domingo, 28 de junho de 2020

Objeções sobre São Tiago apóstolo


Em junho de 2017 iniciou-se um debate sobre a autoria do quarto evangelho, que todos sabemos ser tradicionalmente atribuído ao apóstolo São João, o discípulo amado de Jesus, aquele que esteve aos pés da cruz com a virgem Maria, mãe do Senhor, e que cuidou dela a partir daquele momento.

Isso foi devido à tese de que o escrito do quarto evangelho seria Tiago, e que esse Tiago seria “irmão” de Jesus e não um apóstolo. Por isso, foram publicados neste blog dois artigos refutando a tese. Alguns dias depois foi publicado outro artigo considerando as argumentações feitas aqui, tentando refutá-las. O artigo é Refutando objeções ao terceiro Tiago (Parte final), publicado dias depois. Segue a resposta a esse artigo.

O primeiro argumento é que o texto de João 7, 5 diferencia discípulos e irmãos de Jesus, o que não faria sentido se os irmãos fossem discípulos. Mas, isso não procede pelo motivo seguinte: nem todos os irmãos ou parentes de Jesus foram apóstolos. Talvez, também, existem mais que quatro parentes masculinos, além de Tiago, José, Simão e Judas. José não esteve com certeza entre os apóstolos. O mesmo não se pode dizer dos demais, já que Tiago é apóstolo, também seu irmão Judas. Simão pode ser o zelota. Dessa forma, três dos chamados irmãos do Senhor eram apóstolos.

A incredulidade dos parentes de Jesus é afirmada no início do Seu ministério, quando Ele realizou o primeiro sinal público em Caná da Galileia, como está no Evangelho de João, capítulo 2. Por esse motivo, após os, aproximadamente, três anos que se passaram, o argumento de que Tiago não podia ser ainda reconhecido como seguidor de Jesus não faz sentido. Não se pode afirmar que ele estava com Jesus durante todos esses anos e não fosse visto como discípulo, pelo menos. Ainda mais, quando se reconhece que ele era um dos doze.

Portanto, a citação de João 7, 1-5, que se refere ao início do ministério do Senhor, não responde à objeção que foi posta nos artigos precedentes.

Tentando substanciar o argumento, utiliza-se a possiblidade de que Tiago certamente converteu-se nos últimos dias antes da morte de Jesus, o que o faria diferente dos outros que estavam sempre com Jesus. Mas como? Se ele converteu-se, e já andava com o Mestre, como pode ainda não ser reconhecido como seguidor de Jesus no meio de tantas perseguições, inclusive aquelas últimas que prenderam Jesus e o levaram à cruz. Todos os que ali estavam viram Tiago com Jesus e os demais, caracterizando seu discipulado, ou mais exatamente, seu apostolado.

É um fato de que o discípulo amado era convertido quando Jesus entrou onde estava o sumo sacerdote, como está em João 18, 15. Aquele que entrou com Jesus era discípulo, como diz a Escritura. Não se fala de alguma convocação para que acompanhasse Jesus, mas que ele quis entrar, pelas facilidades que tinha, e ainda conseguiu a entrada de Pedro (v. 16). Ele era discípulo e não estava amedrontado, ao contrário de São Pedro.

O motivo de medo de Pedro e da coragem de João não corrobora a tese de que esse não tinha medo por não ser considerado discípulo, como acaba de ser provado.

O medo de Pedro certamente não era unicamente seu, pois a cena descrita no evangelho parece afirmar que nenhum dos outros apóstolos e nem dos parentes de Jesus estava naquele local! Considerando a tese de Tiago como discípulo amado, poderia também ser questionado o motivo dos demais “irmãos” de Jesus não estarem ali, já que não deveriam temer, pois teriam a desculpa de serem apenas parentes e não somente discípulos! De fato, afirma-se que eram incrédulos, mas que não tinham motivo para odiar Jesus, apenas não criam que fosse o Cristo.

Dessa forma, o medo não se explica por essa via, de que havia um motivo a mais para Pedro temer, e o discípulo amado não. O que se dá na verdade é que as diferenças de personalidade explicam isso naturalmente. Além do mais, a cena é descrita para mostrar o cumprimento das palavras de Jesus quanto à negação de Pedro.

A segunda tentativa de refutação se dá contra o argumento de que Tiago, segundo a tese mencionada, seria um novo convertido, tendo passado a vida em incredulidade, e ainda assim aparece sempre com Jesus e, no final, teria tido sob seus cuidados Maria, que supostamente seria sua mãe também.

A questão do cuidado de Maria não é entendida como responsabilidade do melhor discípulo, mas o fato é que o único discípulo que se encontrava aos pés da cruz foi aquele que recebeu essa missão de Jesus.

João não poderia ser o cuidador de Maria por ser jovem, e ter de sair anunciando o evangelho por todo o mundo? Mas, como já foi provado, o apóstolo Tiago, se fosse filho de Maria e irmão consanguíneo de Jesus, teria praticamente a mesma idade de João! São Tiago também foi anunciador do evangelho, trabalhou bastante, o que supõe a sua eminência em Jerusalém, e também foi perseguido. Essas coisas não oferecem obstáculo para o cuidado de alguém como o foi o de João para com Maria. Essas conjecturas são levantadas em oposição à tese de que Tiago era um irmão de Jesus.

Outra coisa é que o argumento parece exigir que Jesus somente entregou Maria aos cuidados do discípulo amado porque ele era seu parente! Ele não poderia pedir isso a João? E se João fosse seu primo? Salomé talvez era uma parenta de Maria, e isso explica muito o grande apego de João a Jesus, e ainda responde à dificuldade do parentesco. João estava lá por ser apóstolo e discípulo fiel, mas também por ser primo do Senhor Jesus. Parece ser essa a tese mais provável.

Se Tiago fosse o discípulo amado, o que explicaria estar próximo da cruz de Jesus com Maria, então, por esse mesmo motivo deveriam estar os outros “irmãos” supostamente filhos dela! Esse argumento não responde esse pormenor. Nem apóstolos, nem os demais discípulos, nem os outros parentes estiveram na crucificação de Jesus. O argumento parece não ter valor por essa razão.

O autor sugere que no artigo houve um mal-entendido, passageiro, por sinal, a respeito do seu pensamento quanto às palavras de Jesus na cruz a Maria, e escreve assim: “Primeiro, eu não disse isso em relação à tese de Tiago mas sim em relação à tese da “mulher”.” Mas, para evitar justamente esse tipo de coisa havia sido escrito “e o autor do artigo, em outra circunstância”, ou seja, em uma situação diferente, havia utilizado um argumento de substancia semelhante, e não que havia usado o mesmo argumento nos mesmos termos, relativos ao discípulo amado e Maria.

Quando à frase “Eis aí o teu filho”, o sentido é entendido pela explicação do evangelho, mas permanece o argumento que de que Jesus pronunciou essas palavras sem maiores explicações. O argumento continua válido.

A redundância continuaria se aceitássemos a tese do Tiago “filho” de Maria. De fato, Jesus olha para Maria e diz: “Eis aí teu filho”! Para quê, se ele já fosse filho? E ainda ao filho: “Eis aí tua mãe”?, se ela já fosse sua mãe!!! - redundantemente! Poderia ter apenas passado a responsabilidade de cuidar de Maria. Essas palavras mostram bem claro que o discípulo amado não era filho da virgem Maria, mas que naquele momento recebeu a missão de cuidar dela como se fosse. Tornou-se filho adotivo dela por vontade de Jesus. Aliás, como já afirmado, talvez João fosse primo de Jesus, e a objeção do parentesco perde mais sua força.

Os apóstolos e discípulos e parentes do Senhor sumiram, e não chegaram nem próximo da cruz. Os apóstolos fizeram isso por medo, não por outro motivo. E os demais? Como já explicado antes, o argumento não conseguiu desfazer essa dificuldade da tese.

O texto de Marcos 14, 51 afirma que ‘todos’ abandonaram Jesus e fugiram. Não havia ninguém mais com Ele, apenas Pedro que, com um pouco de coragem O seguia de longe, e João que O acompanhava de perto. Se eles estavam prendendo Jesus, sem quaisquer provas contra que O fizerem merecer a morte perante a lei, deveriam fazer isso quanto aos discípulos? Talvez sim, mas ainda não abertamente, pois João não chamaria Pedro a entrar com ele colocando-o em perigo. Nem mesmo ele seria aceito ali, pois confessa Jesus como o Cristo. Dessa forma, os que fugiram o fizeram por medo, em primeiro lugar.

O autor defende que as autoridades teriam prendido os apóstolos, causando terror entre eles, inclusive, e com maior razão, no mais novo João.

A tese tradicional é atacada pelo autor do artigo como “a mais ridícula”, pelo motivo de fazer os apóstolos fugirem “à toa”, e contra essa tese insinua-se que jovens discípulos não podem ter maturidade para enfrentar o martírio. Com isso, argumenta ser um motivo racional.

Mas, a pouca idade não é motivo para não crer que João pudesse ser destemido e disposto ao martírio. Isso não é racional, a menos que em toda a história nunca tivesse havido um jovem adolescente entregando sua vida por Cristo, ou mesmo em outras circunstâncias os jovens corajosamente enfrentando os mais terríveis perigos. Se isso fosse impossível, o argumento teria valor. Mas isso é algo muito fraco, e só faria sentido como um realce no interior de um argumento mais forte.

Ainda, pelo que foi explicado acima há uma tensão: as autoridades naquele momento não tinham uma posição clara e firme contra os discípulos, apenas contra Jesus. No artigo que está sendo comentado é afirmado o contrário: “Eles abandonaram Jesus porque sabiam que as autoridades romanas não permitiriam a presença deles ali, sob o risco de lhes serem imputados a mesma pena que foi dada a seu mestre.” É algo a ser considerado.

Contrapondo o argumento de que Maria não é associada nem a João nem Tiago, o que faria sem valor a argumentação nesse sentido, o autor afirma que “então a associação de Maria a Tiago está perfeitamente clara, sim”, pois indiretamente ela é associada aos “irmãos” de Jesus, e Tiago era o mais velho. Nesse sentido, não há o que objetar, já que Tiago era filho de Maria de Cléofas, e que nesse sentido estava de alguma forma ligado a Maria mãe de Jesus por ser seu sobrinho. Mas, o que foi objetado antes é que não é ligação direta, ou clara, explícita, em alguma passagem do evangelho ligando a virgem Maria ao apóstolo Tiago (ao chamado terceiro Tiago nessa tese), portanto valendo a argumentação contra a posição que levanta o fato de João não ser vinculado a Maria dessa forma, certamente, nos evangelhos. Então, a associação “perfeitamente clara” não é a maneira certa de descrever essa associação, já que ela é feita indiretamente, através da menção aos irmãos de Jesus. Por isso, no artigo foi frisado “o plural” e não uma associação clara e singular

Por que Tiago era “figura eminente em Jerusalém”? Antes do Concílio de Jerusalém Tiago já aparece como alguém muito conhecido. Isso também ocorre nos evangelhos, já que a Maria de Cléofas é chamada de mãe de Tiago, o que significa ser ele uma pessoa que identificava sua mãe.

O autor do artigo parece ter entendido que desde os tempos dos evangelhos Tiago já era bastante conhecido em Jerusalém, o que é incorreto, pois no artigo foi dito que Tiago era eminente em Jerusalém e foi citado “com essas características”, ou seja, de eminência “desde os evangelhos”, pois é fato de que as citações a respeito de Tiago mostram que ele sempre foi notável, conhecido, eminente, etc., a ponto de ser citado em primeiro lugar em várias ocasiões e estar em contexto que mostra ser uma pessoa bem conhecida. Essa foi a intenção do que foi colocado antes. Não se faz a diferença entre o Tiago de Marcos 6,3 e 15, 40, pois se trata da mesma pessoa. Então, ele é expressivo, aparecendo também em Mc 3, 18 e Mt 10,3.

A respeito de Tiago não ser o discípulo amado, e que o fato de que seria mais velho não explica isso, não se deve ao motivo de que entre alguns um só ser o mais amado. O argumento não é esse, e surgiu pelo que foi colocado no artigo em análise, e por isso o apologista não entendeu bem. Ficou parecendo que o argumento é da apologética católica, quando na verdade é uma resposta ao que transpareceu na argumentação protestante.

O argumento é unicamente que o fato de ter convertido mais tarde e que seria o mais velho não o faria ser o discípulo amado. Isso foi algo que transpareceu no artigo e que, dessa forma, foi refutado por essa tese.

João era o mais próximo de Jesus entre os doze, e não Pedro. Basta ver os relatos da última ceia e da ressureição.

A questão a respeito de quantas pessoas participaram com Jesus na última ceia é algo que parece favorecer somente os doze apóstolos, embora no artigo analisado o autor defenda que no “grande cenáculo” (cf. Mc 14,14-15) só poderia ser escolhido porque muitas pessoas a mais iriam cear com Jesus também.

O argumento de que Jesus alugou um lugar grande para cear como única opção a ser escolhida, para não ser considerado “um louco desvairado”, é uma exigência bastante forte. Parece afirmar que Jesus alugou o local, quando o texto não deixa claro, não revela, que foi assim que o Senhor preparou aquele lugar. Poderia ter sido doado por um amigo que morava em Jerusalém. O argumento exigiu cem por cento de certeza que Jesus alugou um lugar grande porque muitas pessoas deveriam cear com Ele, pois do contrário teria “esnobado” dinheiro.

É claro que as passagens bíblicas não necessariamente trazem especificidades como, por exemplo, a citação de todas as pessoas que estão em determinada cena, o que faz necessária uma exegese bem fundada para extrair os dados revelados. Assim, por exemplo, é que Jesus, com Maria e José, ia todos os anos a Jerusalém para celebrar a páscoa. Naquele relato fica claro que era filho único. Talvez, porque as Escrituras nem sempre mencionam todas as pessoas participantes de um evento, alguém possa inferir que ali poderiam estar os outros “irmãos” de Jesus, e que não foram mencionados. O problema é que não é somente a falta de menção que exclui alguém de uma determinada passagem, mas outros fatos que revelam que, na verdade, somente estavam aqueles que foram mencionados.

Assim, quando Jesus fica em Jerusalém, Maria e José, quando notam que Ele não estava na caravana, O procuram entre “parentes e conhecidos”. Então, voltam a Jerusalém e afirmam que somente eles dois estavam procurando Jesus.

Na imaginação que Tiago por esse tempo tinha 9 anos de idade (pois no artigo o autor afirma que quando Cristo tinha 33 anos era provável que Tiago tivesse 30), Tiago, se fosse mesmo irmão do Senhor, certamente estaria com Ele, tendo idade muito próxima e, com grande probabilidade, haveria notado a ausência de Jesus desde os primeiros minutos. No entanto, a cena do evangelho exclui qualquer irmão, mas apenas parentes e conhecidos. Certamente, as outras crianças, das outras famílias, notaram que Jesus não estava ali, mas isso não foi suficiente para que relatassem o fato a Maria e José, já que estavam ocupados com outras coisas com seus pais e familiares mais próximos, e talvez estivessem um pouco afastados enquanto caminhavam na viagem, ou por qualquer outro motivo.

Isso seria diferente se existissem “irmãos” de Jesus: Tiago (9 anos), José (8 anos), Judas (7 anos) e Simão (6 anos), supondo que as chamadas “irmãs” não estivessem intercaladas aí, então mais uma irmã com 5 anos e outra com 4 anos, mais uma vez imaginando que nasceram todos em sequência anual, um filho por ano, e ainda supondo que não haviam mais irmãos homens e nem mais irmãs mulheres. Tudo isso na suposição das idades encontradas no artigo analisado. Isso é mera imaginação. Mas, poderia Tiago ter 11 anos, e os demais seguindo a cada ano, o mais novo, dos seis referidos, com 6 anos. É plausível pensar nas dificuldades de Maria e José, se isso tivesse ocorrido, indo todos os anos a Jerusalém com filhinhos tão pequenos. Só isso já contradiz a narração bíblica. Por isso, Jesus era filho único.

Algo muito interessante, e plausível, é a tese de que na ceia, estava Marcos, que era o discípulo que fugiu nu, (cf. conforme Marcos 14, 32), como também estavam na ceia, com Maria e demais familiares de Jesus e etc. Pelo relato de Mc 14, 32 parece que o discípulo que fugiu ali poderia ter estado na ceia. Mas isso não é registrado, e fica difícil asseverar sua presença lá, pois todos os textos que falam da ceia excluem quaisquer outras pessoas para o evento.

Que o apóstolo Tiago estava lá não há dúvida. Mas, que ele seja o escritor o quarto evangelho, isso não é provável. Que seja um “irmão” de Jesus, é impossível. Que seja um primo é o mais provável possível.

Quanto à questão da afirmação de Jesus na última ceia: “É um dos doze”, como evidência de que havia mais pessoas ali, isso já foi tratado no outro artigo. Que os leitores analisem o nível dessas considerações, e apresentem soluções, se tiverem, para as dificuldades apresentadas.

Gledson Meireles.
Ver também: a   primeira visita de São Paulo a Jersualém, que traz luz para essa discussão.

segunda-feira, 22 de junho de 2020

Católicos em Genebra

Uma curiosidade da cidade de Genebra, na Suíça, por sua história como sede do calvinismo no século dezesseis, é que atualmente é de maioria católica.

quinta-feira, 18 de junho de 2020

A presença de Jesus na ceia

Respondendo a um vídeo sobre a Eucaristia

No canal Dois dedos de teologia foi publicado um vídeo com argumentos contrários à presença substancial de Jesus na Ceia do Senhor, que é a Eucaristia. São apresentados três argumentos, interessantes por sinal, que propõem uma leitura simbólica, memorial e espiritual das palavras de 1ª Coríntios 11 a respeito da Ceia. Em outras palavras, a doutrina que não teria possibilidade alguma seria somente a da presença real substancial, que é explicada pela transubstanciação.

O conteúdo da argumentação utiliza os termos fortes de presença física e presença material, para tornar mais compreensível a contraposição com a ideia intelectual da presença apenas, que está no ensino do mero simbolismo, ou mesmo da presença espiritual, por meio da fé, mas não nos elementos, e da comemoração do memorial do Senhor, que refere-se à morte de Cristo.

O versículo principal para construir o argumento foi 1ª Coríntios 10, 16, partindo do conceito de comunhão.

Em primeiro lugar, o argumento debruça-se sobre o assunto tratado nos capítulo 8, 9 e 10 da 1ª Epístola aos Coríntios. Dessa forma, o fato das comparações com a Ceia do Senhor feitas, no contexto, seria suficiente para negar a presença real de Jesus na eucaristia.

Deve-se ter em mente que a presença real refere-se à presença de Jesus nos elementos da Ceia, e não uma presença espiritual no momento apenas, muito menos uma presença meramente simbólica.

O primeiro argumento é tirado da metáfora de que “nós somos o pão”.

Em 1ª Cor 10, 17 está escrito: “Uma vez que há um único pão, nós, embora sendo muitos, formamos um só corpo, porque todos nós comungamos do mesmo pão”.

O que o texto acima afirma não é que “nós”, a Igreja, somos o pão, mas que existe um só pão, que é Cristo, e que nós, que somos muitos, nos tornamos um Corpo pelo fato de participar do mesmo pão, que é Cristo. Somente secundariamente há lugar para o símbolo do pão em relação à Igreja. O original grego não afirma que nós somos pão! Não há essa fraseologia, e o contexto deixa claro que essa é uma construção claramente simbólica.

Por isso, o argumento de que a Igreja não está substancialmente no pão, que não é partida no pão, como se fosse uma razão contra a presença real de Cristo no elemento eucarístico, não tem validade, porque a Bíblia não afirma que a Igreja “é” o pão.

Sendo assim, da forma apresentada, essa metáfora não existe. O que pode existir, e é o que faz sentido, é tomarmos a Igreja como um pão, simbólico, porque faz comunhão com o Corpo do Senhor. Não havendo, dessa forma, uma metáfora bíblica que compare a igreja ao pão eucarístico, o argumento desaparece.

O texto grego dessa passagem literalmente traduzido afirma o seguinte: Porque um pão, um corpo os muitos somos nós, pois todos de um único pão participamos.

Se podemos ser considerados metaforicamente “um pão” é porque participamos do único pão que é Jesus. Assim, não existem dois pães, mas somente um. E aqui fecha-se o argumento. Ainda, o motivo de podermos aproximarmo-nos da simbologia do pão é pela participação do Pão.

Por isso, não há, nem mesmo na comparação, motivo para pensar que essa metáfora pudesse ser interpretada como exigindo uma presença substancial da Igreja no pão mencionado, para salvaguardar a presença de Cristo, pois a Igreja não é o pão!

Para ficar ainda mais claro: só Jesus é o pão do céu. A Igreja é um pão pela multidão de fieis unidos num só corpo. A Igreja é um pão, com artigo indefinido, um corpo, porque (o motivo de ser isso) participa da comunhão com Jesus, que é (em substância) o Pão que alimenta a Igreja e a faz unida e única.

Portanto, o primeiro argumento não tem força para negar a presença de Cristo na Eucaristia, mas revela um erro interpretativo.

Mas, perguntaria alguém, a metáfora da Igreja como um pão não estaria relacionada à outra metáfora de Cristo como pão? De forma alguma, nos termos que se pretendeu acima, pois Cristo não significa o Pão, mas é o Pão. A Igreja não significa o pão, nem é o pão, mas em sentido simbólico é um pão ou corpo porque se faz uma em Cristo. Para usar o artigo definido poderia dizer-se que a Igreja é o Pão, a Igreja é Cristo misticamente significado. Mas, sabemos que isso é uma forma espiritual de entender o mistério de Cristo e a Igreja. Assim, Cristo é um, e a Igreja é formada por muitos, e assim em Cristo a Igreja é feita um só corpo.

A metáfora comparativa não afeta a presença substancial de Cristo, mas a reforça, como ficará patente mais adiante. E esperamos que o autor desses argumentos apresente resposta a esta refutação.

Então, a Igreja não é mesmo um pão literal, como ficou explicado acima, e não cabe o argumento que se faz sobre essa suposição. A Igreja não está no pão eucarístico porque ela participa do pão e não que é ou está simbolizada no pão. Isso é o que a Bíblia afirma. O pão é Cristo e faz a Igreja tornar-Se misticamente ou espiritualmente o Seu corpo. É algo profundo. Em espírito nos unimos a Cristo, e também nos unimos a Ele na eucaristia. Mas, quem está na Eucaristia é Cristo.

Na última ceia Jesus fez uma espécie de extensão do Seu Corpo, espiritualmente, tornando aquele Pão o Seu próprio Corpo, em substância. Pelo poder do Espírito Santo. O entendimento real através do conceito de fisicalidade ou materialidade é melhor descrito pela substancialidade, que faz com que aquilo que Jesus tinha na mão naquele momento não apenas simbolizasse ou indicasse algo espiritual, mas fosse o sacramento do Seu corpo.

Quando se diz que somos um pão e por isso devemos ser um corpo, está-se misturando as metáforas, porque é o contrário: pela união a Igreja é comparada a um pão, a um corpo. A união faz a comparação do pão e não o pão torna necessário compreender a união. Certamente essa afirmação que o autor faz foi algo que não seja parte necessária da sua argumentação, mas de qualquer forma coloca-se aqui esse esclarecimento.

O segundo argumento é que São Paulo faz a comparação da comunhão que acontece nos sacrifícios antigos e da comunhão que é realizada pela Eucaristia. Então, da mesma forma que na antiga Lei os sacrifícios não precisavam trazer a presença física de Deus para que acontecesse a comunhão, a Ceia do Senhor não exigiria a presença física de Jesus para efetuar a comunhão com Ele. Eis o argumento básico.

Pois bem. São Paulo compara duas mesas, que são dois altares, pois fala de sacrifícios. Isso é algo importante. A mesa dos demônios e a mesa do Senhor, ou seja, o altar dos demônios e o altar do Senhor.

Naquele há comunhão com as vítimas sacrificadas, e no verso 19 está escrito que essas vítimas não são “alguma coisa”, mas o Demônio é que recebe o culto. Em si aquelas carnes não são nada.

Portanto, a comparação com a Eucaristia não se faz por essa via, pois a carne do Senhor que é oferecida na Ceia é a carne juntamente com a Palavra poderosa de Jesus que a torna presente. Ninguém poderia concordar que o corpo do Senhor pelo qual se faz a comunhão seja nada! A comparação da comunhão prescinde da presença substancial, mas está de acordo com ela.

O que o texto afirma é que as carnes sacrificadas não faziam comunhão com as divindades porque as próprias divindades não existiam. Mas, os cristãos oferecem o corpo do Senhor que existe! Por esse lado, estabelece-se o caminho para a compreensão da transubstanciação.

Outra consideração se dá com a argumentação de que o Senhor não estava nos sacrifícios do Antigo Testamento. De fato, Deus não poderia estar ali presente em substância corporal porque Deus é Espírito, e no Antigo Testamento Israel estava à espera do Senhor Jesus. Portanto, a comparação é inválida. Jesus não poderia estar presente nos sacrifícios antigos pois ainda não havia assumido um corpo.

A comunhão era feita pela fé, e não havia presença real substancial pelo motivo acima descrito.

No Novo Testamento, os sacramentos são superiores, pois cumprem o que os antigos sacrifícios simbolizavam. Eles possuem agora a possibilidade que os sacrifícios antigos não possuíam. Agora, Cristo pode estar presente como Salvador, em Sua natureza Humana glorificada, por meio do Sacramento. A comparação segunda também não oferece argumento válido contra a Eucaristia como presença substancial de Jesus.

A comunhão existente nos sacrifícios antigos e no sacrifício do Novo Testamento é real. O que o sacramento novo traz de superior ultrapassa o argumento que é feito a partir do significado de comunhão.

É o mesmo que afirmar que os salvos do Antigo Testamento foram salvos por Cristo, assim como o são os do Novo Testamento. No entanto, a nova aliança é superior, e um dos motivos é o da presença substancial de Jesus no sacramento da eucaristia. A graça é mais abundante. Essa observação responde à segunda objeção apresentada. Ela se dá pela comparação da “koinonia” que há nas duas partes comparadas, e essa comunhão não afeta a realidade da presença real de Cristo na Eucaristia como está sendo apresentada acima.

Ao mesmo tempo, essa explicação responde à terceira objeção, que nasce da segunda, e que diz que São Paulo poderia ter apresentado a superioridade da presença de Jesus na Ceia quando comparou a comunhão nas duas mesas mencionadas. Mas o fato em si não estava em questão, e isso explica que ulteriores explicações não são exigidas, e pelo que o próprio objetor apresentou o contexto tratado era outro e não o de apresentar uma doutrina da ceia. A eucaristia surge ali como parte de um argumento.

Ainda que a superioridade da eucaristia ajudasse como argumento, o que de fato é verdade, ela não se faz necessária pelo que já foi posto, pois é dito que as carnes sacrificadas aos demônios não são nada, o que pode ser concluído que Cristo é tudo. De outra forma, está afirmando que naqueles sacrifícios não havia divindade para a comunhão, enquanto que para os cristãos há. Indiretamente se responde à terceira objeção.

Concluindo, São Paulo não afirmou que somos o pão, mas que somos um pão, da forma que foi explicada acima.

Mais. Os sacrifícios do Antigo Testamento simbolizavam a comunhão, com presença espiritual de Deus, e não física, porque Deus não tem corpo, e os sacrifícios eram sombra do que havia de acontecer. No entanto, Jesus agora possui corpo.

Ainda, a comunhão do Novo Testamento é feita pela fé, mas há a presença de Jesus, que tornou-Se carne, e pode estar presente de forma sacramental. Por isso, afirmou que é necessário para a salvação comer do pão e beber do cálice, e não se pode afastar essas palavras de obrigatoriedade da Ceia, pois é nela que há o alimento de Cristo de forma singular. Cristo alimenta pela Palavra, e de outras formas também, mas o faz de maneira especial na eucaristia. Isso já leva à fé na presença substancial.
Gledson Meireles.

Fonte: vídeo sobre a eucaristia que foi respondido acima. 

domingo, 7 de junho de 2020

Artigos sobre a Eucaristia

Comentando alguns artigos sobre a Eucaristia:

Eucaristia

Parte 2

Santo Irineu (130-202)

Santo Irineu afirma que participar do corpo e do sangue do Senhor é participar da vida. Então, por isso entende-se a graça que é a comunhão. Praticamente todos os cristãos concordam com essa doutrina. Fica claro que o pão comum é eucaristia “ao receber a invocação de Deus”. Os dois elementos terreno e celeste são distintos, pois fala da unidade de carne e Espírito. Essa passagem não é conclusiva para negar a transubstanciação. Embora não forneça mais para que se possa entender a posição de Santo Irineu, pode-se afirmar que ele acreditava no mesmo que a Igreja sempre ensinou, que é explicado como transubstanciação. De fato, ele afirma que o pão comum após a invocação de Deus é eucaristia.

O lugar da adoração é o céu, para onde a adoração é dirigida. Quem é cristão católico sabe que é isso que a missa realiza, a adoração a Deus, oferecendo o sacrifício de Cristo. A missa é celebrada “continuamente e sem interrupção”. Os dons são oferecidos no altar. A Igreja conserva essa liturgia. O protestantismo não tem sacrifício litúrgico, nem dons nem altar. É óbvio que o autor não pretende que Santo Irineu seja protestante ou que ensine o mesmo que o protestantismo quanto à ceia, mas acredita que há alguma semelhança de doutrina. Ou acredita que o mesmo tenha ensinado algo diverso do que a doutrina católica atual ensina. Lendo mais atentamente pode-se ver que não há praticamente nenhuma semelhança com a doutrina protestante, a não ser aquela que há entre a posição católica e protestante. Existe então o altar na Igreja, na terra, que celebra os dons a Deus, que sobe ao altar que está nos céus.

Pelas acusações frequentes e constantes dos pagãos contra os cristãos, de que esses seriam canibais, torna-se impossível que a Igreja pelo menos tentado aliviar as tensões apresentando uma doutrina apenas simbólica. Era o literalismo que causava aquelas comoções entre os pagãos.

A citação do Fragmento 13 prova a transubstanciação, embora seja usada contra. Parece tratar-se de uma leitura fragmentada. De fato, os escravos contaram o que haviam aprendido, de forma literal, e não simbólica. Veja que eles não haviam aprendido essas sutilezas da mera simbologia, para afastar as complicações de entendimento, mas afirmaram que “a divina comunhão era o corpo e o sangue de Cristo”, coisa que um protestante, por exemplo, facilmente explicaria como uma linguagem figurada, um símbolo, um sinal. O problema era que os pagãos acreditavam que se tratasse de carne e sangue humanos usados na celebração eucarística, e os escravos, ainda não conhecendo a comunhão, afirmaram o que ouviram, o que não ajudou a esclarecer a questão diante dos gregos.

Agora, a questão é sobre a eucaristia ser sacrifício. Isso já seria óbvio para o católico, mas o protestante não é convencido com essas afirmações, e entendem que o sacrifício aí descrito é diferente do que a Igreja Católica ensina.

Ainda, a nova oferta, na nova aliança, de acordo com Malaquias. A eucaristia é uma oblação espiritual. Essa oblação é com o pão e o cálice da bênção, dando graças a Deus. A eucaristia é um sacrifício espiritual. Ele não é literal, no sentido que Cristo morre de novo, mas espiritual, porque renova o mesmo sacrifício. Por ser um antítipo, ele é real. De alguma forma, o tipo do Antigo Testamento simbolizava a eucaristia.

O autor do artigo escreve: “Assim como outros Pais da Igreja do século II, o bispo de Lyon desconhecia o sacrifício propiciatório da Missa.” Mas, a própria citação afirma o contrário: “em ordenar que os receptores desses antitipos podem obter a remissão dos pecados e a vida eterna”. E eucaristia é propiciatória.

No livro 4, 33, 2, e também no livro 5, 2.2 São Justino argumenta sobre o verdadeiro corpo de Cristo, afirmando que Ele reconheceu ser o pão o Seu corpo, e o cálice de vinho o Seu sangue, e ser Ele mesmo o filho do homem, pois nasceu como ser humano. E, ainda, o pão Ele estabeleceu como Seu próprio corpo, “do qual Ele dá crescimento a nossos corpos”. Essa nutrição só pode ser espiritual, e isso coaduna com a transubstanciação, em outras palavras, como feito por São Justino.

No parágrafo 3 a argumentação torna-se ainda mais robusta, pois é feita em termos bastante literais, sem prescindir de sua natureza espiritual. Quando o cálice e o pão “recebem da Palavra de Deus, e a Eucaristia do sangue e do corpo de Cristo é feita”, pergunta o santo padre, “de que coisas a substância da nossa carne é aumentada”, pois afirma que, contrariamente à opinião dos gnósticos, a nossa carne pode receber “o dom de Deus, que é vida eterna”, e que a fé é alimentada pelo corpo e pelo sangue do Senhor. Esse alimento que entra pelo corpo humano, que nutre o nosso corpo, “a substância da nossa carne”, se transforma e metaboliza no corpo, produzindo efeito espiritual, é a eucaristia, por meio da transubstanciação. Essa ideia já comentada em outra parte é aqui mais clara. A substância do pão é normalmente convertida em alimento para o corpo. Mas o que Santo Irineu está afirmando é que, após a Palavra de Deus realizar a eucaristia, ela pode ser comunicada à substância do nosso corpo, trazendo o dom de Deus através da nossa matéria. Assim, refutava o gnosticismo, com a literal verdade do sacramento da eucaristia.

 

Tertuliano de Cartago (160 – 220)

Nota-se que o autor do artigo citou palavras que tendem a levar a um entendimento espiritual do sacramento da Eucaristia, e não compreendeu bem as demais que mostram a compreensão literal o mesmo. Pode ser também que as palavras entendidas como meramente espirituais foram usadas para interpretar as que mostram o caráter físico do sacramento. Outra possibilidade é que não se entende corretamente o que a presença física de fato significa. De qualquer maneira, uma leitura e uma análise mais profunda talvez será suficiente para desfazer esses problemas. Não é esperado que o leitor aceite a transubstanciação (seria muito bom que o fizesse), mas que não diferencie o pensamento de Tertuliano da doutrina católica, no que se refere à Eucaristia.

As palavras de Tertuliano sobre a eucaristia em João 6, sobre devorar pelo ouvido e digerir pela fé, não são contrárias à transubstanciação, e fazem parte da doutrina da Ceia Eucarística, onde temos alimento eminentemente espiritual, que ensina que a fé é o canal pelo qual seus efeitos chegam até nós. Por isso, é possível também, quando não possibilitados de comungar da forma usual, fazer uma comunhão espiritual.

O autor protestante afirma de Tertuliano: “Ele deixa claro que a interpretação literalista dos judeus e dos romanistas estava errada.” E após isso afirma que a carne não serve para vivificar, mas o ouvir e crer nas palavras de Jesus.

É preciso notar que o que Jesus reprovou naquele momento foi o entendimento literal, de que Sua carne seria entregue aos discípulos para que a comessem, o que seria bizarro. Então, não voltando atrás na sua literalidade, afirma que essa é assim mesmo, mas em sentido espiritual. Ninguém O veria dando a carne ali ou em outro momento como comida da forma como os ouvintes imaginaram, mas de outra forma. Isso ocorreu na última ceia.

O que Tertuliano chama de figura? É falácia tomar Tertuliano como testemunha da transubstanciação?

Pelo contrário, ele afirma que: “tendo tomado o pão e distribuído aos discípulos, fê-lo seu corpo”. Jesus fez do pão o Seu corpo. Portanto, mudou o pão em corpo, o que é transubstanciação. Se Cristo tivesse instituído somente um símbolo do Seu Corpo, isso não serviria para provar a realidade do mesmo, ou talvez seria uma prova mais fraca, pois ainda assim poderia ser entendido um símbolo daquela aparência assumida por Cristo na terra. Seria um meio de a heresia firmar-se. É uma resposta possível. O que Tertuliano fez foi diferente. Abaixo será feita uma análise do que Tertuliano está argumentando, para esclarecer a questão.

O capítulo 40 de Contra Marcião tem o intuito de provar o corpo verdadeiro de Jesus, e não um corpo aparente. Seguindo os argumentos de Tertuliano, que inclui a Eucaristia. Ele afirma que o pão é figura do corpo de Cristo, porque Seu corpo era real. Então, continua, pressupondo a doutrina de Marcião, se Jesus não tivesse corpo, e pelo pão ele fingia ter um corpo, por faltar-Lhe a substância corporal, então Ele deveria ter dado o pão por nós? Isso contribuiria para a teoria marcionita.

O pão é verdadeiro alimento, uma substância real. Dessa forma, na cruz Cristo teria dado pão por nós, porque Ele não tinha corpo. O leitor consegue notar quão complicado tornou-se a posição gnóstica? Se Jesus foi apenas um Homem aparente, e disse que o pão na Ceia da Páscoa era o Seu corpo, conclui-se que o pão foi entregue na cruz, pois uma vez que o corpo de Jesus não existia, sendo o pão uma verdadeira substância, então o pão foi oferecido no calvário. Nesse entendimento de Marcião o pão não tinha substância de Cristo, mas continuava a ser pão. Ele não acreditava que Cristo tivesse substância humana. Ficaria, então, somente o pão.

Assim, Tertuliano passa a provar, através das Escrituras, pelas profecias, porque o pão e o vinho e não outro alimento foi usado para prefigurar o corpo de Cristo. Até aqui há concordância, pois o pão é figura de um corpo verdadeiro. Tanto o que foi prefigurado no Antigo Testamento, como o que está sendo usado na Ceia, por esse motivo. Não havendo realidade do corpo, não poderia haveria figura do pão. E o motivo de usar pão, está biblicamente fundamentado. Uma vez que o corpo de Jesus é real, o pão é figura desse corpo real. Mas, então permanece que a Eucaristia é figura, como concluiu o apologista protestante?

Definitivamente, não. O que Tertuliano está mostrando é que o pão é o Corpo de Cristo e a figura de Seu corpo, porque ele tinha verdadeiro corpo.  Contudo, esse corpo real de Jesus pode ser dado na Eucaristia. Se Jesus não tivesse corpo Ele não estaria na Eucaristia, mas está porque tem corpo verdadeiro. Esse é o raciocínio. Dessa forma, entende-se que a substância do corpo de Cristo é o que torna a eucaristia, é o que faz o sacramento.

As palavras de Tertuliano são importantes quando escreve: “Ele consagrou seu sangue no vinho”, dando a entender que a consagração faz o sangue estar ali. O corpo se prova pela carne e a carne pelo sangue, uma joia de explicação. Ele interpretou as vestes e o manto na profecia como a carne de Cristo, e o vinho que as lava como o sangue. Para que o pão se tornasse corpo de Cristo, o próprio Cristo deveria ter tido corpo real em Sua vida na terra, o que era negado por Marcião. Portanto, provando que Cristo teve corpo, o pão era seu corpo.

E “os “elementos desprezíveis” do Criador”? Esse uso da matéria no sacramento serve para refutar o marcionismo. De fato, ninguém nega que Jesus tomou o pão e o vinho para, na última Ceia, entregar-Se de forma espiritual à Igreja, dando-lhe um alimento, que havia sido prometido em João 6. O uso da água no batismo, do óleo na crisma, do pão e do vinho na eucaristia, mostram que esses elementos criados são incorporados aos mistérios de Jesus pelo seu uso na Igreja. Assim, Tertuliano oferecia meios de valorizar a matéria. É fácil ver que em arrazoados protestantes aparecem, de alguma forma, certa negação da matéria como veículo de graça, o que aproxima-se muito do que o gnosticismo e o marcionismo concebiam.

E o título de sacramento? Esse nome continua sendo usado nas denominações, mas não sem certa reserva e qualificações. É um termo antigo, sempre usado na Igreja Católica, e não foi deixado pelos reformadores, o que explica ser usado em igrejas que negam a transubstanciação. O problema é que essas preferem o termo ou o entendimento de ordenança, com o intuito de afastar a compreensão católica de transubstanciação, que preserva o sentido na palavra sacramento.

Tertuliano pensa diferente a respeito da eucaristia em comparação com o que a Igreja ensina hoje? Chamar os elementos de pão e vinho depois da consagração não significa negar a transubstanciação. É uma forma tradicional na Igreja, usada sem problemas. O apologista protestante escreve: “Ele deixa claro que a interpretação literalista dos judeus e dos romanistas estava errada.” De fato, o respeito pelos objetos devocionais não prova presença física, porém, o que Tertuliano afirma indica que havia uma preocupação muito intensa em relação aos elementos da ceia, a ponto afirmar que “sofremos ansiedade” se algo cai no chão, o que não é comum entre os que não creem na presença física, ou na transubstanciação. Desse modo, no caso da eucaristia há um contexto maior que evidencia isso. Os protestantes possuem devoção pela celebração da Ceia, mas não preocupam-se assim com as espécies em si.

Não se espera que por meio deste artigo alguém fique convencido da transubstanciação, mas pelo menos não que não afirmasse que Tertuliano a negou ou que ensinou somente uma ceia simbólica.

Tertuliano usou a eucaristia para provar que Jesus teve corpo verdadeiro. Por aquela doutrina marcionita, poder-se-ia afirmar que Jesus não estava na ceia, porque não tinha corpo. Por outro lado, para a doutrina cristã, Ele estava na Ceia. Essa ideia é mais esclarecida pelo contexto geral das obras de Tertuliano.

Em Sobre a Idolatria, capítulo 7, ele escreve contra a admissão de fazedores de ídolos na Igreja. Ele afirma:  e trazer o corpo do Senhor aquelas mãos que levam corpos aos demônios?”, aludindo que agora aquelas mãos estavam levando o corpo de Jesus, e que antes levavam corpo de animais, etc., aos ídolos.

E mais adiante: “Uma vez os judeus puseram marcas em Cristo, esses o mutilam diariamente”, falando dos que vieram do paganismo, e que estavam então no sacerdócio, celebrando a missa todos os dias. Os judeus puseram a mãos em Cristo uma vez, diz Tertuliano, e esses sacerdotes, que Tertuliano estava criticando, tocam em Cristo, mutilando-o todos os dias! Não poderia ser mais clara a fé na transubstanciação.

Está, pois, refutado que Tertuliano acreditasse apenas em uma presença espiritual. Entende-se que o objetivo dos artigos não é mostrar que os Padres da Igreja concordam com o Protestantismo, mas tentar provar que discordam do Catolicismo. E, quando possível, aponta-se que a opinião de algum padre em particular está em consonância com o que ensina uma denominação protestante.  Mas, em geral, o que ensina esse escritor eclesiástico é bastante suficiente para crer na transubstanciação.

Clemente de Alexandria

O evangelho pregado belissimamente como é feito por Clemente no seu Pedagogo e na Stromata não é negação da transubstanciação. Pelo contrário, leva à sua compreensão.

As metáforas usadas ilustram bem a Palavra da salvação. Talvez a linha de raciocínio de Clemente quando fala da moderação em beber vinho, usando exemplo a última ceia, é a mesma quando se pensa que o padre não pode beber demais do vinho consagrado (sangue de Cristo) por motivos de sobriedade. Nem essa forma de pensar tem algo a ver com a negação da transubstanciação. Ela prescinde da matéria. O alimento espiritual não constitui  palavras incompatíveis com a doutrina literalista”. Estão contidas nela.

Pensar que o exemplo de Jesus bebendo vinho na última ceia implica em negar a transubstanciação é uma incorreta conclusão. Tudo o que ele afirma está sustentado na sua doutrina da eucaristia, a qual santifica o corpo e a alma (cf. O Pedagogo, II, 2).

O sangue da uva é a Palavra, que é misturada com água, como o Sangue de Cristo é misturado com a salvação. E, continua Clemente, o sangue é de duas formas: o da carne pelo qual fomos redimidos da corrupção e o espiritual pelo qual somos ungidos. Beber desse sangue é participar da imortalidade. O Espírito é o princípio energético da Palavra, como o sangue é da carne. A mistura do vinho com água representa o Espírito com o homem, e o vinho com água nutre a fé, e o Espírito conduz à imortalidade.

Então, a mistura da ÁGUA COM A PALAVRA é chamada de EUCARISTIA, e aqueles que participam dela com fé são SANTIFICADOS EM CORPO E ALMA.

Essa é a mistura é “MISTICAMENTE COMPOSTA” feita pela vontade de Deus, pelo Espírito e a Palavra, onde o Espírito junta-se à alma e a carne é juntada à Palavra. E argumentando assim, usando as mesmas palavras que usou na sua apresentação alegórica, ele fala da Eucaristia, mostrando o alicerce literal sobre o qual está construindo sua pregação. Por ensinar contra o vinho, e ao mesmo tempo ensinar o uso do vinho na eucaristia, mostra que São Clemente fazia distinção de ambos.

A escola de interpretação bíblica de Alexandria favorecia interpretações alegóricas. Isso é denunciado fervorosamente, por exemplo, pelos protestantes dispensacionalistas fundamentalistas, adeptos de uma interpretação gramático-literal e segundo certas divisões dispensacionais que fazem no texto sagrado. Por isso, é comum encontrar em Clemente passagens em que usa o método alegórico. Tal prática não nega a sua literalidade, que é anterior e fundamento da interpretação. Mas, alguém poderia pensar: isso não está em discussão, antes, o que Clemente afirma interpretando passagens eucarísticas de forma simbólica é que importa para provar a asserção de que sua doutrina está mais conforme uma intepretação espiritual da ceia, como é feita nas igrejas reformadas. No entanto, pensar dessa forma é ir longe demais, é modificar a doutrina de Clemente de Alexandria. De fato, ele apresenta a oferta de Melquisedeque em Gênesis 14,18 como figura da eucaristia. Para quem não sabe, a figura representa algo real. Deve-se tem em conta que a eucaristia é real. Melquisedeque ofereceu um sacrifício. Da mesma forma, Cristo na Eucaristia oferece um sacrifício.

 

Orígenes

Orígenes serve-se de muita alegoria. Sua posição quanto à eucaristia é a mesma de Clemente. O “desprezo pela matéria em si” e o uso do “símbolo” para referir-se à Eucaristia é reconhecido pelo autor do artigo como algo, não só mais próximo da visão protestante, mas que “Essa posição se amolda perfeitamente ao ponto de vista simbólico da Eucaristia(...)”. É preciso então explicar o motivo do respeito pelas espécies eucarísticas que Orígenes tinha, e que a Igreja Católica continua a ter, explicar por que isso não prova a transubstanciação, quando nas Igrejas que ensinam o ponto de vista simbólico isso não acontece, mas ensina-se que o respeito é apenas durante a celebração, e que depois seria até supersticioso qualquer tratamento e diferente quanto ao pão e vinho ou suco de uva. É uma primeira observação.

Algo sutil está por detrás do argumento que considera a referência ao pão e ao vinho após a consagração como negação da transubstanciação. Essas palavras não poderiam provar mais do que as palavra de Cristo quando identifica o pão e o vinho respectivamente com o corpo e o sangue, quando o que importa seria a compreensão dessas palavras. Essa é a posição do apologista protestante. Embora há algo de verdade no que está envolvido esse argumento, não se pode usá-lo assim rigidamente.  Da mesma forma, pode-se responder que a Escritura utiliza a mesma fraseologia, às vezes, referindo-se ao pão após ser consagrado, e esse uso continua na Igreja. Se o uso dos termos que Jesus empregou explica a fraseologia da Igreja, não se pode considerar “simplista e falacioso” o argumento e ao mesmo tempo lançar mão de outro argumento sobre a conservação da palavra “pão” mesmo na eucaristia, quando se deveria usar “corpo”, se isso também ocorre na Escritura. Tal modo de tratar o assunto demonstra a fraqueza do argumento. Deve-se considerar que as palavras de Jesus por si só provam o entendimento da transubstanciação, e que estão em outra categoria em relação às passagens mencionadas sobre a porta, a videira, o caminho.

Então, o autor considera refutado o ensino da transubstanciação a essa altura do artigo: “Isso mostra que ele ter dito em outras passagens que o pão é o corpo de Cristo não prova em nada que sua crença era literal.” Dito doutro modo, se Orígenes escrever em outra parte de suas obras que o pão é o corpo de Cristo, isso não irá provar nada, pois ele usou a palavra pão depois de falar da eucaristia, o que levaria a pensar que ele considerou o elemento após a consagração como não tendo mudado de substância. Dessa forma, o argumento começa negando com base no uso das palavras através da consideração quanto ao uso das palavras, o que torna o mesmo argumento nulo em si mesmo. Ele prescindiu da própria exigência: “como as palavras do Filho de Deus foram compreendidas”.

No Comentário sobre Mateus, 85, são citadas algumas passagens que afirmam que o corpo e o sangue não são o pão e o vinho, mas a Palavra. Dessa forma, Orígenes, ao usar essa metáfora, é apresentado com alguém que não cria literalmente na Ceia. A afirmação não é satisfatória.

É necessário ainda explicar o motivo dos cristãos de guardar o corpo do Senhor com toda cautela e veneração, conservando as espécies eucarísticas, acreditando que perder o mínimo que seja constitui pecado. Esse modo de entender é o mesmo que o ponto de vista simbólico da Eucaristia? Ou mesmo o ponto de vista meramente espiritual no momento da Ceia? O cuidado especial e respeito não respondem satisfatoriamente. É verdade que os protestantes demonstram respeito pela ocasião, o respeito pela celebração, por tudo o que a envolve, mas não às espécies em si. Ainda mais fora do culto. Isso difere de toda tradição católica. Esse argumento deve ser respondido, e se possível exemplificado, pois é algo que explica a transubstanciação e não demonstra a crença protestante.
 
Gledson Meireles.

sexta-feira, 5 de junho de 2020

Doutrina calvinista e reformada

O que segue é apenas uma nota, que informa que o calvinismo está no interior da doutrina reformada, que o arminianismo veio do calvinismo e sobre algumas das marcas do arminianismo.

Com a Reforma Protestante na Suíça com Ulrico Zuínglio e João Calvino inicia-se o que ficou, já na segunda metade do século dezesseis, conhecida como Igreja Reformada. Dessa forma, a doutrina reformada tem em Zuínglio e Calvino seus mentores mais antigos da Reforma. A outra ala anterior é a Igreja Luterana.

Calvino foi o mais influente. No entanto, ainda que a doutrina reformada tenha origem em Calvino, a linha Calvinista atual é algo que está no interior da ala Reformada, conforme o escritor protestante Roger Olson, teólogo batista americano, de persuasão arminiana, ou seja, que segue a teologia de Jacob Arminius, que pode ser chamado de Tiago Armínio ou Jacó Armínio.

Os calvinistas que passaram a discordar a teologia calvinista junto com Armínio ficaram conhecidos como Remonstrantes, por terem escrito uma Remonstrância que foi julgada no Sínodo de Dort. Por isso, o arminianismo é uma teologia protestante que diverge de muitas afirmações calvinistas e reformadas.

O teólogo Roger Olson é conhecedor do Calvinismo, e publicou em 2011 o livro Contra o Calvinismo, onde critica uma parte da doutrina calvinista e reformada de forma profunda, citando vários autores que apresentam um calvinismo diferente entre os calvinistas e apontando outras doutrinas, que podem ser abraçadas no interior do Protestantismo.

Enfim, dos pontos de divergência entre calvinismo e arminiansimo é que os arminianos em sua maioria ensinam a eleição corporativa e não individual. Ensinam o amor de Deus por todos, ensinam a expiação ilimitada, rejeitam o decreto de reprovação, creem no livre-arbítrio, e etc.
Gledson Meireles.