sábado, 19 de agosto de 2017

Será que existe?

Um leitor pede ajuda para refutar um artigo publicado em página católica contra Lutero. Esse artigo foi “um soco no estômago” para o leitor.
 
A resposta do apologista é que o texto é tardio, escrito por um padre 300 anos depois da morte de Lutero, que é um falso diálogo, que não existe, a não ser em sites de apologética católica, que o autor é mentiroso, que a obra citada não existe, e, mesmo se existir, o diálogo não existe, pois se existisse iria ser muito citado pelos historiadores, mas que isso nunca aconteceu, ou seja, nunca foi citado Enfim, os “papistas” são mentirosos e desesperados.

Está na caixa de comentários: aqui. 

Mas, pelo que tudo indica, a conversa existe, a obra existe, é citada, está entre as obras de Lutero. Talvez o que pode diminuir a força do soco no estômago do leitor é que a explicação protestante para isso é que tal conversa é um artifício literário usado por Lutero, e não uma experiência que ele teve com o diabo. Só isso, porque o resto mostra como é comum apologistas tirarem conclusões precipitadas para sistematicamente negar um fato que não conhecem. Conferir aqui.

SAQUE DE ROMA


O Saque de Roma, 1527:

A seguinte afirmação é de que não há a mínima participação protestante no saque de Roma:
Essa é a razão pela qual o exército católico de um imperador católico decidiu saquear Roma, e que os papistas na maior desfaçatez atribuem caluniosamente aos protestantes, contra o consenso unânime de todos os livros de história já escritos pelo homem.” (aqui)

Talvez o que o historiador Martin N. Dreher explica aqui seja de interesse de muitos, e sirva de esclarecimento do motivo, certamente, de apologistas católicos mostrarem a participação dos protestantes nesse evento:

“A Reforma da igreja e os acontecimentos políticos estão intimamente relacionados. O trágico é que, nas guerras entre Carlos V e Francisco I, estiveram envolvidos dois governantes decididamente católicos. Suas tropas, tanto os soldados quanto os oficiais, eram, em grande parte, mercenários, lansquenetes alemães adeptos do pensamento de Lutero, ou suíços, igualmente “evangélicos”. Em 1527, lansquenetes invadiram Roma e perpetraram o Sacco di Roma, cantando hinos de Lutero e causando  terrível destruição.”

A situação de guerra fez com que Carlos V necessitasse constantemente de aliados. Ora, esses aliados eram, em boa parte, protestantes”. (DREHER, Martin. N. A Crise e a Renovação da Igreja no período da Reforma, 4ª Edição, vol. 3, 1996).

Essa é a razão. Dois líderes políticos católicos lutando, mas com exército recheado de protestantes que, saqueiam Roma, cantando hinos luteranos, etc. É suficiente para entender. (aqui)

Gledson Meireles.

terça-feira, 15 de agosto de 2017

Identificando a Igreja no século II

Passando o período de vida dos apóstolos, que termina com a morte do apóstolo São João, entramos na era pós-apostólica, a começar do ano 100 em diante. A Igreja é guiada pelo Espírito Santo através dos homens que conviveram com os apóstolos, foram seus colaboradores e seus imediatos sucessores, ou seja, aqueles que nasceram no tempo dos apóstolos e continuaram a realizar as funções que os apóstolos realizaram e apontaram.

Os padres apostólicos são Barnabé, Clemente, Hermas, Inácio, Policarpo e Pápias. Há outros escritos, como a Didaquê, que por ter origens, reconhecidas por muitos, no século I, está entre os escritos dos padres apostólicos, e também a Carta a Diogneto. Esses homens cristãos católicos e seus escritos revelam como a Igreja viveu no século segundo, após os apóstolos. Seus escritos não foram inspirados pelo Espírito Santo, e eles já apontavam para as obras dos apóstolos, por exemplo, como fonte de autoridade inspirada.

Portanto, são esses os nomes que representam a Igreja no século II, e quem quer aprender sobre o ensino cristão nesse tempo deve ler esses escritos e estudar como viviam os cristãos de então.

É válido e muito proveitoso tirar as lições para a fé das controvérsias que existiram, das heresias que surgiram em fins do século I e início do século II, e saber como a Igreja reagia contra elas. Isso já foi feito na série Identificando a Igreja, que tratou do século I, no período inspirado, e que está na Bíblia Sagrada. A partir daí, temos os líderes da Igreja lutando contra as inovações doutrinais, mas não mais com inspiração como os apóstolos, mas, antes, seguindo a doutrina deixada pelos apóstolos.

Das várias controvérsias uma foi a de Cerinto. Ele era um gnóstico, aparecendo nos fins do século I, e afirmando que Jesus não é o Cristo ou Messias. Em sua doutrina, Jesus seria um homem e o Cristo seria o espírito que desceu como pomba em seu batismo, e que o abandonou após a paixão. Como visto, Cerinto lia as Escrituras e dava interpretações totalmente diversas às suas passagens. É bastante claro que Certino não identificava a Igreja da época, embora pregasse sobre Deus e sobre Jesus, e falasse a respeito das passagens do evangelho. A doutrina de que Jesus foi meramente humano possuído por um espírito chamado “Cristo” é uma heresia, e qualquer um que lê os evangelhos percebe que essa interpretação não cabe em nenhum lugar, pois Jesus Cristo é o Filho de Deus e o Espírito Santo desceu sobre Ele no batismo, permanecendo para sempre.

Surgiu também um judeu chamado Elchasai, que não cria no apóstolo São Paulo e afirmava que Jesus era um profeta antigo que voltou. Ensinava a circuncisão, o sábado e outras prescrições do judaísmo. Seus seguidores foram os elcasaítas.

Os cristãos seguiam a doutrina exposta pelos padres apostólicos, e não estavam entre os seguidores de Cerinto, ou de Elchasai ou entre os ebionitas. Dessa forma, é possível identificar a Igreja no século II.

Basta imaginar de que lado o leitor estaria se vivesse no século I: dos apóstolos ou dos gnósticos, judaizantes, nicolaítas etc.? E se vivesse no século II:

São esses os padres e escritores cristãos que expressam a doutrina da Igreja no século II. Os hereges, ou seja, aqueles cristãos que ensinavam doutrinas divergentes da doutrina geral da Igreja, não são os representantes legítimos da fé cristã, e isso é fácil perceber.[1]

Então, no século II, temos outros vários homens cristãos, muitos santos e doutos, que defenderam a fé cristã, e deixaram obras que mostram a doutrina da Igreja sendo pregada em sua época. São Aristides,  São Justino, Taciano, Atenágoras, Teófilo de Antioquia, Hermas, e Santo Irineu, que deixou obras valiosas sobre a doutrina da Igreja e as refutações das heresias que estavam espalhando-se em sua época. Estamos nos anos 100.

No século III temos Orígenes, certamente o maior erudito antes de Santo Agostinho. Também Santo Hipólito de Roma, Tertuliano, que por algum tempo foi bom cristão católico, mas que por seu rigor acabou aderindo às doutrinas rigoristas do movimento cristão montanista, e assim tenha separado-se da santa Igreja. Ainda, foram defensores da fé Minúcio Félix e São Cipriano, Arnóbio, Lactâncio e Comodiano.

As heresias que apareceram foram o gnosticismo, o grupo herege dos cerintianos, os nazarenos, os milenaristas (esses estavam em diversos grupos), a heresia de Marcião e o Montanismo. O milênio era aceito por muitos padres da Igreja, mas sempre como doutrina teológica válida e não como dogma. Até hoje há cristãos católicos que pregam o milênio.

Nas primeiras décadas do segundo século, nasceu Marcião. Foi um cristão que tornou-se monge, depois presbítero. Consta que era fervoroso. Mais tarde, começou a pregar uma doutrina estranha na Ásia, e depois em Roma. A Igreja de Roma o condenou e expulsou da cidade no ano de 144.

Sua doutrina consistia em ressaltar a redenção. No entanto, ele criou dois deuses, um do Antigo Testamento e outro do Novo, e negou os evangelhos sinóticos, aceitando apenas o de João, e somente os escritos de São Paulo apóstolo. É claro que tal ensino não pertencia ao patrimônio cristão deixado por Jesus e pelos Doze, e Marcião estava inovando. Dessa forma, deixou a Igreja Católica, e sem intenção começou a Igreja Marcionita, que durou até o sexto século.

Na segunda metade do século II, Montano, cristão da Frígia, inicia um movimento de reforma da Igreja. Certamente, para ele a hierarquia não agradava mais, assim como a moral mais caridosa e compreensiva da Igreja. Com isso, os montanistas foram distanciando-se da Igreja Católica, apesar de sua doutrina não ser essencialmente diferente, e formaram uma igreja à parte, condenada pelos papas do final do século II e início do III. Os escritos de Montano não foram preservados, e no século VII, ao que parece, o movimento recebeu sua última condenação.

Alguns poderiam pensar que o Montanismo, por ser mais radical, e estava disposto a voltar às origens, embora a Igreja Católica fosse ainda tão jovem, pois o movimento ganhava forma em seu meio pelos anos 170 em diante, relativamente pouco tempo após o período dos apóstolos, fosse a verdadeira continuação da Igreja.

Mas, as profecias do líder Montano, suas afirmações a respeito de si mesmo como profeta em quem o Espírito Santo habitava, sua recusa em conceder o perdão relativo a vários pecados graves, como o adultério, e outras atitudes ultra-rigoristas levaram-no para longe da Igreja Católica.

Por muito tempo a igreja montanista permaneceu, mas teve seu fim a partir do século VII. Nunca foi universal, não teve participação na estruturação doutrinal fundamental da Igreja, não conservou escritos, não conseguiu impor-se contra a santa Igreja Católica, não sobreviveu com suas notas características por tanto tempo.

Por esse motivo, não é correto afirmar que a Igreja Montanista fosse a verdadeira (pois nem existe mais hoje), nem que o movimento guardasse pureza de doutrina (que era em geral a mesma doutrina católica com adições de pontos de mais rigor), nem que tenha sobrevivido com outro nome, ou diluído em outra forma, e outras explicações nada plausíveis, pois a Igreja de Jesus não é tão estrita a nomes de destaque, nem tão frágil, nem é liderada por figuras que surgem no interior da Igreja Católica e que opõem-se e encontram resistência das autoridades da mesma Igreja.

De fato, se o Montanismo fosse a Igreja de Cristo ou que tivesse em seu meio os verdadeiros cristãos, seguindo os pontos fundamentais da fé pura, esse teria prevalecido contra a Igreja Católica e não o contrário. É fato histórico que o montanismo não contribuiu para a fé cristã como a Igreja Católica da qual saiu e combateu. Em seu tempo os bispos podiam dizer que Montano saiu “por que não era dos nossos”, como afirma o apóstolo São João. Esses são fatos objetivos que explicam sua posição no cenário cristão, que é o de heresia.

Por isso, os cristãos católicos eram aqueles que permaneciam na única Igreja do tempo apostólico, e continuaram assim durante o segundo século, enquanto que os gnósticos, cerintianos, nazarenos, marcionitas, montanistas, e outros, foram cristãos que deixaram a comunhão da Igreja Católica e passaram a formar grupos distintos, igrejas distintas (por vários motivos, como os comentados acima), que duravam algum tempo, até por séculos, mas desapareciam. Esses não podem ser os representanes da Igreja fundada por Cristo, tanto pela doutrina que pregavam, como pelas características que assumiam, como também pelos resultados históricos que tiveram, e por outros motivos que, conforme as Escrituras não são parte da santa Igreja Católica.

Dessa forma, no segundo século, é possível identificar a Igreja de Jesus, e é aquela que desenvolvia sob a direção de homens que conviveram com os apóstolos, que foram seus sucessores, que defenderam a fé, que deixaram escritos preciosos para o conhecimento da Igreja naquele período, e não aqueles dos quais foi falado acima, e que não prevaleceram, e foram desunidos entre si, e em relação à Igreja dos padres e doutos cristãos.

Gledson Meireles.



[1] Se alguns, porventura, levantaram a questão (absurda) de que os hereges eram de fato os cristãos verdadeiros, e que seus escritos foram destruídos ou perdidos, e que suas doutrinas foram desvirtuadas, até certo ponto, pelos apologistas oponentes, teríamos um quadro curioso.
Dessa maneira, as fontes ditas “cristãs” teriam sido obnubiladas, esquecidas, destruídas ou perdidas, e as fontes que temos, e que todos saber ser legítimas, seriam vítimas da dúvida e da má vontade, enquanto que as supostas fontes verdadeiras estariam peremptoriamente ocultas e nunca conhecidas pela posteridade, e seriam delas que a certeza adviria. Os que defenderiam essa tese fundamentariam suas doutrinas em fontes que ninguém conhece, e não existem mais, e  talvez não existiram jamais.
Além do mais, os grupos autores dessas fontes, os quais temos certeza que existiram, não sobreviveram por muito tempo. Alguns até atingiram séculos de existência, mas chegaram ao fim, sofreram modificações profundas, foram exterminados, mesclaram-se com outros movimentos, transformaram-se, sumiram. Essas características não são notas da Igreja Católica fundada por Jesus Cristo, pois nem os seus escritos contemplam a mensagem de Cristo, nem suas interpretações estão em consonância com Bíblia, sendo fácil identificar diferenças patentes. Por isso, objetivamente seria uma loucura aventar tal tese.

sexta-feira, 11 de agosto de 2017

A dúvida sobre o fim da virgem Maria

As afirmações de incerteza de Santo Epifânio, no século IV, quanto ao final da vida da virgem Maria não apenas mostram, ainda em seu tempo, como os teólogos protestantes apontam, uma falta de tradição fixa para a doutrina da assunção de Maria, mas indica, ou mesmo evidencia, que a doutrina da assunção era certa, e não havia problema algum concernente à mesma.
 
Ainda que Epifânio não dogmatizasse sobre o fato da assunção de forma direta e inequívoca, suas palavras não podem ser entendidas diferentemente de que realmente convergem para a doutrina em questão.
 
De fato, ele apenas não certifica o modo como Maria deixou este mundo, se morreu, se foi enterrada, ou se permaneceu viva. Mas sua dúvida é tão eloquente que não pode ser aplicada naturalmente a ninguém, já que a morte, salário do pecado (Rm 6,7) atinge a todos. Pense na dúvida: Será que Maria morreu? Se não, onde está ela? Ainda na terra? É óbvio que não.
 
Pense novamente: Será que Maria permaneceu viva? Se sim, onde está ela? Ainda na terra? É óbvio que não.
 
Então...
 
Como poderia não ter certeza da morte ou não de alguém após séculos do acontecimento se essa não fosse a opinião geral da Igreja que a virgem foi assunta aos céus? Como a dúvida "não sei se morreu ou se continuou a viver" não evidencia a doutrina da assunção?
 
Gledson Meireles.

sábado, 5 de agosto de 2017

Comentário

 
 

1.  Não se trata somente de que os Padres da Igreja escreveram “sobre autoridade da Igreja e da Tradição” o motivo pelo qual não adotaram o princípio Sola Scriptura, mas pelo conceito que a visão dos padres a respeito dessas duas instâncias não coadunam com o somente a Bíblia. Eles criam na interpretação bíblica sempre mantida na Igreja, o que faz com que a tradição e a autoridade da Igreja andem juntas e de igual modo, com a mesma autoridade da Bíblia.

2.  O que os apóstolos pregaram? É o que está escrito na Bíblia. Como interpretamos sua pregação conservada por escrito? Perguntando à Igreja. Simples.

3.  Uma frase curiosa, e importante, que fala muito da doutrina do Protestantismo: “A Igreja pode errar. Embora tenha autoridade para dirimir controvérsias doutrinárias, seu parecer nunca é infalível, podendo ser corrigido pela autoridade superior – as Escrituras.” Ou melhor, por uma intepretação posterior que alguém ou um grupo fez e que contrapôs à doutrina de antes e afirmou que essa estava equivocada e que aquela, agora encontrada, era a verdade que a deveria substituir. Isso é o que vemos em termos teóricos e práticos.

4.  Outra explicação bastante contundente e de grande importância para o entendimento da doutrina da Sola Scriptura está na seguinte afirmação: “Eu entendo que esta tradição está fundamentada na Escritura (a autoridade suprema) e que embora tal documento pudesse ter erros doutrinários, eles não os cometeram (esta é a diferença entre inerrância e infalibilidade).” Em outros termos, a tradição protestante não é infalível, e por isso pode cometer erros, mas que muitas vezes o consenso unânime, talvez, dos teólogos a respeito de determinados temas, como o conteúdo da Confissão de Fé de Westminster, evidencia que os erros possíveis de serem cometidos pela natureza da fonte não o foram, e que aquela confissão é de cunho bíblico e, portanto, autoritativa em termos de doutrina. Ela não é uma instância igual à Bíblia, nem inspirada, e nem teve origem em uma declaração infalível, mas acertou em seu conteúdo por sua fidelidade à Bíblia. Dessa forma, sua posição é uma expressão da doutrina bíblica. Sendo assim, os cristãos reformados devem a ela sua adesão.

5.  Usando a forma de pensar acima, a tradição infalível pode ser entendida como aquela que expressa a doutrina ensinada por Jesus Cristo e pelos apóstolos e que mostra evidentemente essa sua nota prerrogativa sendo aceita em consenso pelos teólogos da Igreja em união como bispo de Roma, o papa, em explícitas, insofismáveis e solenes proclamações. É uma instância que está sempre de acordo com a Bíblia Sagrada, e só nestes termos é que é reconhecida como infalível por ser parte proveniente da mesma fonte e autoridade divina.

6.  O católico romano não pode por seu próprio juízo determinar qual a verdadeira tradição, ele precisa necessariamente seguir a opinião da Igreja.” Assim como o protestante não pode por seu próprio juízo determinar qual a verdadeira interpretação bíblica, sendo necessário que concorde com o que o Protestantismo e sua respectiva tradição lhe ensina. Se um protestante em sua sã consciência considerar algum ponto fundamental do Protestantismo como errado e herético, ele não poderá simplesmente adotar sua própria interpretação e continuar como bom protestante. Em termos práticos, mais ou menos elásticos, é isso o que acontece. Para continuar fiel protestante ele deve aderir ao conteúdo contrário ao que ele concluiu em seu juízo individual ou deixará de ser um protestante. Desse modo, o argumento só valeria se houvesse (absurdamente, é claro) uma liberdade particular absoluta de cada um em sua consciência determinar o que a Bíblia diz e o que não diz. Absurdo leva a mais absurdos.

7.  Qual a utilidade então de julgar criticamente os escritos dos Pais da Igreja, se no fim das contas seu juízo necessariamente precisa seguir o juízo de uma igreja em particular?” O mesmo valor que cada protestante reconhece em fazer seu juízo particular, da Bíblia e dos escritos da tradição, para por si mesmo compreender e responder pelo que professa.

8.  Como bem observamos, a tradição virou um saco onde Roma coloca o que bem entender.” Na verdade não. O Protestantismo faz o mesmo, com outros nomes, sob moldes diversos, com suas internas divisões e discussões, etc., mas faz. Um exemplo é a tradição dispensacionalista (muitos protestantes não aderem a ela), surgida no século XIX, e defendida por muitos como a interpretação correta da Bíblia, e de origem apostólica. Com isso, para os seus defensores, tem-se que o dispensacionalismo apenas tornou-se evidente nesse tempo, mas não que surgiu aí, e que a forma como apareceu é que é moderna, não a sua existência e natureza, que vem dos inícios do Cristianismo. E tantos grupos fazem o mesmo, da mesma forma básica, com nomes diferentes, é claro, mas agindo igualmente, tendo a fé Sola Scriptura, mas com novos dogmas e tradições surgindo com o tempo, e permanecendo dentro dos limites do Protestantismo. E ainda reclamam quando o papa proclama no século XIX a assunção de Maria e afirma que essa doutrina não é nova, mas vem do início da Igreja.

9.  Isso só demonstra como a igreja católica antiga não era romana.” Essa é uma das afirmações mais impressionantes, e que fazem parte de uma visão histórica da Igreja muitíssimo peculiar.

10.             Caso fosse, o cânon (uma questão vital) teria sido objeto de algum concílio ecumênico ou algum decreto papal considerado infalível.” Essa outra afirmação revela, de forma contundente, como alguém pode compreender de Catolicismo, em um nível acima do fundamental, mas ainda não conhecer bem, pois do contrário tornar-se-ia católico. Ele insere algo no catolicismo como de vital importância de acontecer, mas que não é o que o catolicismo internamente entende ser a importância da questão. Isso demonstra que o autor não entende o catolicismo a partir desse nível.  E outra coisa: se foi em Trento a decisão infalível sobre o cânon, e isso é prerrogativa da Igreja “romana”, então a mesmo a tese do início do romanismo a partir de 1054 é furada. É muito tempo a ser considerado ao século XI ao XVI em questão tão vital para a Igreja Romana e mesmo assim não ter ocorrido.

11.             Tais critérios foram aplicados – o que só demonstra que tal igreja não era romana.” Essa afirmação demonstra novamente o alcance do conhecimento do autor a respeito do Catolicismo. Supõe-se que toda vez que uma questão surge, para defini-la pensa-se logo em consultar um magistério infalível e pronto: está resolvido.

12.             Nenhum apóstolo deixou uma lista de livros canônicos. Coube aos pais utilizando meios comuns de prova reconhecer quais escritos eram de fato canônicos.” Todo católico crê nisso. O problema é que a opinião pessoal não definiu o cânon, mas as opiniões, por assim dizer, de concílios que expressavam o parecer de comunidades cristãs inteiras a respeito do conteúdo da Bíblia. Como Cartago e Hipona acertaram, e forma formalmente sendo endossados a partir daí até Trento, temos que a tradição foi o meio para conhecer o conteúdo exato da Bíblia.

13.             Ainda a afirmação de que a tradição e a Igreja são subordinadas às Escrituras não é suficiente para mostrar a diferença de pensamento católico e protestante sobre o caso. De fato, no Catolicismo, como o próprio Catolicismo entende, e não como os apologistas e teólogos protestantes entendem o Catolicismo, a Bíblia é suprema e a tradição e o magistério devem respectivamente estar harmoniosos com seu conteúdo e subordinado à sua autoridade. Uma doutrina não é aceita se contradizer a Bíblia, conforme os critérios católicos.

14.             Todavia, a luz das evidências de que dispomos, temos boas razões para acreditar que o cânon do Novo Testamento reúne todos os livros de origem apostólica acessíveis atualmente.” E isso não foi resultado de um ou outro padre da Igreja definir o cânon, nem de opinião particular de quem quer que seja, mas da proclamação formal e solene da Igreja sobre o cânon.

15.             (continua) Os gnósticos diziam que a Escritura estava corrompida quando a doutrina da Bíblia não estava de acordo com a interpretação deles, que alegavam ser a tradição oral, e que quando os apologistas católicos os refutava mostrando a tradição apostólica, esses nem assim ficavam convencidos, pois achavam ser eles os verdadeiros intérpretes e possuidores da tradição correta. Na verdade, o que Santo Irineu afirma é que a doutrina gnóstica não concordava com a Bíblia nem com a tradição, duas instâncias, e por isso era herética a novidade gnóstica. Se Santo Irineu usava a Bíblia para refutar os gnósticos era porque a Bíblia era regra de fé. Se eles não aceitavam, e santo Irineu recorria à tradição, é porque a tradição guardava a verdade incorrupta, sendo assim, também, regra de fé, pois do contrário não seria prudente usar de outro artifício mais fraco já que o herege não ficou satisfeito com o melhor. Outra coisa é que os gnósticos não diziam que a Escritura era obscura e incompleta, apenas, mas que estava corrompida, o que somente hereges fazem. E existe entre os adeptos do protestantismo que usam desse método para provar o contrário de outras doutrinas que a Igreja sempre pregou, usando a falácia de que tal e tal passagem foi corrompida.

16.             O que John Behr explica da passagem de Irineu, conforme o artigo, não está de acordo com a mesma passagem de Irineu.

17.             O grande erro dos católicos romanos é afirmar que um protestante não poderia usar o mesmo sistema de argumentação.” Será mesmo?

18.             Novamente, Irineu torna coincidente a doutrina apostólica e o conteúdo das Escrituras.” E sempre foi.

19.             Além disso Irineu recorria às igrejas apostólicas, em especial, à Igreja de Roma para refutar os hereges.” Correto. Curioso isso. O Protestantismo não faz isso, nunca faria, e é totalmente contrário a isso.

20.             Irineu não disse que a Igreja Romana é infalível, nem que o bispo de Roma é infalível, e que o que ele disse está restrito ao seu tempo. Muito bem, esse é o argumento. Agora, é verdade que o que Irineu disse está conforme a doutrina da Igreja de Roma como infalível, do seu bispo como infalível, o que certamente também leva logicamente a estar Roma em perfeita guarda da sã doutrina no tempo de Irineu. Nada do que ele diz pode ser usado contra a doutrina católica, mas pode ser usado, com bastante tranquilidade, contra a protestante.

21.             Tendo em vista que os ensinos de Roma mudaram radicalmente com o passar dos séculos, é simplesmente anacrônico argumentar que as igrejas precisariam concordar com o que Roma ensina HOJE.” Se nos detivermos no princípio elencado por S. Irineu, isso não acontece. O que ele disse significa que é fácil identificar, pela sucessão apostólica, onde foi introduzido o erro. E, relativamente, é mesmo.

22.             Diria que nenhuma igreja protestante pode usar o mesmo que Irineu. Mas o apologista afirmou: “Irineu sem dúvidas sustentou contra os hereges um conceito de sucessão apostólica consistente com a fé reformada.” É o que os reformados entendem. O que Ratzinger afirma é que a doutrina foi “formulada” na controvérsia gnóstica, e não que foi aquele o momento em que ela surgiu. São coisas diferentes.

23.             De fato, a importância do ofício vem da preservação da verdade, pois foi esse o motivo da criação do ofício.

24.             A alegação de que o argumento de Irineu faz sentido “em seu tempo” mas não depois, muito menos no nosso tempo, é uma fuga inteligente, e é usada, de forma lógica, quando o debate acirrado chega a um ponto difícil. Assim foi que em uma ocasião, debatendo com um protestante, a respeito da Epístola de São Tiago, onde fala da unção dos enfermos (para utilizar a linguagem técnica católica), no meio da argumentação, para me responder, o protestante afirmou que aquela passagem de Tiago teve seus motivos “no seu tempo”, não sendo mais necessário depois mandar chamar os presbíteros da Igreja para ungir alguém com óleo e etc. É um meio de explicar, mas que mostra a que ponto chega a imaginação.

25.             Por fim, o recurso à tradição em Santo Irineu mostra o mesmo valor para provar a verdade que o recurso às Escrituras. Basta raciocinar em termos reformados e tentar dizer que se as provas não estiverem nas Escrituras (com seu valor de provas verdadeiras, totalmente e unicamente infalíveis, e sem sombra de dúvidas), onde encontra-las então? A resposta reformada é: dessa forma, em lugar nenhum, a não ser nas Escrituras. Pelo raciocínio de Santo Irineu as coisas não são assim, pois se a Bíblia não pudesse ser encontrada a tradição valeira para fins de prova e regra de fé.
 
Gledson Meireles.