1. Não
se trata somente de que os Padres da Igreja escreveram “sobre autoridade da
Igreja e da Tradição” o motivo pelo qual não adotaram o princípio Sola Scriptura, mas pelo conceito que a
visão dos padres a respeito dessas duas instâncias não coadunam com o somente a
Bíblia. Eles criam na interpretação bíblica sempre mantida na Igreja, o que faz
com que a tradição e a autoridade da Igreja andem juntas e de igual modo, com a
mesma autoridade da Bíblia.
2. O
que os apóstolos pregaram? É o que está escrito na Bíblia. Como interpretamos
sua pregação conservada por escrito? Perguntando à Igreja. Simples.
3. Uma
frase curiosa, e importante, que fala muito da doutrina do Protestantismo: “A Igreja pode errar. Embora tenha autoridade para dirimir
controvérsias doutrinárias, seu parecer nunca é infalível, podendo ser corrigido
pela autoridade superior – as Escrituras.” Ou melhor, por uma
intepretação posterior que alguém ou um grupo fez e que contrapôs à doutrina de
antes e afirmou que essa estava equivocada e que aquela, agora encontrada, era
a verdade que a deveria substituir. Isso é o que vemos em termos teóricos e
práticos.
4. Outra
explicação bastante contundente e de grande importância para o entendimento da
doutrina da Sola Scriptura está na
seguinte afirmação: “Eu entendo que esta tradição
está fundamentada na Escritura (a autoridade suprema) e que embora tal
documento pudesse ter erros doutrinários, eles não os cometeram (esta é a
diferença entre inerrância e infalibilidade).” Em outros termos, a
tradição protestante não é infalível, e por isso pode cometer erros, mas que
muitas vezes o consenso unânime, talvez, dos teólogos a respeito de
determinados temas, como o conteúdo da Confissão de Fé de Westminster,
evidencia que os erros possíveis de serem cometidos pela natureza da fonte não
o foram, e que aquela confissão é de cunho bíblico e, portanto, autoritativa em
termos de doutrina. Ela não é uma instância igual à Bíblia, nem inspirada, e
nem teve origem em uma declaração infalível, mas acertou em seu conteúdo por
sua fidelidade à Bíblia. Dessa forma, sua posição é uma expressão da doutrina
bíblica. Sendo assim, os cristãos reformados devem a ela sua adesão.
5. Usando
a forma de pensar acima, a tradição infalível pode ser entendida como aquela
que expressa a doutrina ensinada por Jesus Cristo e pelos apóstolos e que
mostra evidentemente essa sua nota prerrogativa sendo aceita em consenso pelos
teólogos da Igreja em união como bispo de Roma, o papa, em explícitas,
insofismáveis e solenes proclamações. É uma instância que está sempre de acordo
com a Bíblia Sagrada, e só nestes termos é que é reconhecida como infalível por
ser parte proveniente da mesma fonte e autoridade divina.
6. “O católico romano não pode por seu próprio juízo
determinar qual a verdadeira tradição, ele precisa necessariamente seguir a
opinião da Igreja.” Assim como o protestante não pode por seu
próprio juízo determinar qual a verdadeira interpretação bíblica, sendo
necessário que concorde com o que o Protestantismo e sua respectiva tradição
lhe ensina. Se um protestante em sua sã consciência considerar algum ponto
fundamental do Protestantismo como errado e herético, ele não poderá
simplesmente adotar sua própria interpretação e continuar como bom protestante.
Em termos práticos, mais ou menos elásticos, é isso o que acontece. Para
continuar fiel protestante ele deve aderir ao conteúdo contrário ao que ele
concluiu em seu juízo individual ou deixará de ser um protestante.
Desse modo, o argumento só valeria se houvesse (absurdamente, é claro) uma
liberdade particular absoluta de cada um em sua consciência determinar o que a
Bíblia diz e o que não diz. Absurdo leva a mais absurdos.
7. “Qual a utilidade então de julgar criticamente os escritos
dos Pais da Igreja, se no fim das contas seu juízo necessariamente precisa
seguir o juízo de uma igreja em particular?” O mesmo valor que cada
protestante reconhece em fazer seu juízo particular, da Bíblia e dos escritos
da tradição, para por si mesmo compreender e responder pelo que professa.
8. “Como bem observamos, a tradição virou um saco onde Roma
coloca o que bem entender.” Na verdade não. O Protestantismo faz o
mesmo, com outros nomes, sob moldes diversos, com suas internas divisões e
discussões, etc., mas faz. Um exemplo é a tradição dispensacionalista (muitos
protestantes não aderem a ela), surgida no século XIX, e defendida por muitos
como a interpretação correta da Bíblia, e de origem apostólica. Com isso, para
os seus defensores, tem-se que o dispensacionalismo apenas tornou-se evidente
nesse tempo, mas não que surgiu aí, e que a forma como apareceu é que é moderna,
não a sua existência e natureza, que vem dos inícios do Cristianismo. E tantos
grupos fazem o mesmo, da mesma forma básica, com nomes diferentes, é claro, mas
agindo igualmente, tendo a fé Sola
Scriptura, mas com novos dogmas e tradições surgindo com o tempo, e
permanecendo dentro dos limites do Protestantismo. E ainda reclamam quando o
papa proclama no século XIX a assunção de Maria e afirma que essa doutrina não
é nova, mas vem do início da Igreja.
9. “Isso só demonstra como a igreja católica antiga não era
romana.” Essa é uma das afirmações mais impressionantes, e que fazem
parte de uma visão histórica da Igreja muitíssimo peculiar.
10.
“Caso fosse, o
cânon (uma questão vital) teria sido objeto de algum concílio ecumênico ou
algum decreto papal considerado infalível.” Essa outra afirmação revela,
de forma contundente, como alguém pode compreender de Catolicismo, em um nível
acima do fundamental, mas ainda não conhecer bem, pois do contrário
tornar-se-ia católico. Ele insere algo no catolicismo como de vital importância
de acontecer, mas que não é o que o catolicismo internamente entende ser a
importância da questão. Isso demonstra que o autor não entende o catolicismo a
partir desse nível. E outra coisa: se
foi em Trento a decisão infalível sobre o cânon, e isso é prerrogativa da
Igreja “romana”, então a mesmo a tese do início do romanismo a partir de 1054 é
furada. É muito tempo a ser considerado ao século XI ao XVI em questão tão
vital para a Igreja Romana e mesmo assim não ter ocorrido.
11.
“Tais critérios
foram aplicados – o que só demonstra que tal igreja não era romana.”
Essa afirmação demonstra novamente o alcance do conhecimento do autor a
respeito do Catolicismo. Supõe-se que toda vez que uma questão surge, para
defini-la pensa-se logo em consultar um magistério infalível e pronto: está
resolvido.
12.
“Nenhum apóstolo
deixou uma lista de livros canônicos. Coube aos pais utilizando meios comuns de
prova reconhecer quais escritos eram de fato canônicos.” Todo católico
crê nisso. O problema é que a opinião pessoal não definiu o cânon, mas as
opiniões, por assim dizer, de concílios que expressavam o parecer de
comunidades cristãs inteiras a respeito do conteúdo da Bíblia. Como Cartago e
Hipona acertaram, e forma formalmente sendo endossados a partir daí até Trento,
temos que a tradição foi o meio para conhecer o conteúdo exato da Bíblia.
13.
Ainda a afirmação de que a tradição e a
Igreja são subordinadas às Escrituras não é suficiente para mostrar a diferença
de pensamento católico e protestante sobre o caso. De fato, no Catolicismo,
como o próprio Catolicismo entende, e não como os apologistas e teólogos
protestantes entendem o Catolicismo, a Bíblia é suprema e a tradição e o
magistério devem respectivamente estar harmoniosos com seu conteúdo e
subordinado à sua autoridade. Uma doutrina não é aceita se contradizer a
Bíblia, conforme os critérios católicos.
14.
“Todavia, a luz
das evidências de que dispomos, temos boas razões para acreditar que o cânon do
Novo Testamento reúne todos os livros de origem apostólica acessíveis atualmente.”
E isso não foi resultado de um ou outro padre da Igreja definir o cânon, nem de
opinião particular de quem quer que seja, mas da proclamação formal e solene da
Igreja sobre o cânon.
15.
(continua) Os gnósticos diziam que a
Escritura estava corrompida quando a doutrina da Bíblia não estava de acordo
com a interpretação deles, que alegavam ser a tradição oral, e que quando os
apologistas católicos os refutava mostrando a tradição apostólica, esses nem
assim ficavam convencidos, pois achavam ser eles os verdadeiros intérpretes e
possuidores da tradição correta. Na verdade, o que Santo Irineu afirma é que a
doutrina gnóstica não concordava com a Bíblia nem com a tradição, duas
instâncias, e por isso era herética a novidade gnóstica. Se Santo Irineu usava a
Bíblia para refutar os gnósticos era porque a Bíblia era regra de fé. Se eles
não aceitavam, e santo Irineu recorria à tradição, é porque a tradição guardava
a verdade incorrupta, sendo assim, também, regra de fé, pois do contrário não
seria prudente usar de outro artifício mais fraco já que o herege não ficou
satisfeito com o melhor. Outra coisa é que os gnósticos não diziam que a
Escritura era obscura e incompleta, apenas, mas que estava corrompida, o que
somente hereges fazem. E existe entre os adeptos do protestantismo que usam
desse método para provar o contrário de outras doutrinas que a Igreja sempre
pregou, usando a falácia de que tal e tal passagem foi corrompida.
16.
O que John Behr explica da passagem de
Irineu, conforme o artigo, não está de acordo com a mesma passagem de Irineu.
17.
“O grande erro
dos católicos romanos é afirmar que um protestante não poderia usar o mesmo
sistema de argumentação.” Será mesmo?
18.
“Novamente,
Irineu torna coincidente a doutrina apostólica e o conteúdo das Escrituras.”
E sempre foi.
19.
“Além disso
Irineu recorria às igrejas apostólicas, em especial, à Igreja de Roma para
refutar os hereges.” Correto. Curioso isso. O Protestantismo não faz
isso, nunca faria, e é totalmente contrário a isso.
20.
Irineu não disse que a Igreja Romana é
infalível, nem que o bispo de Roma é infalível, e que o que ele disse está
restrito ao seu tempo. Muito bem, esse é o argumento. Agora, é verdade que o
que Irineu disse está conforme a doutrina da Igreja de Roma como infalível, do
seu bispo como infalível, o que certamente também leva logicamente a estar Roma
em perfeita guarda da sã doutrina no tempo de Irineu. Nada do que ele diz pode
ser usado contra a doutrina católica, mas pode ser usado, com bastante
tranquilidade, contra a protestante.
21.
“Tendo em vista
que os ensinos de Roma mudaram radicalmente com o passar dos séculos, é
simplesmente anacrônico argumentar que as igrejas precisariam concordar com o
que Roma ensina HOJE.” Se nos detivermos no princípio elencado por S.
Irineu, isso não acontece. O que ele disse significa que é fácil identificar,
pela sucessão apostólica, onde foi introduzido o erro. E, relativamente, é
mesmo.
22.
Diria que nenhuma igreja protestante pode
usar o mesmo que Irineu. Mas o apologista afirmou: “Irineu
sem dúvidas sustentou contra os hereges um conceito de sucessão apostólica
consistente com a fé reformada.” É o que os reformados entendem. O que
Ratzinger afirma é que a doutrina foi “formulada” na controvérsia gnóstica, e
não que foi aquele o momento em que ela surgiu. São coisas diferentes.
23.
De fato, a importância do ofício vem da
preservação da verdade, pois foi esse o motivo da criação do ofício.
24.
A alegação de que o argumento de Irineu faz
sentido “em seu tempo” mas não depois, muito menos no nosso tempo, é uma fuga
inteligente, e é usada, de forma lógica, quando o debate acirrado chega a um
ponto difícil. Assim foi que em uma ocasião, debatendo com um protestante, a
respeito da Epístola de São Tiago, onde fala da unção dos enfermos (para
utilizar a linguagem técnica católica), no meio da argumentação, para me
responder, o protestante afirmou que aquela passagem de Tiago teve seus motivos
“no seu tempo”, não sendo mais necessário depois mandar chamar os presbíteros
da Igreja para ungir alguém com óleo e etc. É um meio de explicar, mas que
mostra a que ponto chega a imaginação.
25.
Por fim, o recurso à tradição em Santo Irineu
mostra o mesmo valor para provar a verdade que o recurso às Escrituras. Basta
raciocinar em termos reformados e tentar dizer que se as provas não estiverem nas
Escrituras (com seu valor de provas verdadeiras, totalmente e unicamente infalíveis, e sem
sombra de dúvidas), onde encontra-las então? A resposta reformada é: dessa
forma, em lugar nenhum, a não ser nas Escrituras. Pelo raciocínio de Santo Irineu as coisas não são assim, pois se a Bíblia não pudesse ser encontrada a tradição valeira para fins de prova e regra de fé.
Gledson Meireles.