Em continuação do estudo do livro do pastor Tiago Cavaco, Cuidado com o alemão: três dentadas que Martinho Lutero dá à nossa época, editora Vida Nova, 2017.
Sem entrar no mérito da exatidão da análise que o autor faz de Erasmo de Roterdã, é preciso notar que Erasmo não é a Igreja. O que Erasmo disser que não estiver de acordo com os princípios cristãos católicos, pode ser deixado de lado. Por isso, é muito perigoso pensar que Erasmo contra Lutero seja idêntico a Igreja contra Lutero. É certo que o holandês permaneceu católico, mas pode não ter dito tudo o que a doutrina católica diria, ou não se expressado como deveria. Dizem até que ele exagerou certas coisas, ao falar da liberdade, fazendo com que a doutrina católica não fosse percebida nesses exageros, é claro. Assim, quando de trata de um autor sozinho, não se pode coloca-lo totalmente em representação do Catolicismo. Assim com Lutero não é todo o Protestantismo atual.
Naquele momento, Lutero
e Erasmo não necessariamente eram Catolicismo e Protestantismo, mas o início
desse debate.
É certo que Erasmo
defendeu o livre-arbítrio, posição católica, correto, mas que nem todas as suas
afirmações podem estar de acordo com aquilo que deveria ter afirmado. Porém,
deve-se dizer, para evitar mal-entendidos, que entende-se bem que na avaliação
feita Erasmo incorpora o catolicismo e Lutero o lado protestante. O que se quer
dizer aqui é que ainda assim é preciso ter em mente as distinções apontadas
acima. Esse é um pequeno parêntese ao pensar nessas comparações.
A respeito das
asserções, é certo também que cristãos católicos vivem de asserções, de
constantemente aderindo, vivendo e defendendo a verdade em que crê. Não se trata
de algo novo no Protestantismo. Aliás, parece mesmo que essa nota é mais
católica do que nunca, quando li essa afirmação no livro do pastor português.
Parece até que estava falando do católico em comparação com o protestante, onde
o católico vive de asserções, e não pode deixar de fazê-lo. E parece que o
protestante nem as tem!, no sentido de estar moldando-se a todo o tempo na
“liberdade” que tem do seu livre-exame, de acordo com os ares que sopram do
mundo, e nas suas conformações com a cultura mundana. É o católico que mostra-se mais fora desse
contexto, como sempre.
Talvez o que o autor
esteja falando tem uma nuance diferente. Mas, não deixam de ser verdade as
linhas acima. Talvez o que Erasmo defendeu tem a ver com a tradição, e o que
Lutero asseverou seja somente o texto bíblico. O viver nas coisas excedentes
seria ir além do que estar escrito. E o ficar com o necessário seria ficar com
a Bíblia somente. Mas, isso é um pouco complicado, quando se tem em mente que a
história cristã, a hermenêutica e a afirmações autoritativas do passado não
caem facilmente para dar lugar a uma novidade teológica. E por quê? Como
resolver? É algo que somente o Catolicismo soube sempre fazer.
A questão da verdade
que une e da verdade que desune é algo também que não ficou claro. Parece
novamente que está falando do Catolicismo ao dizer que a verdade que desune é
aquela que preferimos, como católicos. Por isso, Bento XVI, papa que ganhou a
admiração do pastor Tiago, escreveu que o ecumenismo não pode ser feito à custa
da verdade. Ou seja, é na verdade que unimos, ou seja, na verdade que irá
contra as posições que não se adequam a ela, fazendo com que aqueles que
almejam a unidade cristã deixem suas opiniões e acolham a verdade, que é Cristo
e todo Seu ensinamento.
O Catolicismo não quer
unidade que não respeite a verdade. Essa é toda a história católica, basta um
pouco de leitura da história para constatar isso. A Igreja Católica nunca
procurou dizer o que o povo gosta, mas confrontar o povo com o puro Evangelho.
É por isso que porcentagem enorme de professos católicos não concorda com as
decisões e ensinos da Igreja! A palavra do Evangelho desune sim, os que
permanecem fieis daqueles que não.
Erasmo personificando o
espírito católico da concórdia, de não discutir para não desunir, parece não
ser tão exato. Fato é que o Concílio de Trento foi bastante longo e de muitas
discussões. Foram anos a fio estudando a Palavra. Não se pode negar que o
grande concílio ecumênico e dogmático de Trento tenha tido discussões. E porque
a doutrina de sempre foi mantida, não significa que não houve discussão, mas
que a doutrina era de fato verdade. E apesar das grandes divisões doutrinais, o
Concílio não cedeu em nenhum ponto. Outra coisa é que as discussões com Lutero
não lograram êxito, ao longo do tempo, de 1517 até a excomunhão em 1521, prova
que o ele não estava disposto da mudar suas posições, e isso também, e com
maior razão, deve ser reconhecido em relação à Igreja, que estava certa de não
poder mudar um til da doutrina que Cristo lhe confiou. E tudo isso ficou claro
no ensino do Concílio de Trento.
Outro ponto do debate
que o autor aponta entre catolicismo e protestantismo é o sinergismo e o
monergismo na salvação, ainda que admita que no interior do protestantismo há
também uma diferença entre as diversas opiniões.
O fato de o
protestantismo tornar o ser humano meros “figurantes para o protagonista”,
deixando tal coisa como uma base sólida a lutar contra a cultura vigente que
adota um “humanismo líquido”, ao passo que o catolicismo estaria mais de acordo
com o espírito predominante nas outras esferas do pensamento fora do
cristianismo, não parece ser algo tão exato. Parece mesmo que há um paradoxo
aqui. Vê que o Catolicismo sempre ofereceu uma barreira sólida e
instransponível quando se trata de defender o espírito evangélico das
investidas do inimigo, sejam quais forem as fontes de onde proveem os ataques.
Quando se nota que os católicos gostam mais de
pessoas que os protestantes, isso também é algo que deve ser enfatizado. No que
diz respeito a venerar os santos, o protestante logo põe-se como um “co-irmão”
de qualquer santo, em pé de igualdade, ficando de pé, e nunca se curvando,
sentindo-se igual e nunca inferior, alegando honra idêntica, jamais aquém de
qualquer salvo por Cristo.
Nisso é verdade, o
protestante não gosta tanto de pessoas. O ser humano pecador é coberto com o
manto de Cristo, e a santidade que deve perseguir por toda a vida está separada
da salvação um dia encontrada de uma vez por todas pela fé. Isso é o que Lutero
ensinou, diferentemente do catolicismo, e que tanto enfatizou, levando o homem
a cada vez mais sentir que suas faltas são “normais”, ainda que ensinado a
evitá-las, pois parte da natureza caída, mas que impossível de ficar sem elas,
atrelada ao fato de que todos os pecados são “iguais”, e que toda obra fora da
fé é “pecado”. Esse bojo de afirmações complexas provenientes da doutrina
luterana e reformada explica o motivo do protestante não gostar muitos de
pessoas. Mas não só isso. Explica também o porquê do protestante ser tão
indulgente consigo mesmo, de gostar tanto de si, a ponto de ser quase
impossível não estar sempre com o ego inflado. Aquilo que a natureza caída tem
de impulso natural, no protestantismo ganha essa ajudinha. O indivíduo
protestante gosta demais de si mesmo, a ponto de não ceder diante do outro.
O catolicismo por sua
vez, ensinando que o pecador livre e responsável por sua faltas deve estar
sempre buscando a perfeição com a graça de Deus que o levantou da morte das
trevas do pecado, tem nos outros um exemplo sublime, reconhecendo Deus com seu
tudo, e os irmãos como seus co-herdeiros e auxiliadores na caminhada para o
céu, a ponto de ser grato e conceder as honras aos irmãos que precederam na fé,
como a Escritura ordena em Hebreus 13, 7, sendo levados a não olhar tanto para
a miséria própria, mas reconhecer o nosso ser tão necessitado do perdão e
reconhecer ao mesmo tempo as graça dada aos outros, onde muitas vezes o outro é
melhor do que nós, e procurar crescer na fé como os tantos modelos que se
deixam plasmar através da graça.
Os católicos curvam-se
na humildade reconhecendo a pequenez, e que só Deus pode erguer o caído,
exaltar o humilhado. Essa diferente posição diante da vida é muito importante
reconhecer na espiritualidade católica e na protestante. O verdadeiro católico
tende a ter o ego menos inflado, a lutar contra essa tendência que o pecado
adâmico imprimiu na natureza humana, enquanto os irmãos protestantes vivem mais
da forma como foi sublinhada acima. Aliás, abrindo um parêntese, umas das
verdades a respeito dos sacramentos é que esses reprimem o orgulho humano, já
que temos de nos submeter a coisas sensíveis por obediência a Deus.
O católico tende a
honrar o outro, esquecendo-se de si. É mais corporativo, mais eclesial. O
protestante fecha-se mais em si, encontrando dificuldade em conceder honrar,
sendo mais individualista, relegando a igreja a um plano menos importante. É
importante notar que a tendência dos primeiros cristãos é continuada na
espiritualidade católica, enquanto que os protestantes são marcados pelo
espírito que forjou a cultura a partir do século dezesseis, com o humanismo,
passando mais tarde pelo racionalismo, e tantos outros sistemas do pensamento,
que mais afetam a igreja protestante.
Então, o catolicismo é
mais voltado para o elemento humano transformado pela graça, enquanto o
protestantismo volta-se ao humano individual, engrandecendo-se, muitas vezes. É
um paradoxo. As honras dadas pelas igrejas protestantes, por exemplo, a suas
figuras mais expoentes, é como um paradoxo. Para o catolicismo é um fluido
normal nascido de sua tendência natural.
Se o espírito moderno é
mais autossuficiente, não é no catolicismo que encontra mais calma atmosfera,
mas no protestantismo, que mantem, por outras vias, essa tendência. Espero que
o leitor tenha entendido.
A ilustração de que o
catolicismo parece ensinar que Deus procura coisa boa no homem não é correto.
Também não é apenas questão de ênfase a posição católica e protestante nesse
debate. É algo realmente diverso. Procura-se no fundo a mesma coisa, mas
elabora-se de forma realmente diversa. A doutrina católica mantem coerência em
todas as fases. A protestante tem seus tropeços aqui e ali. Para os que leram
os artigos que analisam a doutrina reformada sabe onde estão tantos tropeços e
quedas.
A questão do mistério é
importante saber alguma coisa. Não se trata de algo não revelado, mas que é
revelado parcialmente. Há algo que podemos compreender e algo que foge ao nosso
conhecimento. Assim a Trindade, a Encarnação, a Igreja, a salvação. A vida de
Cristo é cheia de mistérios: seu nascimento, sua infância, sua paixão, morte e
ressurreição. Então, sabemos bem o que é um mistério. Contemplamos os mistérios
de Cristo, rezando o rosário.
Assim, o mistério para
o católico não é algo que estar para ser revelado. Outra coisa: se o católico é
muito pouco comunicativo no que diz respeito à pregação, uma vez que encontra
Cristo, é mais por uma questão de cultura, que perpassa séculos. Pensando em
momentos em que toda a sociedade, praticamente, era católica, não era
necessário pregar o evangelho de uma forma tão incisiva. Os protestantes, como
minorias, faziam e fazem isso de modo mais enfático. No entanto, o católico é
chamado, desde sempre, a evangelizar. É algo que deve ser sempre resgatado. É
parte da missão cristã católica.
Outro ponto importante
é santificar a vida inteira a Cristo. Não se trata, no entanto, de afirmar que
não há sagrado e profano. Parece mais ser isso que Lutero teria a dizer. No
entanto, é óbvio que coisas que se fazem em tantos lugares não seriam prudentes
serem feitas na igreja. O lugar de culto deve ter seu devido respeito, assim
como diferentes momentos e espaços da vida espiritual. Por isso, o protestante tem menos sentido do sagrado que o católico. Dessa forma, não basta
afirmar que tudo é feito para a glória de Deus, como se tudo que ordinariamente
fazemos fosse o extraordinário! Não. Ainda que o católico faça tudo para a glória
de Deus, e é ensinado a fazê-lo, há distinções importantes. A vida cristã em santidade necessita de distinções, necessita do exercício do sagrado. Há sim, coisas
extraordinárias. A distinção é importante, cabe sempre frisar.
E por fim, nessa parte
do comentário é oportuno lembrar que desde o início do protestantismo surgiram
figuras que marcaram datas para o fim do mundo, como cita o autor. É algo que
vem do livre-exame, erros que muitos cometeram durante os séculos no interior
do Protestantismo, coisa praticamente inexistente no Catolicismo, pois Cristo
não revelou dia e hora. Esses fatos mostram como se dá o estudo bíblico nos
dois campos. Como se interpreta as Escrituras. É um sintoma importante.
Então, que o leitor
aprofunde-se mais nessas questões, da Escritura e da tradição, das asserções,
do sinergismo e do monergismo, das contribuições culturais que a Igreja tem
para oferecer, do pecado original, dos mistérios, o livre-arbítrio, das coisas e
profanas, e outras, que serão comentadas nos próximos estudos do livro.
Gledson Meireles.
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