Refutação
ao capítulo 5 do livro A Soberania Banida, R. K. McGregor Wright. A doutrina de
Charles Spurgeon.
Deus
salva pecadores. O que Spurgeon quis ensinar com essa
frase? É óbvio que a mesma não tem todas as informações sobre o que uma
determinada corrente teológica ensina ou não, já que ninguém nega a afirmação
de que é Deus quem salva os pecadores. Por isso é preciso destrinchar o que o
teólogo protestante realmente desejou ensinar com essa afirmação.
A afirmação de que Deus
quis salvar alguns dos pecadores que estavam cativos do pecado originado por
Adão e Eva não explica muito. De certo, pode já vislumbrar a diferença
essencial entre a doutrina católica e a protestante calvinista nesse quesito.
Deus intenciona salvar “alguns” dos pecadores, pois o calvinismo, como está
sendo tratado aqui, afirma que a cruz não foi para todos.
Até mesmo a afirmação
de Wright, de que “Deus interfere na história” para salvar, é um tanto difícil
para a doutrina calvinista, pois parece, com essa fraseologia ortodoxa, ter a
história como algo autônomo e que Deus passa em determinado momento a intervir
no processo histórico, o que não é o que o calvinismo ensina. Mais abaixo
veremos outra frase que respira ares ortodoxos.
De fato, quem fez e
colocou a história em processo? Daí deve-se dizer que a própria pergunta já
naufraga em seu início quando pretende explicar a doutrina reformada nos termos
que a mesma de fato não se sustenta, mas pretende sustentar. E é necessário que
assim o faça para manter o discurso ortodoxo.
Nesse ponto, a doutrina
católica não encontra dificuldades em afirmar ao mesmo tempo que Deus é o Autor
da história e que interfere nela para salvar, como é plenamente certa de que
Deus salva pecadores, por pura graça, sem ter que explicar esse palavreado
perante a crítica como a que se pretende aqui.
A doutrina arminiana
tem lá os seus motivos e respostas para a crítica de que o pecador tem
neutralidade de resposta ao evangelho. A doutrina católica, como já visto em
outros artigos, não está presa a essa dificuldade, e a supera tranquilamente, e
pode não ter que tratar dessa questão quando tudo está bem entendido.
A doutrina reformada ensina
que Deus faz tudo para a salvação, sendo passiva toda ação do homem nesse
aspecto. Os que são salvos são “obrigados” a entrar na salvação. Embora essa
seja uma palavra forte, e que parece dizer realmente o que o calvinismo está
ensinando, ela está contida nas críticas à doutrina reformada, e tem dela a
devida resposta de que Deus não obriga a ninguém contra a vontade a ser salvo,
mas que move a vontade a aceitar de bom grado.
Ainda, além de realçar
esse aspecto da doutrina calvinista, a parábola citada de Lucas 14, 21.23,
contem a mensagem de que os convidados não são salvos. Obviamente dirão que
muitos dos convidados possuem apenas o chamado geral, e não o eficaz, e por
isso não foram admitidos à festa. Na verdade, aqueles convidados não foram para
a festa porque não quiseram, diz o Evangelho de Jesus, e o convite é idêntico,
àquele feito aos demais, ou seja, para o mesmo lugar, para a mesma festa, o que
torna a posição reformada defeituosa nessa explicação. Deve-se admitir que Deus
faz o convite a todos, mas muitos o rejeitam, como aqueles judeus do tempo de
Jesus o fizeram.
Enfim, para contrastar
a salvação dos gentios, Jesus utiliza a palavra obrigar, para falar do convite à festa, para deixar clara a
gravidade da recusa da salvação feita por muitos, e a desfeita que fizeram a
Deus.
De fato, não se deve
entender cada palavra da parábola literalmente, porque doutro modo diríamos que
Deus salva por ira, e ainda que salva
muitos por ainda sobrar espaço no céu e para que outros, os que foram
convidados primeiro, não entrem. Isso porque a parábola afirma que o servo saiu
e levou muitas pessoas para a festa e avisou ao patrão que ainda havia lugar.
Nisso, o senhor ordenou que o servo buscasse mais pessoas e enchesse a casa, obrigando todos a entrar. Ainda, haveria
espaço para outro mal-entendido, como se os pobres, aleijados, cegos e coxos, e
menos ainda, os que vivam entre caminhos e atalhos, não estivessem no primeiro
convite! Obviamente não é esse o sentido da parábola, mas se deve fazer essas
reflexões para que não se tome uma palavra qualquer e a torne prova para uma doutrina.
Por isso, quando se diz que o senhor mandou o servo “obrigar” a entrar na
festa, entenda-se o quadro da parábola literalmente, para somente depois
entendermos o sentido espiritual dela.
Outros problemas para a
teologia reformada haveria se fizéssemos maiores comparações com a parábola no
evangelho de São Mateus 22, 1-14, onde os convidados não foram dignos, e,
depois da segunda onda de convidados, um deles entrou na festa e não estava com
a veste nupcial, sem contar os “maus e bons” que foram convidados .
Voltando à parábola em
Lucas 14, tudo isso está no contexto da ira do senhor pela desfeita daqueles
primeiros convidados. Essa parábola está ilustrando o amor de Deus em salvar,
convidando a todos, mas recebendo a recusa ao seu convite.
Outra passagem muito
usada pela teologia reformada, contra o livre-arbítrio, é a de João 15, 16, que
Wright afirma não ter resposta da parte arminiana.
Mas, eis que a seguir,
mais uma linguagem de Wright soa bem católica, quando diz que Deus “faz o que é
necessário para vencer o eleito”. Essa é a frase aludida antes, que tem ares de
doutrina católica.
De fato, Deus chama o
pecador, estende o Seu poderoso braço para salvar, dá toda a força ao pecador
para agarrar em Sua misericordiosa mão salvadora. Mas, muitos não querem. O
eleito é pecador, e está agindo contra a revelação de salvação, mas Deus faz de
tudo para salvá-lo. No entanto, o que o calvinismo ensina é que mesmo aquela
radical aversão à salvação é parte do plano de Deus, para os não-eleitos, e para
os eleitos até determinado tempo, o que não faz sentido a ação de Deus para
vencer o coração pecaminoso do homem.
A interpretação de 2
Pedro 1, 10, pelo autor reformado, é de que não devemos fazer segura a nossa
salvação, mas que devemos nos tornar seguros dela, da vocação e eleição. Ou
seja, o crente não deve fazer certa a sua salvação de algum modo, mas já está
salvo, e deve estar certo dessa realidade já confirmada.
Vejamos a passagem
inteira, para vermos se podemos concordar ou não com essa explicação, e se
nesse texto o calvinismo tem ou não alguma base.
Para isso, como de
costume, como é correto, como é a verdadeira exegese bíblica, seguindo os dados
da sã hermenêutica, não podemos nos esquecer do contexto, principalmente do
contexto imediato, aquele mais próximo, que circunda o texto bíblico em apreço.
Então, vejamos que o
verso 3 ensina que Deus deu-nos tudo que contribui para nossa vida e piedade, e
nos faz conhecê-Lo, que nos chamou através de Sua glória e virtude. Fomos
chamados pela glória e virtude de Deus, e recebemos o poder de Deus para O
conhecermos.
Assim, entramos nas
posses espirituais, para nos afastarmos da corrupção do mundo (v. 4). Aí, no
verso 5, há o esforço do cristão, para unir à fé a virtude, etc., para que
assim os cristão não fiquem inativos e sem frutos. Ou seja, há uma atividade do
crente para garantir que eles sejam ativos e praticantes dos frutos do
evangelho. Isso está nos versos 4-8.
A seguir, o v. 9 afirma
que sem essas coisas o cristão é míope e cego e esqueceu-se da purificação dos
seus pecados. E então? Ele continua bem espiritualmente, continua salvo e com
garantia eterna da salvação, ou há algum problema quanto a isso? Vejamos o que
segue na Palavra de Deus.
O v. 10 exorta a
assegurar a vocação e eleição. Isso concorda com a lembrança, aludida no verso
anterior, de que devemos ter sempre a vocação e eleição divinas, da purificação
dos nossos pecados. Até aqui, nada há que possa desabonar a tentativa reformada
de garantir a sua intepretação da graça contra o livre-arbítrio nessa passagem.
Mas, ela continua assim: “Procedendo desse modo, não tropeçareis jamais.”
Então, o verso 12 coroa essa verdade: “Assim vos será aberta largamente a
entrada no Reino”.
Isso significa que a
lembrança da salvação deve estar presente segundo tudo o que foi dito antes: na
vida de uma fé ativa e cheia de frutos, para não tropeçar, ou seja, para não
pecar, e então será aberta a porta do céu. Vigilância sempre, como está no
verso 13. E os cristãos que estavam recebendo aquela carta estavam instruídos e
confirmados (v. 12), estavam vivendo retamente. Dessa forma, a passagem
não diz que o ato de estar seguros da salvação recebida é o que importa aos
cristãos, em contraste com o conceito de tornar segura a salvação, de forma que
os cristãos estavam salvos para sempre, mas, ao contrário, que devemos ser
obedientes, para participar da natureza divina, ficando longe das corrupções do
mundo, esforçando na fé e outras virtudes, praticando as boas obras (porque
quem não tiver essas coisas (cf. v. 8) não está reconhecendo a salvação) e
assim assegurar a salvação e eleição, da forma ensinada nos versos anteriores,
para que agindo assim não caiamos em pecado e tenhamos a porta do céu aberta.
De fato, o conceito de
perseverança em resposta do livre-arbítrio à graça recebida de Deus para a
salvação está em toda a passagem, assim como a ideia de que é possível tropeçar
e perder essa entrada no Reino. Por tudo isso, essas admoestações são necessárias
(vv. 13-15). É o evangelho que a santa Igreja Católica anuncia.
Os reformados poderão
dizer que a perseverança, os esforços santos dos eleitos, as admoestações, e
etc., já estão no plano de salvação, são resultado da eleição, e que isso não
nega o que foi dito da gratuidade da salvação.
O problema é que a
passagem bíblica não diz isso, mas deixa o crente com o temor de tropeçar. O
verdadeiro reformado tem o temor de tropeçar, mas não de perder a salvação,
enquanto que o texto bíblico admoesta sobre o temor de tropeçar e não ter aberta a
porta do Reino, ou seja, a perda da salvação, se não agirem da forma como foi
exposta. O problema é profundo para a teologia calvinista, abordada por Wright, e o autor não pode negar essa conclusão.
Gledson Meireles.