terça-feira, 15 de agosto de 2017

Identificando a Igreja no século II

Passando o período de vida dos apóstolos, que termina com a morte do apóstolo São João, entramos na era pós-apostólica, a começar do ano 100 em diante. A Igreja é guiada pelo Espírito Santo através dos homens que conviveram com os apóstolos, foram seus colaboradores e seus imediatos sucessores, ou seja, aqueles que nasceram no tempo dos apóstolos e continuaram a realizar as funções que os apóstolos realizaram e apontaram.

Os padres apostólicos são Barnabé, Clemente, Hermas, Inácio, Policarpo e Pápias. Há outros escritos, como a Didaquê, que por ter origens, reconhecidas por muitos, no século I, está entre os escritos dos padres apostólicos, e também a Carta a Diogneto. Esses homens cristãos católicos e seus escritos revelam como a Igreja viveu no século segundo, após os apóstolos. Seus escritos não foram inspirados pelo Espírito Santo, e eles já apontavam para as obras dos apóstolos, por exemplo, como fonte de autoridade inspirada.

Portanto, são esses os nomes que representam a Igreja no século II, e quem quer aprender sobre o ensino cristão nesse tempo deve ler esses escritos e estudar como viviam os cristãos de então.

É válido e muito proveitoso tirar as lições para a fé das controvérsias que existiram, das heresias que surgiram em fins do século I e início do século II, e saber como a Igreja reagia contra elas. Isso já foi feito na série Identificando a Igreja, que tratou do século I, no período inspirado, e que está na Bíblia Sagrada. A partir daí, temos os líderes da Igreja lutando contra as inovações doutrinais, mas não mais com inspiração como os apóstolos, mas, antes, seguindo a doutrina deixada pelos apóstolos.

Das várias controvérsias uma foi a de Cerinto. Ele era um gnóstico, aparecendo nos fins do século I, e afirmando que Jesus não é o Cristo ou Messias. Em sua doutrina, Jesus seria um homem e o Cristo seria o espírito que desceu como pomba em seu batismo, e que o abandonou após a paixão. Como visto, Cerinto lia as Escrituras e dava interpretações totalmente diversas às suas passagens. É bastante claro que Certino não identificava a Igreja da época, embora pregasse sobre Deus e sobre Jesus, e falasse a respeito das passagens do evangelho. A doutrina de que Jesus foi meramente humano possuído por um espírito chamado “Cristo” é uma heresia, e qualquer um que lê os evangelhos percebe que essa interpretação não cabe em nenhum lugar, pois Jesus Cristo é o Filho de Deus e o Espírito Santo desceu sobre Ele no batismo, permanecendo para sempre.

Surgiu também um judeu chamado Elchasai, que não cria no apóstolo São Paulo e afirmava que Jesus era um profeta antigo que voltou. Ensinava a circuncisão, o sábado e outras prescrições do judaísmo. Seus seguidores foram os elcasaítas.

Os cristãos seguiam a doutrina exposta pelos padres apostólicos, e não estavam entre os seguidores de Cerinto, ou de Elchasai ou entre os ebionitas. Dessa forma, é possível identificar a Igreja no século II.

Basta imaginar de que lado o leitor estaria se vivesse no século I: dos apóstolos ou dos gnósticos, judaizantes, nicolaítas etc.? E se vivesse no século II:

São esses os padres e escritores cristãos que expressam a doutrina da Igreja no século II. Os hereges, ou seja, aqueles cristãos que ensinavam doutrinas divergentes da doutrina geral da Igreja, não são os representantes legítimos da fé cristã, e isso é fácil perceber.[1]

Então, no século II, temos outros vários homens cristãos, muitos santos e doutos, que defenderam a fé cristã, e deixaram obras que mostram a doutrina da Igreja sendo pregada em sua época. São Aristides,  São Justino, Taciano, Atenágoras, Teófilo de Antioquia, Hermas, e Santo Irineu, que deixou obras valiosas sobre a doutrina da Igreja e as refutações das heresias que estavam espalhando-se em sua época. Estamos nos anos 100.

No século III temos Orígenes, certamente o maior erudito antes de Santo Agostinho. Também Santo Hipólito de Roma, Tertuliano, que por algum tempo foi bom cristão católico, mas que por seu rigor acabou aderindo às doutrinas rigoristas do movimento cristão montanista, e assim tenha separado-se da santa Igreja. Ainda, foram defensores da fé Minúcio Félix e São Cipriano, Arnóbio, Lactâncio e Comodiano.

As heresias que apareceram foram o gnosticismo, o grupo herege dos cerintianos, os nazarenos, os milenaristas (esses estavam em diversos grupos), a heresia de Marcião e o Montanismo. O milênio era aceito por muitos padres da Igreja, mas sempre como doutrina teológica válida e não como dogma. Até hoje há cristãos católicos que pregam o milênio.

Nas primeiras décadas do segundo século, nasceu Marcião. Foi um cristão que tornou-se monge, depois presbítero. Consta que era fervoroso. Mais tarde, começou a pregar uma doutrina estranha na Ásia, e depois em Roma. A Igreja de Roma o condenou e expulsou da cidade no ano de 144.

Sua doutrina consistia em ressaltar a redenção. No entanto, ele criou dois deuses, um do Antigo Testamento e outro do Novo, e negou os evangelhos sinóticos, aceitando apenas o de João, e somente os escritos de São Paulo apóstolo. É claro que tal ensino não pertencia ao patrimônio cristão deixado por Jesus e pelos Doze, e Marcião estava inovando. Dessa forma, deixou a Igreja Católica, e sem intenção começou a Igreja Marcionita, que durou até o sexto século.

Na segunda metade do século II, Montano, cristão da Frígia, inicia um movimento de reforma da Igreja. Certamente, para ele a hierarquia não agradava mais, assim como a moral mais caridosa e compreensiva da Igreja. Com isso, os montanistas foram distanciando-se da Igreja Católica, apesar de sua doutrina não ser essencialmente diferente, e formaram uma igreja à parte, condenada pelos papas do final do século II e início do III. Os escritos de Montano não foram preservados, e no século VII, ao que parece, o movimento recebeu sua última condenação.

Alguns poderiam pensar que o Montanismo, por ser mais radical, e estava disposto a voltar às origens, embora a Igreja Católica fosse ainda tão jovem, pois o movimento ganhava forma em seu meio pelos anos 170 em diante, relativamente pouco tempo após o período dos apóstolos, fosse a verdadeira continuação da Igreja.

Mas, as profecias do líder Montano, suas afirmações a respeito de si mesmo como profeta em quem o Espírito Santo habitava, sua recusa em conceder o perdão relativo a vários pecados graves, como o adultério, e outras atitudes ultra-rigoristas levaram-no para longe da Igreja Católica.

Por muito tempo a igreja montanista permaneceu, mas teve seu fim a partir do século VII. Nunca foi universal, não teve participação na estruturação doutrinal fundamental da Igreja, não conservou escritos, não conseguiu impor-se contra a santa Igreja Católica, não sobreviveu com suas notas características por tanto tempo.

Por esse motivo, não é correto afirmar que a Igreja Montanista fosse a verdadeira (pois nem existe mais hoje), nem que o movimento guardasse pureza de doutrina (que era em geral a mesma doutrina católica com adições de pontos de mais rigor), nem que tenha sobrevivido com outro nome, ou diluído em outra forma, e outras explicações nada plausíveis, pois a Igreja de Jesus não é tão estrita a nomes de destaque, nem tão frágil, nem é liderada por figuras que surgem no interior da Igreja Católica e que opõem-se e encontram resistência das autoridades da mesma Igreja.

De fato, se o Montanismo fosse a Igreja de Cristo ou que tivesse em seu meio os verdadeiros cristãos, seguindo os pontos fundamentais da fé pura, esse teria prevalecido contra a Igreja Católica e não o contrário. É fato histórico que o montanismo não contribuiu para a fé cristã como a Igreja Católica da qual saiu e combateu. Em seu tempo os bispos podiam dizer que Montano saiu “por que não era dos nossos”, como afirma o apóstolo São João. Esses são fatos objetivos que explicam sua posição no cenário cristão, que é o de heresia.

Por isso, os cristãos católicos eram aqueles que permaneciam na única Igreja do tempo apostólico, e continuaram assim durante o segundo século, enquanto que os gnósticos, cerintianos, nazarenos, marcionitas, montanistas, e outros, foram cristãos que deixaram a comunhão da Igreja Católica e passaram a formar grupos distintos, igrejas distintas (por vários motivos, como os comentados acima), que duravam algum tempo, até por séculos, mas desapareciam. Esses não podem ser os representanes da Igreja fundada por Cristo, tanto pela doutrina que pregavam, como pelas características que assumiam, como também pelos resultados históricos que tiveram, e por outros motivos que, conforme as Escrituras não são parte da santa Igreja Católica.

Dessa forma, no segundo século, é possível identificar a Igreja de Jesus, e é aquela que desenvolvia sob a direção de homens que conviveram com os apóstolos, que foram seus sucessores, que defenderam a fé, que deixaram escritos preciosos para o conhecimento da Igreja naquele período, e não aqueles dos quais foi falado acima, e que não prevaleceram, e foram desunidos entre si, e em relação à Igreja dos padres e doutos cristãos.

Gledson Meireles.



[1] Se alguns, porventura, levantaram a questão (absurda) de que os hereges eram de fato os cristãos verdadeiros, e que seus escritos foram destruídos ou perdidos, e que suas doutrinas foram desvirtuadas, até certo ponto, pelos apologistas oponentes, teríamos um quadro curioso.
Dessa maneira, as fontes ditas “cristãs” teriam sido obnubiladas, esquecidas, destruídas ou perdidas, e as fontes que temos, e que todos saber ser legítimas, seriam vítimas da dúvida e da má vontade, enquanto que as supostas fontes verdadeiras estariam peremptoriamente ocultas e nunca conhecidas pela posteridade, e seriam delas que a certeza adviria. Os que defenderiam essa tese fundamentariam suas doutrinas em fontes que ninguém conhece, e não existem mais, e  talvez não existiram jamais.
Além do mais, os grupos autores dessas fontes, os quais temos certeza que existiram, não sobreviveram por muito tempo. Alguns até atingiram séculos de existência, mas chegaram ao fim, sofreram modificações profundas, foram exterminados, mesclaram-se com outros movimentos, transformaram-se, sumiram. Essas características não são notas da Igreja Católica fundada por Jesus Cristo, pois nem os seus escritos contemplam a mensagem de Cristo, nem suas interpretações estão em consonância com Bíblia, sendo fácil identificar diferenças patentes. Por isso, objetivamente seria uma loucura aventar tal tese.

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