outra parte, que indicaria todo o
ser, a saber, da carne.
Para manter a
morte em sua força total o mortalismo afirma que ela deve atingir todo o ser, e
interpreta essa situação como inexistência de corpo e alma. Mas isso já entra
em conflito com o que foi apresentado. Dessa forma, há separação corpo e alma
na morte, e, portanto, a alma não é um termo que indica apenas algo material.
Gledson Meireles.