quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Pastor é devoto de Santos padroeiros

O pastor Granconato afirmou que Santo Agostinho e Santo Irineu são seus santos padroeiros. Como entender essa afirmação do pastor e como tirar lições para o sentido da nossa devoção aos santos?

quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

Livro sobre o Catolicismo: comentário - parte 1

Notas sobre o livro:

 

NOGUEIRA, Rafael. O Catolicismo Romano e a Bíblia. São João del Rei-MG, 2012.

 

Introdução

O autor é ex-católico que logo na juventude ouviu uma mensagem que o afastou da Igreja. Afirma que serve a Deus “em uma Igreja Evangélica”, e seu livro tem objetivo de dar oportunidade para os católicos escolherem no que querem crer.

Sua vontade foi de produzir um livro apologético para uso dos protestantes e também para leitura dos católicos, e acredita que o Espírito Santo o auxiliou em sua tarefa, o que mostra sua sinceridade. Nas páginas que seguem abaixo serão estudados os argumentos do autor e mostradas as verdades da doutrina católica.

Certamente, o que o autor afirma é uma verdade: difícil é tomar decisões e fazer escolhas. Imagine o próprio autor lendo as seguintes páginas e revendo sua base de fé e encontrando pelo menos um argumento que o deixe sem resposta, e que se torne ocasião para procurar responde-lo, e que dessa forma prepare sua entrada na santa Igreja Católica? É uma possiblidade. Muito difícil, porém. Para aqueles que não querem pensar e refletir, isso é um obstáculo quase intransponível. Humanamente falando não se pode esperar muito, mas o Espírito Santo sopra onde quer.

Entrar pela porta estreita para trilhar o caminho de Jesus (cf. Mt 7, 13-14) na Igreja Católica é a mais espetacular decisão. Não é fácil, certamente, porque exige carregar a cruz e seguir Jesus de uma forma singular: na Igreja que guarda o depósito da fé. Isso será mostrado no estudo a seguir.

Para os que lerem o breve estudo do livro O Catolicismo Romano e a Bíblia terão oportunidade de examinar os dois lados e certificar-se se está na fé (cf. 2 Cor 13, 5).

De fato, não é apenas uma leitura da Bíblia e de achados cruciais da doutrina salvação que irão decidir o futuro do leitor. Isso é fundamental, mas claramente todos concordam que haverá mudança de parecer e de vida para acomodar-se ao Evangelho. E cada um está certo de que não pode estar em qualquer religião e qualquer igreja. Muito menos permanecer na irreligião. Por isso, a atitude após conhecer a verdade mostra os frutos de arrependimento.

O leitor será capaz de perceber que a doutrina da Igreja Católica é a doutrina de Jesus, é a própria luz para o nosso caminho (cf. Sl 119, 105).

O autor afirma que confrontou a doutrina da Igreja Católica com a Bíblia de forma simples e humilde, e que o uso dos textos bíblicos feito pelos católicos está errado. O leitor terá oportunidade de verificar isso, de forma bastante resumida, mas que o Senhor Jesus queira que seja o suficiente para suscitar o desejo de continuar o estudo da Palavra de Deus.

Esses não são os títulos usados no livro, mas apenas indica o assunto.

 

Capítulo 1: A Sagrada Tradição

A Igreja Católica não ensina que a é permitido propor novas doutrinas, nem que a revelação continua, mas que com a morte do último apóstolo a revelação oficial de Deus foi encerrada e não há mais doutrinas a serem reveladas. Esse ponto é o primeiro que se deve ter em mente, e para quem leu o livro que está sendo analisado aqui verá que ele afirma que a Igreja ensina que tem autoridade de propor novas doutrinas, o que não é correto.

O que a Igreja Católica faz é estudar a Escrituras e tradição apostólica e definir as verdades já reveladas, em tempos que exigem isso, esclarecendo-as. Isso todas as outras igrejas protestantes também o fazem, de alguma forma, pois sempre estão trazendo novas luzes no entendimento de certas verdades. Um exemplo disso é a interpretação feita pelo dispensacionalismo. Algo recente.

Outra divisão é aquela de erros e heresias, onde os erros doutrinais não teriam a gravidade de afetar a salvação, o contrário das heresias. Também recente. Essas coisas não fariam da palavra de homens uma autoridade acima da Palavra de Deus?

Onde está na Bíblia a doutrina do dispensacionalismo que divide a Palavra de Deus aplicando versos bíblicos a Israel e à Igreja como sendo de diferentes dispensações? Onde está escrito que o batismo deve ser feito apenas a partir de certa idade, e que é um testemunho público de conversão? Não são esses entendimentos da tradição protestante? Pense nisso.

Esses entendimentos e interpretações existentes no interior do Protestantismo mostram que todas as igrejas estão de certo modo propondo novas interpretações da Bíblia para os fieis, e que essas formulações têm influências na vida espiritual de salvação daqueles que creem nelas.

Uma correção: os sucessores dos apóstolos não são somente os papas, mas todos os bispos. Isso não significa que todos são apóstolos, mas que levam historicamente e doutrinariamente a mesma mensagem que Jesus e os apóstolos ensinaram.

Para o protestante a tradição está agora escrita na Bíblia e não existe mais outra fonte. Por isso, o que lê em 1 Cor 11, 2 e 2 Ts 2, 15 é entendido por “tradição” como o que já foi escrito. No entanto, toda a revelação suficiente para a salvação está na Bíblia, e o que foi deixando na tradição é uma luz interpretativa das Escrituras, mostrando que o que foi ensinado desde o início permanece hoje. A Bíblia não pode ficar à mercê da interpretação humana, e por isso a tradição mostra como ela foi entendida desde os primeiros dias. As heresias que surgem são facilmente detectadas quando se faz um estudo da fé cristã desde os dias apostólicos. Veja como a Igreja que Jesus fundou ensina o evangelho em todos os séculos. Pense nisso.

A verdade está completa e ao alcance de todos, mas os bispos devem zelar pelo rebanho (cf. Atos 20, 28). Aí está a necessidade do magistério.

Esclarecendo um mal-entendido. O caso do celibato não se trata de nova revelação. Não é uma doutrina recente, mas uma disciplina antiga da Igreja. O autor aponta a data de 1074 como instituição do celibato e pergunta por que não foi aplicado antes? Será que isso surgiu como revelação de doutrina nova em 1074? A resposta simples é não.

A verdade é fundamental, e está na Bíblia, desde o tempo de Jesus. O que a Igreja faz é fazer normas disciplinares que contemplem o ensino do evangelho. E para isso a Igreja tem autoridade, porque faz essas normas baseadas na verdade.

Dessa forma, como Jesus e os apóstolos foram celibatários, e existe o dom do celibato, principalmente para os que ocupam-se com as coisas do Senhor, como revelado nas Escrituras, a Igreja desde o início tem com grande afeição esse estado de vida, e a tradição mostra que a tendência foi de sempre optar pelo clero celibatário.

A Igreja tem autoridade para adotar certas disciplinas, como essa que tem respaldo nas Escrituras e ajuda a melhor servir a Jesus, como fez e aconselhou, inspirado pelo Espírito Santo, o apóstolo São Paulo.

 

Sobre o carisma da verdade

Será que as igrejas protestantes reconhecem que a Igreja Católica possui a verdade do evangelho da mesma forma que elas? Se a resposta for sim, não há porque continuar a análise.

Se a resposta for não, então isso afirma que as igrejas protestantes possuem a verdade. Afirma que só essas igrejas estão cumprindo a missão de zeladoras da verdade cristã. Por isso, não podem afirmar que o Catolicismo é exclusivista.

Quanto à afirmação de que a revelação tem caráter gradativo. Essa afirmação é feita por estudiosos protestantes que estão interpretando documentos católicos, e não pelos próprios documentos católicos, pois a Igreja afirma que a revelação foi fechada com o Apocalipse, o último livro da Bíblia.

Mas, afirmam isso citando o seguinte trecho do documento Dei Verbum: “Com efeito, progride a percepção tanto das coisas como das palavras transmitidas, [...] com a sucessão do episcopado, receberam o carisma da verdade. Isto é, a Igreja, no decurso dos séculos, tende contìnuamente para a plenitude da verdade divina, até que nela se realizem as palavras de Deus.” (Concílio Vaticano II, Dei Verbum, parágrafo 8)

Vamos estudar esse parágrafo, fazer uma exegese dele, e depois voltar à interpretação acima e comparar, vendo se ela está correta ou não.

O documento Dei Verbum, no parágrafo 8, inicia ensinando que a “pregação apostólica” é expressa especialmente na Bíblia. Isso mostra que a verdade que os apóstolos ensinavam oralmente foi escrita! Isso mesmo, foi expressa na Bíblia de modo especial, porque está ali registrada por inspiração do Espírito Santo.

Então, afirma que tudo o que os apóstolos ensinaram contribui para o crescimento da fé do povo de Deus, e que a Igreja continua na sua doutrina, vida e culto a ensinar o que acredita. Muitas coisas que são tidas na liturgia e nos costumes, por exemplo, são de origem apostólica. Não foram escritas na Bíblia, mas praticadas desde o princípio, e foram assim consideradas. Os escritos patrísticos mostram, por exemplo, que o batismo perdoa os pecados, e que as crianças eram batizadas. Isso é um fato. Também é fato o reconhecimento de que isso é de origem apostólica. Portanto, a tradição de batizar os bebês, uma prática que foi deixada por correntes que interpretam diferente o texto bíblico.

Depois, o texto do documento Dei Verbum explica que a tradição apostólica progride. Como entender? É só continuar a ler o documento, que mostra que se trata da progressão da percepção dos crentes, através da contemplação e estudos, por exemplo, dentre mais outras coisas. A plenitude da verdade divina tem a ver com a compreensão da Igreja, e não com o progresso da revelação. Tudo está revelado, mas a Igreja vai crescendo no conhecimento. Alguém nega isso?

Como entender então o dispensacionalismo ensinado por tantos grupos, que não era assim ensinado século atrás? A própria doutrina da salvação pela fé recebeu tantos enfoques e cresceu tanto em entendimento que não é possível que os primeiros cristãos tivessem noção dessa verdade como tem um teólogo protestante, fazendo distinção entre justificação – forense e santificação, por exemplo.

Então, ensina a Constituição Dogmática Dei Verbum que pela tradição conhecemos os livros sagrados, a Bíblia. De fato, para esse conhecimento perfeito foi necessário muito tempo. Não há como negar. E continuar: “e a própria Sagrada Escritura entende-se nela mais profundamente”. Ou seja, a Bíblia é mais entendida enquanto a Igreja caminha na história.

Assim, quando se diz que “introduz os crentes na verdade plena” não se fala de outra revelação, de nova doutrina, mas na maior compreensão de passagens bíblicas.

Muitas coisas podem ser ditas. Por exemplo, há os que creem que os dons do Espírito Santo como foram revelados em Pentecostes continua na Igreja, enquanto outros, usando a Bíblia, afirmam que não. Isso porque seguem tradições diferentes. Se o texto bíblico fosse totalmente claro, não teriam dúvidas. Mas, afirmam que essas coisas não afetam a salvação, mas que as diferenças com o catolicismo afetam! Quem separou as doutrinas que podem ser divergidas, que são erros e não afetam a salvação ou que são heresias e que afetam a salvação? Foram intérpretes, pois a Bíblia não possui tal lista.

Em quem você crê, na Bíblia e na tradição apostólica que mostra o que é importante e o que não é, ou em tradições recentes que interpretam a Bíblia da outra forma como exemplificado acima? Isso serve para mostrar que devemos seguir a Bíblia em sua imutável verdade.

Os cristãos em geral interpretando a Bíblia não possuem a infalibilidade. Assim, caem em muitos erros. Dessa forma, devemos ter maior certeza, como Jesus quer que tenhamos.

Respondendo aos argumentos. O número 1 não é forte, já que o cânon judaico, historicamente comprovado, foi fechado em fins do século 1.

O argumento 2 também não conclui nada, já que para alguém que não crê nas Escrituras, qualquer que seja o livro, encontrará “argumentos” contra supostas lendas, erros e etc.

O argumento 3, de que o anjo mentiu, isso não está conscrito nos parâmetros bíblicos, que não tem a passagem como mentira. De fato, o anjo revela sua identidade depois. Homens de Deus também mentiram, embora não tenham pecado por isso, como Abraão, que mentiu sobre Sara, temendo a morte. Ver as circunstâncias e como fato é tratado pela Escritura. Os demais argumentos são respondidos em bons sites apologéticos (ver: apologistas católicos).

A tradição é o único meio para conhecer o cânon. Como julgar a tradição de ter inserido livros apócrifos quando se adota a tradição para defender um cânon mais restrito?

A respeito da intepretação da Bíblia, é sabido que não há lugar no Protestantismo para interpretar a Bíblia contra o sentido dos cinco solas, por exemplo. Não há como um protestante interpretar a Bíblia e ser aceito se ele vier a ensinar doutrinas que contrariam o Protestantismo histórico.

A Bíblia em si não depende de nada para se manter, pois é a Palavra de Deus. Para a entendermos bem é que a tradição e o magistério funcionam. Assim, a tradição e o magistério protestante estão sempre explicando as Escrituras para os fieis.

 

 

Capítulo 2: Sobre o papado

 

A pedra da Igreja é Cristo. O papa é a pedra em um sentido diferente, e ele não tem pessoalmente o dom da infalibilidade em tudo o que diz. Também não é um apóstolo, nem é inspirado como os apóstolos foram para escrever a Bíblia. Então, a questão do papado é bem diferente do que muitos pensam.

Quanto à intepretação do texto de Mateus 16, 18, ele é bem claro quanto a tratar-se da Pedro. Não há como negar. Por isso, as refutações breves dos argumentos: Jesus não disse “sobre ti edificarei a minha Igreja” porque Ele estava dando um novo nome da Simão, e esse nome era Pedro, que na língua falada por Jesus é Kepha, o mesmo que pedra. Jesus pronunciou duas vezes a mesma palavras: Tu é Kepha e sobre esta Kepha... O grego traduz Petros e Petra, inspirado pelo Espírito Santo, sem introduzir qualquer novidade, apenas modificando Petros para adequar-se à regras gramaticais para nomes em grego, que terminam em regra por as, es, is, os, us. E o termo Petros tem o mesmo sentido de petra em muitos contextos. O termo kephas não está no texto grego porque é uma palavra aramaica, mas está na passagem, porque é o original que Jesus utilizou, que por isso foi algumas vezes transliterado para o grego como Cefas, como está em outros livros do Novo Testamento. Jesus falou em aramaico, e somente depois o evangelho foi escrito em grego trazendo os termos petros e petra para traduzir kephas. Esse argumento é irrefutável.

Jesus é a Pedra em sentido diverso, mais profundo, fundamental, absoluto. Pedro é pedra como chefe da Igreja em seu aspecto ministerial.

O contexto imediato mostra Jesus referindo-Se somente a Pedro, e não a pequena ou grade pedra, já que Ele falava aramaico e somente um termo foi usado no idioma original. Já no grego também tudo se refere a Pedro naquelas palavras de Jesus.

Pode haver duas pedras? Sim, se forem em contextos diferentes. Assim, os apóstolos são o fundamento da Igreja em Ef 2, 20, ao mesmo tempo que Jesus é o fundamento da Igreja em 1 Cor 3, 11, e Pedro é o fundamento da Igreja em Mt 16, 18. São contextos diferentes.

Na interpretação do livro, Pedro seria pedra no sentido de representar os demais cristãos. Isso de alguma forma mantem o fato de que Pedro é pedra, pois contra fato não há argumento. No entanto, o contexto mostra que Jesus chamou Simão de Pedro para edificar Sua Igreja, e não apenas para fazê-lo primeira pedra ou pedra de representação. Tudo isso pode ser entendido a partir do fundamento pedra, que na passagem de Mateus 16, 18 é Pedro.

As chaves do reino são símbolo de autoridade espiritual para governar a Igreja como chefe visível. Pedro, em primeiro, depois o colégio apostólico junto dele. Não se trata de chaves literais para admitir ou expulsar, mas para bem governar a igreja.

O autor reconhece que o Papa não pode fazer doutrina e impor à Igreja. Correto. Reclama, porém, que o poder do papa não pode ser questionado. Claro, pois Jesus afirma que Pedro é o pastor das ovelhas e carneiros, o que mais poderia ser esperado dos cristãos obedientes a Cristo? Se o papa não impõe novidade, ele tem poder na verdade. E assim, deve ser obedecido. Não pode ser obedecido se ensina algo contrário ao que Jesus ensinou. O poder vem de Cristo, mas é exercido pelo colégio apostólico com Pedro, ou seja, os bispos em união como papa.

O papa não pode ensinar nada que não seja bíblico e que tenha respaldo na tradição. Os cristãos nunca foram permitidos escolher o que crer, pois isso é ser herege. Então, analisar tudo e ficar com o que é bom tem a ver com revelações particulares, profecias particulares, e não com a doutrina bíblica pregada pelos apóstolos. Assim, os bereanos de Atos 17, 11 não eram cristãos ainda quando examinavam as Escrituras, mas judeus que ouviam a pregação a respeito de Cristo. Quando converteram-se criam tudo o que os apóstolos pregavam, com obediência.

A infalibilidade da Igreja é entendida como a promessa de Cristo de que as portas do inferno não prevalecerão contra ela. O erro e a heresia são do inferno, e por isso não pode entrar na Igreja Católica e ser estabelecido por ela para todos crerem. Assim, a Igreja é infalível porque está ancorada em Jesus Cristo.

Agora, uma resposta rápida às questões finais do capítulo: o Catolicismo segue o original bíblico para fundamentar a doutrina do primado de Pedro; o apóstolo Pedro inegavelmente tinha primazia entre os apóstolos; o papa tem poder sobre a Igreja como ministro, incumbido dessa missão por Jesus, na pessoa de Pedro; as indulgências não foram consideradas pecado, mas o abuso das indulgências, a venda delas, é que foi pecado grave; a Igreja é infalível, por promessa de Cristo, os apóstolos eram infalíveis, para escrever e pregar o evangelho. Não eram impecáveis, o que é outra questão; o poder das chaves é autoridade de governo espiritual na Igreja.

  

Capítulo 3: Sobre a Igreja

Se o reino de Deus está, hoje, dentro de nós, identificando os cristãos já se tem acesso onde está o reino. Jesus afirmou que esse reino não é temporal, mas espiritual.

Não se pode afirmar que a Igreja seja apenas um sistema, mas que é uma sociedade, pois se trata de pessoas. Isso mesmo. No entanto, há um corpo de verdades que essa sociedade tem, e que deve ser guardada. Quando se fala de Igreja Católica há uma sociedade que professa uma fé, e essa deve ser crida, preservada e anunciada.

Por isso, é inócuo afirmar que não é membro de sistemas, instituições, mas da Igreja viva de Cristo, pois todos temos um credo para professar, regras para viver, e etc., que fazem parte dessa vida cristã.

Por isso, fazer parte do corpo espiritual de Cristo é ser Igreja viva, visível, operante, que vive o evangelho, os mandamentos de Deus e o testemunho de Jesus, nesta dispensação final da Igreja de Jesus.

A Igreja é aquela que se submete à Palavra de Deus. Correto, pois sabemos que a única Igreja foi fundada por Jesus Cristo.

Por que não há uma Igreja de placa, física, visível? A resposta está simplesmente porque a Igreja é única, e sendo assim não há necessidade de placa etc. Nomes servem para identificar, entre iguais, mas a Igreja não recebeu um nome próprio porque é única. Ela tem notas, como a universalidade (católica), santidade (doutrina santa pelo fundador Santo), apostolicidade (pela pregação dos apóstolos) e unidade (unida na mesma fé). As notas são mais eficazes que os nomes. Fazer parte da Igreja de Cristo já é estar na religião de Cristo, no cristianismo histórico, no sistema religioso cristão, na instituição Igreja, etc.

Por isso, quando Jesus deixou a Igreja, que deve aprender do Seu evangelho, ser batizada, orar sem cessar, reunir-se em Seu Nome, celebrar a Ceia do Senhor, obedecer os mandamentos, zelar pelo próximo, cuidando dos órfãos e viúvas, viver em comunhão, esperar a consumação do reino, e etc., já estava mostrando o que era a Igreja: uma sociedade espiritual. Basta entender a pequena semente de mostarda se tornando grande árvore. Aí está o sistema religioso Jesus Cristo. É muito simples.

 

Capítulo 4: Sobre a oração aos santos

Os protestantes não oram aos santos. Caso entendido. No entanto, o que entendem sobre isso? O livro tem a afirmação de que os mortos deixam de fazer parte do corpo de Cristo, mas não da Igreja. O que é problemático é que a expressão corpo de Cristo não quer dizer algo temporal, físico, natural, mas algo sobrenatural, e que significa a Igreja. Então, a afirmação está errada.

Falando de Jeremias 15, 1  e Ap 6, 9, afirma, desse último texto, que os ali referidos não são santos, mas os que chegaram da grande tribulação. Na verdade, o autor esqueceu que todos os cristãos são santos, e de modo especial os que morreram por Cristo. Então, o texto fala de santos.

De forma breve pode-se afirmar que a intercessão dos santos no AT não pode ser igual à do Novo porque os santos estavam no sheol, e não no céu, como estão agora. A morte tinha um destino diferente, por isso o Apocalipse afirma que felizes os que de agora em diante morrem no Senhor. Outra coisa, se não aparece os apóstolos orando aos santos que já haviam falecido no Novo Testamento não é prova contrária, é apenas um silêncio, e do silêncio não se pode formular uma lei. Outros fundamentos na Bíblia mostram a intercessão dos santos.

Para que mais intercessores? Essa pergunta é como se a ajuda dos santos do céu fosse supérfluo. Os santos não são ídolos, mas servos do Deus Altíssimo.

A ideia de que o corpo de Cristo é apenas para os cristãos na terra não tem respaldo bíblico. Da mesma forma a Igreja é chamada de noiva de Cristo, e no Apocalipse a noiva que subiu ao céu desce à terra transformada. Essas imagens e metáforas para se referir à Igreja são válidas, esteja a Igreja na terra ou no céu. Parece que esse argumento usado no livro não é bíblico.

Pelo que foi visto até o momento, o autor ignora muitas coisas da doutrina bíblica, e por isso não as compreende.

Gledson Meireles.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

A virgem Maria: mais comentários

Outro comentário a respeito do livro O papado e o dogma de Maria.

Parte 1: O pastor afirma que o culto a Maria é uma desonra, uma ocasião de pecado, e que foi introduzido na Igreja depois que levas de pessoas não-convertidas entraram no cristianismo. Em primeiro lugar, o culto a Maria é reconhecer sua grandeza como mãe de Cristo, serva de Deus, modelo para a Igreja, que tem-na, a exemplo de Cristo, como mãe. Então, o culto a Maria só pode honrá-la. Ainda, com o Edito de Milão não houve conversão em massa, mas as mudanças que ocorreram foram aos poucos facilitando as conversões, mas não há qualquer alusão de que a mariologia como a conhecemos hoje tenha sido gerada pelos motivos acima.

A respeito do título mãe de Deus como relacionado à frase inspirada e bíblica de mãe do meu Senhor, tudo está muito claro quando se tem em conta que o Senhor ao qual Isabel tinha em mente era o Deus de Israel, e que o Espírito Santo referiu-Se ao Filho do Altíssimo, sendo também da mesma natureza do Pai. É por isso que sendo o Filho o mesmo Deus, Maria é de certa forma Sua mãe. E qual forma é essa? A da natureza, que é o meio da humanidade de Maria em relação a Cristo. Ela não é mãe da natureza de Cristo, mas mãe da Pessoa de Cristo segundo a natureza humana.

A ideia de que Maria ser mãe de Deus implica em que ela precedeu a Deus não é doutrina cristã católica. O autor parece não conhecer isso.

A doutrina da imaculada conceição está de acordo com a Escritura pois ensina que Maria é filha de Adão, e foi preservada do pecado, o que é o mesmo que salvação, e essa salvação foi efetuada pelo sangue de Jesus Cristo. A explicação de que Jesus é semente da mulher por si só não explica o motivo dEle não ter sido gerado com pecado original. Por isso, a Igreja foi tomando consciência de que Deus agiu na pessoa de Maria purificando-a totalmente para afastar qualquer pecado da mãe do Senhor. Ela foi salva por Deus (cf. Lucas 1, 47).

Diz o pastor que os apóstolos não oraram a Maira e nem falaram de Maria. Esse “silêncio” seria uma reprovação ao culto mariano. Mas, pelo contrário, quando há silêncio significa que o assunto em questão era pacífico e não o contrário. Muitas doutrinas que não mereceram atenção são aquelas das quais não havia dúvida alguma. Isso porque a maior parte do Novo Testamento foi escrita para tratar de questões controvérsias.

Interessante que para falar contra a virgindade perpétua de Maria, o pastor usa 1 Coríntios 7, 5, como se não ter relacionamento conjugal fosse “desobediência” a um mandamento divino, quando o texto não diz isso, pois é dito que os casais devem ter momentos de privação do direito conjugal para oração, e não devem ficar assim por muito tempo porque ficariam à mercê das tentações do Demônio, e não porque Deus havia ordenado que devessem voltar a unir-se.

Também, primogênito não significa um entre outros, mas o primeiro gerado, somente isso. Caso seja filho único, continua sendo primogênito.

Por isso, afirmar que “há provas” na Escritura de filhos de Maria não é correto.

Outra questão é que a palavra usada para primo é anepsios, e que isso provaria que os irmãos de Jesus não eram primos, é uma questão inócua. Isso já foi discutido em outro artigo, que prova que Maria não teve outros filhos.

A respeito do dogma da assunção, deve-se entender toda a questão sobre a imaculada conceição e suas implicações, as referências bíblicas a respeito de Maria, e as afirmações históricas. Maria foi elevada ao céu.

 

Parte 2: A primeira observação que o pastor faz da anunciação do anjo Gabriel à virgem Maria (cf. Lucas 1, 28) é que a escolha de Maria teve origem na graça de Deus e não em mérito dela. Essa observação não deve causar nenhuma estranheza para o católico, já que tudo o que a Igreja Católica ensina é justamente que Deus é a fonte de todo o bem e de toda graça, e portanto a virgem Maria foi escolhida por Deus, preparada por Ele, para ser a mãe do Salvador, e não que ela tenha tido mérito para oferecer a Deus para isso. Aliás, o mérito que ela tinha era efeito da graça, que Deus concedeu para fazê-la participante do mistério da redenção, como mãe do Redentor.

Depois, o reverendo chama a atenção de que a ênfase do anjo estava na criança, em Jesus, e não Maria. Essa constatação é tipicamente protestante, e tem como objetivo mostrar ao católico, especialmente, que a Bíblia não oferece base para venerar Maria, e que esse é o ensino bíblico. Não há o que objetar de forma especial sobre isso, já que a mensagem do anjo era a encarnação de Jesus, e nada mais natural que a ênfase seja Jesus em toda a passagem. No entanto, o que a Igreja também observa, e todos os santos doutores falaram disso, é que Maria é chamada por um nome diferente, que é traduzida do latim como cheia de graça, ou como agraciada, como preferem as traduções protestantes e mais modernas, a partir do texto grego.

Isso mostra que esse nome revela uma característica da virgem Maria, mostrando sua singular bênção, recebendo já de início a plenitude da graça. O anjo a saudou, como não havia feito em outras aparições. Por causa de Cristo veneração Maria.

Falando sobre Lucas 1, 38 o pastor lembra que Maria escolheu o título de serva, que não quis ser uma sócia de Deus, nem igual a Deus, mas Sua serva. Para o católico tais palavras não trazem nenhuma novidade, pois cremos que Maria é a serva de Deus por excelência, de serviu o Senhor de modo tão sublime que na Igreja é a primeira cristã, a primeira criatura modelo de fé para os irmãos de Cristo. É ainda a mãe da Igreja, que é espiritualmente o corpo de Jesus.

Por fim, entre outras coisas que não estão em contraste com a doutrina católica, o pastor observa que Maria não é bendita acima das mulheres, mas entre as mulheres. Ele quer dizer com isso que Maria não é diferente das demais mulheres de todo o mundo.

Mas, observe que a Bíblia afirma que Maria é bendita e que Jesus é bendito, e ninguém dirá que por isso Jesus é tão bem-aventurado com todos os homens e não acima de todos os homens! Portanto, antes de expressar opiniões, é preciso ponderar conforme o texto sagrado. Maria é bem-aventurada entre as mulheres, de forma especial e singular, o que a faz ser honrada entre todas as mulheres com maior honra, porque é mãe do bem-aventurado Filho do Altíssimo.

Como segunda razão o pastor afirma que na passagem a ênfase é toda sobre Jesus e não sobre Maria, que Isabel destaca o Filho e não a mãe, que João Batista estremeceu por causa de Jesus e não por causa de Maria, e que o personagem principal do encontro é Jesus e não Maria.

Contudo, para o leitor atento das Escrituras, a passagem mostra que Isabel honrou Maria logo que ficou cheia do Espírito Santo, e mostra que João Batista estremeceu em seu ventre assim que a saudação de Maria foi ouvida. O protestante dificilmente honraria Maria dessa forma, raramente chega a tal ponto. Talvez a teologia protestante previne desse nível de honra que a Bíblia apresenta sobre Maria. Ao invés de trata-la com igual, Isabel a honra como maior. O leitor não deve deixar despercebido que a saudação da virgem foi ocasião para que o Espírito Santo santificasse o precursor e sua mãe Isabel.

No final dessa seção, para enfatizar algo mais católico nas observações do reverendo, é preciso notar que ele escreveu que Maria é campeã entre as mulheres, o que indicar sua maior estatura na graça, embora não seja isso que o pastor tenha querido passar. Ele transparece o desejo de mostrar que o protestante honra Maria, embora pelo que foi expresso acima, essa honra ainda é equiparada àquela que a Escritura oferece à mãe do Senhor.

Continuando, temos que em Lucas 1,48 a virgem Maria proclama, inspirada por Deus, que ela será lembrada em todas as gerações. Certamente, essa lembrança é feita pelos cristãos. No que se refere à teologia protestante mais moderna, pouco lugar tem sido dado à lembrança de Maria, o que se reflete nos cultos, nas pregações, nos livros, nas conversas, e na vida de cristãos protestantes, que lembram de falar de Maria quando pregam para algum católico, lembrando ao católico que ela é uma mulher “qualquer”, (ou como o reverendo escreve eu seu livro “era apenas umas mulher”), pecadora e salva por Deus, que teve filhos além de Jesus, que dorme no pó da terra, que não tem poder, e etc. Essa é a visão popular criada no Protestantismo para combater o culto de veneração à virgem Maria. Por essa via, não se cumpre a profecia de Lucas 1, 48.

Esse cumprimento está na Igreja Católica, onde a virgem Maria é lembrada sempre com os maiores louvores, por um só motivo: ser a mãe Jesus.

Na frase do pastor: “Seguir a orientação de Maria é de fato obedecer a Jesus” ele está seguindo, sem o saber, o espírito da verdadeira Mariologia. O que falta é crer na virgindade perpétua, imaculada conceição, assunção aos céus, e intercessão dos santos. Fazendo isso de forma cristã, como ensina a santa Igreja, está honrando a Maria biblicamente.

A respeito de Lucas 11, 27, onde as relações físicas são menores que as espirituais, deve-se responder que certamente ninguém creu com tanta clareza em Jesus como Maria, e por isso ela é a primeira crente. Portanto, é inevitável que, ao crer que Jesus é o Filho de Deus alguém naturalmente venha a venerar Maria.

Maria era já repleta do Espírito Santo desde sua concepção, com maior ênfase na encarnação de Jesus, e foi mais agraciada com dons do Espírito no dia de pentecostes. Sua vida foi sempre cheia do Espírito Santo, ao contrário dos demais discípulos, que foram santificados depois. E, ainda, deve-se lembrar que Maria não teve outros filhos.

Gledson Meireles.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

A mulher de Apocalipse 12 e algumas doutrinas da fé cristã

A interpretação comum tem sido explicar a mulher como imagem da Igreja. Isso, porém, não exclui a imagem de Maria, pois, como já explicado em outro artigo, a virgem Maria pode ser vista como símbolo e toda a Igreja nessa passagem, já que ela deu à luz o Filho que irá reger todas as nações. Por isso, é muito contra o texto negar isso.

Há uma interpretação protestante que afirma ser Israel a mulher dessa passagem. A Igreja não exclui outros significados, podendo interpretar esse símbolo como Eva, Israel, a Jerusalém Celeste, a Sinagoga espiritual, a Igreja, Maria.

Isso porque os sinais do Apocalipse podem ter mais de um sentido, como está em Ap 17, 9-10, onde as sete cabeças da fera são "sete montanhas" e também "sete reis".

Certamente, porém, a primeira interpretação, a mais natural, leva a Maria, pois ela é a mãe do Messias.

Os símbolos do dragão, da mulher, do filho, estão todos ligados a indivíduos. O dragão é Satanás, a mulher é Maria, o filho é Jesus. Muito simples. Mas, há quem afirme, por exemplo, que o dragão é Satanás, a mulher é Israel e o filho é Jesus, ficando apenas o símbolo da mulher como algo coletivo, o que desequilibra essa intepretação, já que os outros símbolos são individuais. Por isso, é melhor partir do literal para o espiritual, que é a correta interpretação, e que está conforme os dados bíblicos, oferecendo sentidos muito claros desses sinais.

Pode-se notar também que a mulher no céu remete à assunção de Maria. As vestes de sol, a coroa de estrelas, a lua debaixo dos pés, as asas da proteção, tudo lembra a graça de Deus que envolve a virgem Maria, indicando a imaculada conceição, que exclui todo pecado, e a assunção ao céu, depois de sofrer por amor de Cristo na terra.

Outra doutrina que pode ser lembrada, sem muito esforço, é que a mulher tem descendentes, como está no versículo 17. De fato, os filhos da mulher são os que guardam os mandamentos de Deus e têm o testemunho de Jesus, mostrando que a mulher é sua mãe. Assim, temos que Maria é mãe da Igreja.

Gledson Meireles.

 

 

 

 

 

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Crítica de R. K. McGregor Wright à doutrina do livre-arbítrio

Estudo do livro

A Soberania Banida – Redenção para a Cultura Pós-Moderna –  de R. K. Mc Gregor Wright – Editora Cultura Cristã – 1ª ed. 1998. Capítulo 2.

A crítica de McGregor Wright à teoria do livre-arbítrio

McGregor Wright lembra que é de suma importância definir os termos e não introduzir mudanças de sentido durante o tratamento do assunto antes de iniciar um debate.

De fato, isso é essencial, e muitas vezes optamos por usar de outros conceitos através de termos já conhecidos, o que pode causar problema e ser alvo de críticas dos eruditos. Além disso, o objetivo da discussão, que é esclarecer o assunto, fica prejudicado.

O autor afirma que as ideias principais da teologia protestante reformada devem ser demonstravelmente derivadas da Bíblia. Trata-se da intepretação da Bíblia feita pela ala reformada oficial e principal do Protestantismo.

No capítulo 2 o autor trata da doutrina do livre-arbítrio, e a chama de incoerente. Como exigiu no início, ele apresenta as definições dos termos, e afirma que “Pelo termo livre-arbítrio eu quero dizer a crença de que a vontade humana tem um poder de escolha com a mesma facilidade entre alternativas.”

O teólogo critica W. Shedd, influente autor calvinista, como propondo um calvinismo inconsistente, quando negando a indeterminação da vontade ensina algo que praticamente é idêntico ao livre-arbítrio ensinado pelos arminianos.

De fato, para o reformado o livre-arbítrio significa a capacidade invencível para fazer escolhas, sempre com a mesma eficácia, entre as alternativas, mesmo diante de influências, pois o livre-arbítrio pode escolher vencendo os fatores e prescindir deles.

Isso é o que o reformado entende sobre o livre-arbítrio. Então, afirma que para a teologia reformada o livre-arbítrio é apenas a função de desejar ou escolher, é a capacidade de fazer escolhas. No entanto, as escolhas são sempre determinadas, pois são sempre causadas, e não há possibilidade de qualquer evento finito ocorrer por acaso.

Nega-se que o livre-arbítrio seja auto-determinante ou autônomo, não causado por condições prévias, mas que uma vez que há condições causais anteriores isso é o mesmo que determinações, ou seja, se o livre-arbítrio funciona induzido, levado ou por lago, então ele é determinado por isso, e não há possiblidade de nada na criação ter autonomia e agir sem determinação prévia.

Pelas suas palavras, Wright entende que a mente apresenta elementos ao livre-arbítrio e ele pode sempre escolher, de forma neutra, apesar de quaisquer influências. Dessa forma, o livre-arbítrio não sendo causado deverá ser espontâneo, e assim não poderá agir e formar caráter.

Parece que MacGregor Wright vê o livre-arbítrio como uma entidade no homem, um poder autônomo que surge espontaneamente, e por isso não poderia ser controlado por nada, nem pelo próprio sujeito, nem por Deus. Assim, na sua objeção há que se a vontade é neutra ela não poderia agir, e se precisa de argumentos, evidências, razões, emoções para decidir, os próprios argumentos seriam ameaça ao livre-arbítrio, e não há como ser necessários se ele é neutro. Ainda, ensina que a cooperação não necessita de livre-arbítrio.

Por fim, pode-se afirmar que o livre-arbítrio, conforme a definição reformada, de acordo com Wright, é a capacidade da pessoa de expressar o seu caráter, agindo em harmonia com os elementos internos, como o intelecto ou mesmo com os hábitos e com as influências quaisquer que forem que venham a incidir sobre ele. Isso seria um tipo de liberdade determinada ou previamente causada. Tal é a posição reformada.

E a responsabilidade? Para o reformado a responsabilidade não é fundamentada no livre-arbítrio, que na verdade não existiria, mas em Deus como criador e ponto de referência moral, em nosso conhecimento e no propósito da glória de Deus. Isso significa que o homem não seria livre, mas por essas razões continuaria responsável por seus atos.

Diante disso podemos responder que, desde as primeiras páginas sagradas aprendemos que o homem e a mulher foram criados livres. Não há necessidade do termo livre-arbítrio aparecer, mas o fato mesmo do livre-arbítrio, em passagens bíblicas, para sabermos do que se trata, pois os fundamentos da doutrina que o texto ensina já são suficientes para que creiamos.

Assim, em Gênesis 2, 27 foi dito a Adão e Eva sobre a árvore do conhecimento: “mas não comas do fruto da árvore da ciência do bem e do mal; porque no dia em que dele comeres, morrerás indubitavelmente”.

Isso já supõe que Adão e Eva possuíam a capacidade de comer do fruto daquela árvore ou não, conforme quisessem, assim, como podiam compreender que deviam obedecer àquele mandamento, como também, caso fizessem o contrário, estar conscientes de que haveria um castigo.                                                                                                      

Por isso, o catecismo explica que a amizade com Deus só pode ser vivida com livre submissão. A prova está nessa passagem, que exprime a proibição feita ao primeiro casal humano. Eles eram livres para obedecer o mandamento e não comer o fruto, ou desobedecer e comê-lo. Não haveria razão para proibir algo a quem não pudesse ter capacidades para obedecer.

De fato, a doutrina católica ensina que o livre-arbítrio não significa a capacidade de escolher sem qualquer influência, o que pode-se escolher qualquer coisa sempre por si mesmo.

Ainda, somos conscientes dos nossos atos e de como eles são feitos. A mente é a causa, e não se deve procurar outro lugar. O livre-arbítrio age por motivos, e sempre é atraído ao que julga ser bom. É verdade que o mal não pode atrair nossa vontade, a não ser por erro, por juízo errôneo.

Também não significa que o homem está sempre exercendo o livre-arbítrio com toda a sua força, como também é verdade que não estamos sempre raciocionado sobre tudo o que vemos e fazemos, etc. No entanto, somos seres racionais, e do mesmo modo temos o livre-arbítrio.

Há muitas coisas que ocorrem espontaneamente, como fruto de hábitos, e são determinados por coisas anteriores. No entanto, é igualmente verdade que no curso normal do pensamento na consciência podemos escolher, impedir e iniciar outros pensamentos como atos verdadeiramente livres.

A escolha do motivo mais forte não é prova contra o livre-arbítrio, com já estudado aqui, mas é uma afirmação destituída de sentido, pois apenas significa que escolhemos o que escolhemos, o que não explica absolutamente nada, mas apenas descreve ato.

Por exemplo, entre um sorvete de morango e um de chocolate, se alguém escolhe o de chocolate ele escolheu o de chocolate! Nada mais, realmente.

De fato, a mente pode propor motivos. Nós podemos propor motivos. Se alguém está para tomar um sorvete, pois havia decidido tomá-lo, mesmo sabendo que quebraria sua dieta ou que não faria bem à sua saúde, pode por deliberação pessoal desistir de tomá-lo ainda que seu apetite estivesse totalmente inclinado a isso. O motivo que sua razão propôs foi assumido contra o anterior, e não faz sentido afirmar que por ter esse motivo prevalecido, esse foi o mais forte e, portanto, o livre-arbítrio não existe, pois é esse mesmo fato que mostra o que é o livre-arbítrio. Usamos motivos para agir.

Gledson Meireles.

domingo, 15 de novembro de 2020

Autoridade da Bíblia e da Igreja

A autoridade imediata é a Igreja, de onde ouvimos a pregação e obedecemos aos ensinos. A autoridade da Bíblia é aquela que flui através da Igreja e chega a nós, pelos ouvidos, onde a Palavra de Deus gera em nós a fé.

Gledson Meireles.

terça-feira, 10 de novembro de 2020

Capítulo 1 - A depravação total

O que a doutrina reformada ensina sobre a depravação total? O livre-arbítrio foi perdido? A Bíblia ensina isso?

Abaixo está o capítulo, com texto melhorado, sobre a depravação total.

 

Capítulo 1

A DEPRAVAÇÃO TOTAL

O teólogo protestante reformado Michael Horton tenta defender o Calvinismo apelando para o paradoxo, apresentado como exemplos algumas fundamentais da fé cristã, como a trindade, a divindade e humanidade de Cristo, a soberania e a responsabilidade humana.

Devemos compreender bem o que realmente é um paradoxo e o que é uma contradição. Essas duas realidades não são a mesma coisa, não se trata de sinônimos. Há uma grande diferença. Do mesmo modo tenhamos em mente o que devemos compreender pelo termo mistério. Ao longo do estudo essas noções serão melhor elaboradas.

A primeira doutrina citada é verdadeiramente um mistério. A fé católica ensina que os mistérios são doutrinas não totalmente compreendidas, o que não significa que são incompreensíveis, mas que a sua totalidade não é conhecida. Assim, na Trindade, Deus é um só, mas subsiste em três pessoas, iguais e realmente distintas.

Não são três deuses, e por isso não se diz que três deuses é um Deus. Se assim fosse, tal afirmação seria uma contradição, pois três não pode ser um ao mesmo tempo e do mesmo modo, pela mesma perspectiva e no mesmo sentido. Isso não é possível. Portanto, não se pode dizer que Deus é um e três ao mesmo tempo, pois isso é absurdo.

A definição ensina que Deus é Um em sua natureza, na Sua divindade, e esse único Deus apresenta-se em Três Pessoas, que são as pessoas do Pai, do Filho e do Espírito Santo. As três Pessoas são um só Deus. Não se diz que três pessoas são uma só! Nem que três pessoas são três deuses! A primeira seria uma contradição, a segunda uma heresia. Por isso, em Deus há três Pessoas com a mesma natureza divina, o que ultrapassa a compreensão humana, mas não a contradiz, não quebrando nenhuma lei racional.

A divindade e humanidade de Cristo também podem ser compreendidas em parte, pois Jesus é uma pessoa que assumiu uma natureza. Isso não quer dizer que Jesus criou um outro ser humano junto ao Seu ser divino, mas que continuou única pessoa e formou para si um corpo e alma humanos, de forma que foi homem igual a nós. A divindade permaneceu e a humanidade foi adicionada. A Divindade do Filho começou também a ter unido a Seu ser uma pessoa com natureza e todas as características próprias do ser humano. Nenhum problema com isso. Não há contradição, mas um sublime mistério.

Agora, tratando da soberania e da responsabilidade, e não da liberdade, a coisa é outra. A doutrina reformada afirma que a soberania divina é total e controla exaustivamente todas as coisas, até os pecados dos homens e mulheres, mas os homens e mulheres continuam responsáveis pelo que fazem. Não haveria espaço para o agir humano, principalmente em relação à salvação, no que diz respeito ao livre-arbítrio.

Por exemplo, Judas teria sido criado para trair Jesus, sendo a traição algo preordenado, determinada para ocorrer, e não poderia ser diferente do que estava determinado. Enquanto isso, Judas permanece responsável. Ele fez o que estava preordenado e foi culpado pelo que fez, pois o reformado entende que ele traiu livremente o Senhor. O reformado dirá que isso é um paradoxo, mas inegavelmente a melhor explicação é que trata-se de uma contradição. Não há como ser determinado a fazer algo e ser responsável por algo. Assim, essa doutrina não tem comparação com as doutrinas da trindade e da divindade e humanidade de Jesus.

A trindade não encerra contradição. Jesus como homem e Deus ao mesmo tempo também não. Mas, o homem sem livre-arbítrio e determinado pelo decreto divino e ao mesmo tempo responsável não pode existir. A não ser que afirme-se contra a revelação que a ação de Deus seja qual for justifica-se por si mesma porque Deus poderia fazer mesmo o que contrariamente sabemos ser bom que seria assim mesmo bom por definição. Tal noção não é ensinada pelos reformados, pelas confissões reformadas, mas alguns chegaram a tal coisa por causa do erro apontado acima.

Mais adiante será feita a observação quanto ao uso do conceito de responsabilidade, muito preferido pelos reformados, quando o assunto principal é o de livre-arbítrio. É comum ao se falar de liberdade o teólogo reformado referir-se ao tema através do conceito de responsabilidade.

A atividade do fiel na salvação, e a garantia da salvação como dom seria outro paradoxo. Mas, isso é também muito bem compreendido, porque tudo o que recebemos é gratuitamente, mas devemos receber e cooperar, com a graça que está disponível e que pode nos levar à salvação. Quando se entende, como na teologia reformada, que a atividade do homem está determinada, e que na salvação ele é passivo totalmente, não se pode ir logicamente além do que está exposto nas premissas, de que não há liberdade e não há verdadeiras obras que servem para a salvação. Operai a vossa salvação, diz a Escritura. Isso não e possível, afirma de alguma forma a teologia reformada.

É uma afirmação lógica, mas saibamos que os reformados entendem que a ação do salvo na salvação é verdadeira e livre, embora determinada. Isso não é concebível, mas é o que os reformados afirmam juntamente com os católicos.

Também o reino de Cristo já presente e ainda não inaugurado, são outros exemplos de tensões que o autor lembra para fazer apresentação da doutrina reformada, como se a mesma fosse igual ao mistério que essas outras doutrinas citadas demonstram. Veremos novamente que esse caso não é assim.

Por exemplo, o reino está espiritualmente já presente, mas não está completo ainda, não foi levado à sua realização plena. Já foi inaugurado e já funciona, mas terá sua consumação. Não há nada que seja absurdo e contraditório. Nós entendemos os mistérios. As contradições nos são contrárias.

Portanto, quando se nega o livre-arbítrio não se pode afirmar que o homem é responsável, e apenas afirmar que isso é um mistério, como se essa fosse uma explicação suficiente, pois de fato essa tensão não pode ser encontrada em nenhuma passagem bíblica e infringe leis da razão humana.

Aliás, muitas afirmações que surgem desse cenário são irracionais. Por exemplo, afirmar o amor de Deus aos que são reprovados, quando ao mesmo tempo afirma que Deus decretou eternamente a perdição deles. Então, afirma-se que o amor com que Deus os ama é outro, é um amor diferente, não é salvador.

Mas, o problema é que a Escritura trata diretamente do amor salvífico de Deus pelos pecadores. Quando afirma que Deus amou o mundo de tal maneira que entregou o Seu Filho para salvar o que crê (cf. João 3, 16), o contexto é salvífico. Se o mundo significa todas as pessoas, há o amor salvífico de Deus disponível para todos. Assim, há de se entender que a doutrina reformada afirma que Deus não ama todos os pecadores, mas apenas os eleitos. E a passagem citada é uma das muitas que essa teologia tente de muitas formas explicar.

O que pensar de um pai que ordena ao filho certo trabalho que o filho não consegue realizar. Depois o pai proíbe o filho de fazer o trabalho. No final, o pai castiga o filho por não ter feito o trabalho e diz que a punição é porque o trabalho que estava na responsabilidade do filho não foi realizado.

Qualquer pessoa verá a contradição que está na questão acima. Qualquer um percebe que existe injustiça aí. Ela é insuficiente para entender o que será tratado nesta obra. Também, antes de qualquer crítica, trata-se de uma comparação imperfeita, como são praticamente todas as comparações. Mas, ela está apenas mostrando que é fácil detectar contradições, como também é fácil saber que essas ideias que estão no parágrafo acima não podem ser conciliadas, e que o resultado é injusto. Mas, isso não é tudo.

Durante o longo percurso da leitura do livro será possível avaliar questões como essas, não pela inteligência simplesmente, mas a partir da revelação bíblica, daquilo que a Bíblia realmente ensina. Tenha já em mente a passagem de João 3, 16, citada acima, e que é emblemática para o que estamos estudando.

A dignidade da natureza humana

Michael Horton afirma que a natureza humana é basicamente boa, dotada de livre-arbítrio, beleza, razão, e excelência moral. Quem conhece o calvinismo em sua sistemática afirmação da pecaminosidade humana fica surpreso com essa constatação de que a doutrina reformada afirma que nossa natureza é boa originalmente e em sua estrutura mais profunda. Em outras palavras, está tratando da natureza humana como criada por Deus e antes da queda no pecado original.

Isso tornará possível entendermos o que é a chamada doutrina da depravação total. O que o calvinismo ensina quando afirma essa radical pecaminosidade que afetou a natureza humana.

Assim, entendendo bem esse ponto, comparando com a doutrina católica, será uma caminhada longa e prazerosa na doutrina do evangelho, resolvendo problemas, esclarecendo dificuldades, afastando erros.

Para o reformado, o pecado não é a fraqueza da natureza humana, mas o pecado infectou a natureza e a fez assim.

Interessante o fato da teologia reformada vir em defesa da natureza humana contra a ideia que poderia localizar um defeito intrínseco nela. No entanto, se tal erro é de origem platônica, deve-se afirmar que isso não atinge a fé católica, pois como explica Santo Tomás, foi o pecado que introduziu a desordem entre as faculdades humanas, a fraqueza nas suas operações, atingindo de certo modo todas as suas partes.

Assim, a bondade da natureza humana na criação é salvaguardada e o pecado original corretamente ensinado. A crítica reformada não atinge a doutrina católica. Certamente, o teólogo reformado pensa que isso afeta a doutrina católica, quando na verdade não.

Ao que parece, todos os teólogos reformados possuem a ideia de que o pecado original como ensinado na Igreja Católica afirma que a razão não foi atingida, o que não é verdade. Todas as partes da natureza humana foram afetadas pelo pecado original, a inteligência, a vontade e os afetos. Se é com essa afirmação que se diz  da depravação total, onde o total fala de todas as partes, não excluindo nenhuma, então a doutrina católica ensina o mesmo.

Se por outro lado a depravação total quiser afirmar que nada no homem, em nenhuma parte, manteve qualquer resquício de bem, então essa totalidade do pecado é rejeitada, pois não é bíblica.

Se a razão fosse totalmente corrompida não haveria possibilidade de ação livre e responsável, nem mesmo qualquer relação com Deus, e a natureza humana estaria totalmente destruída. Não é isso, certamente, que os reformados querem ensinar. Portanto, tanto católicos quanto reformados entendem que a natureza humana não foi totalmente afetada pelo pecado original, no que concerte à intensidade do poder do pecado.

Prossigamos com a apresentação de Michael Horton para ver o que pode estar em contato com a fé católica e o que não pode ser conciliado.

A ferida mortal não vem da natureza, mas da queda, afirma o teólogo. Nada há a objetar, pois é justamente isso que a doutrina católica ensina. Não foi, portanto, a queda natural, mas a moral. Não foi a natureza fraca que causou o pecado, mas o pecado fez a natureza fraca, pode-se assim dizer.

Calvino ensina que o apetite baixo seduz o homem, mas também a impiedade ocupa a mente e o orgulho penetrou as profundidades do coração.

Quando lemos São Tomás aprendemos que tanto os apetites arrastam a razão como também o pecado atingiu todas as partes do homem.

Por isso, pode-se afirmar, certamente, que o que Calvino descobriu não está em oposição ao já ensinado por São Tomás.

Então, Calvino rejeita o dualismo que põe o pecado no corpo e não na alma, que ensina que a alma e não também o corpo é imagem de Deus. Então, Michael Horton fala da alta visão da natureza humana que a fé reformada tem. Pode-se afirmar que esse resultado não é diferente da doutrina católica.

Em Ef 4, 23-24 está escrito: “Renovai sem cessar o sentimento da vossa alma, e revesti-vos do homem novo, criado à imagem de Deus, em verdadeira justiça e santidade”.

Parece haver aqui uma divergência entre o pensamento tomista e o calvinista, pois Santo Tomás ensina que a imagem de Deus está na alma, enquanto Calvino afirma que está na alma e no corpo. Mais adiante veremos sobre a imagem de Deus segundo Santo Tomás.

A imagem de Deus está na alma ou na alma e no corpo?

A doutrina reformada ensina que a escravidão do homem é ao pecado e não à soberania de Deus. O coração escolhe o que aprova e deseja. O homem mantem somente pequenos restos dos dons que Deus deu, suficiente para não deixá-lo sem desculpa.

Certamente, esses restos que sobram são os mesmos que santo Tomás apontou como os que permaneceram após a queda, e que não podia deixar de existir a não ser que a natureza humana fosse totalmente destruída.

Afirma o teólogo Michael que onde o ensino luterano e reformado diverge do Catolicismo é quanto à profundidade e extensão da corrupção do pecado original. Em outras palavras, ao que parece, ele afirma que o catolicismo não ensina que o pecado atingiu todas as partes do ser humano e que não foi tão profundo quanto foi. Mas, se isso for o pensamento reformado, já está refutado na seção anterior.

Afirma, ainda, que na teologia reformada a própria inclinação má incorre em juízo de Deus e não apenas enfraquece a natureza, mas a aprisiona a pessoa inteira. O livre-arbítrio não vence isso, nem a cooperação com a graça pode ajudar a curar a alma, e da condição pecaminosa procedem os pecados, ensina o teólogo.

Nesse ponto há divergência com a doutrina católica, no que diz respeito à afirmação de que o livre-arbítrio foi perdido e nem a graça pode cooperar com ele para vencer o pecado. Essa total inabilidade e incapacidade não pode ser aceita, a não ser com grandes problemas teológicos, que serão enfrentado no decorrer do estudo.

Afirma também que a doutrina católica ensina a imputação do pecado a todos, mas nega que a culpa inclui a inclinação pecaminosa que corrompeu a mente e a vontade de forma a impossibilitar a cooperação com a graça, pois nada no homem está aberto à graça. É a negação da cooperação da graça na doutrina reformada.

Esse é um dos momentos marcantes que mostram as diferenças entre a doutrina católica e a doutrina reformada quanto aos efeitos do pecado original. Enquanto cremos que o homem recebe a graça que o auxilia a fazer o bem que agrada a Deus, e que pode cooperar com a graça, a fé reformada afirma que o homem não tem nenhum aspecto em seu ser que esteja aberto à graça e não pode fazer nada em relação a Deus mesmo cooperando com o auxílio da graça. Onde estão as passagens bíblicas que ensinam isso? Certamente não existem, mas são inferências de passagens bíblicas que ultrapassam-nas no sentido.

Quando à imagem de Deus após o pecado, enquanto Lutero ensinou que a essa foi perdida e somente a redenção pode restaurá-la, Calvino afirmou que essa imagem não foi totalmente destruída.

Ele fez a distinção de liberdade como livre da compulsão, do pecado e da miséria. Somos livres da compulsão, mas não do pecado e da miséria. Não há compulsão externa. Outras distinções dos calvinistas mais tardios referem-se à habilidade natural, mas não à habilidade moral em direção a Deus.

Naturalmente o homem pensa, quer e sente o bem, pois tem suas faculdades, que não foram perdidas. O homem não consegue sozinho decidir a fazer a vontade de Deus, se não for pela graça. Com isso, aproxima-se muito da doutrina católica novamente. Pode-se perceber afastamentos e aproximações da doutrina reformada em relação à doutrina católica.

Esse é um dado importante da teologia reformada, pois Calvino distingue a necessidade e a compulsão, enquanto os teólogos mais tardios fizeram a distinção entre a habilidade natural contra a habilidade moral.

Quando Santo Tomás fala do que permanece no homem após a queda, Calvino também admite que algo ficou, mas é cuidadoso em afirmar que isso não é uma obediência piedosa, mas o sensus divinitatis. Outra distinção, que ainda é um pouco diferente daquela de Lutero, é a liberdade em relação a Deus e em relação a outras pessoas.

Enfim, a teologia reformada ensina que o homem é o autor do pecado. Quanto à determinação de tudo o que existe e a responsabilidade do homem, Michael afirma que esse paradoxo, como chama, continuará na glória. Diferentemente, outros teólogos reformados esperam que na glória isso será compreendido. Acima, já vimos que tal coisa não é paradoxo, mas contradição, e que na glória compreendemos tudo o que for necessário, certamente, pois veremos Deus como Ele é.

Ao que parece os reformados não reclamam da exposição sobre a depravação total feita por Roger Olson. Ele faz isso objetivamente, e não há o que objetar.

A objeção de que a imagem de Deus não está somente na mente do homem, com referência a 1 Coríntios 11, 7 e Gênesis 1, 27, e na consideração e que a imagem é relativa à forma, o que incluiria o corpo, Santo Tomás ensina que como a nossa renovação espiritual consiste em revestir-se do homem novo, então nossa imagem de Deus está na mente, conforme Efésios 4, 23-24.

A renovação que é o revestimento do homem novo está atrelada à imagem de Deus. Na mente está a imagem de Deus, e nas outras partes do homem há traços de Deus. A imagem de Deus está no homem e na mulher, pois está na mente, onde não há distinção de gêneros. Eis a explicação tomista (Summ. Theol. Prima Part, Q. 93,  A. 6).

Desse modo, o cristão católico deve crer na doutrina entregue pelo Senhor aos santos “” (Jd 3). Com relação ao pecado original, esse assunto foi definido, com grande precisão, no século dezesseis, quando a Reforma Protestante ensinava algo diverso sobre esse ponto importante da fé cristã. Neste capítulo, continuaremos a ver o que é o pecado original e em que sentido afetou a natureza do homem, considerando mais argumentos.

A doutrina católica ensina que pelo pecado original Adão perdeu a santidade e a justiça que vinha de Deus, morreu espiritualmente, ficou sob o império do Demônio, e pela ofensa de prevaricação sua natureza foi mudada no corpo e na alma para o pior. Esse pecado é propagado a todo ser humano, pois pecamos em Adão. Todos pecaram (Rm 3, 23). O pecado original causou desordem na natureza, criando a concupiscência.

A concupiscência é a inclinação para o pecado, e é na Escritura algumas vezes chamada de pecado, não porque seja um pecado como falta pessoal presente na natureza, mas porque é nascida do pecado e leva ao pecado.

No nascido de novo não há pecado original, apenas concupiscência. A concupiscência não poder ser confundida com o pecado original. Ela provém do pecado original, é uma consequência dele, e está sempre na natureza humana decaída. O pecado original, por sua vez, é perdoado por Jesus Cristo, enquanto a concupiscência permanece.

Pelo pecado original o livre-arbítrio não foi perdido. Entretanto, o livre-arbítrio foi atenuado, enfraquecido, e escravizado pelo Maligno. Isso não significa que foi extinto. O sistema reformado afirma a escravidão da vontade, no sentido de que o livre-arbítrio é apenas um nome sem significado, como havia ensinado Lutero. Afirma ainda, que a libertação da vontade a torna livre para obedecer a Deus, mas não no sentido de que o livre-arbítrio tenha sido elevado a poder contribuir com a graça.

Também não é verdade que todas as obras que o homem faz, antes de ser salvo, sejam pecados. O que Romanos 14, 23 afirma, por exemplo, é que tudo o que não é feito na fé é pecado, entendo com isso que as obras que são feitas contrárias à fé, sem a fé e em oposição a ela. Isso não significa que todos os atos dos não justificados são pecados, mas que todos os atos feitos contra a fé, que não estão de acordo com a consciência, são pecados.

Quem não discerne o que está fazendo, peca. Existiu até mesmo a ideia de que as boas obras feitas pelos justificados são pecados. Essas heresias foram condenadas no Concílio de Trento.

Caso o leitor ainda tenha dificuldade com essa noção acima referida, procure nas Escrituras alguma passagem que afirme que tudo o que o ímpio faz é pecado. Imagine um ímpio ajudando o próximo e fazendo-lhe o bem necessário para aquele momento. Depois, pense que nessa ocasião o ímpio está pecando como se tivesse assassinado o próximo. Não há razão que conceba tal coisa. E mais ainda, não há na Escritura nenhum texto que ensine essa doutrina.

Alguns podem tentar incutir essa ideia ao afirmar que sendo mau o coração do ímpio, todas as coisas que dele fluem só podem ser más. O problema é que tal parecer não tem sua expressão no sentido acima exposto, pois todos sabem os maus também podem fazer social, cultural e humanamente boas obras. Não podem ser salvos por essas obras, nem podem elevar-se para encontrar Deus por si mesmos, e não são capazes de mudar o próprio coração sem a graça de Deus. Essa doutrina é bíblica, a outra não.

Se com a afirmação de que tudo o que o ímpio faz é pecado no sentido de que não tem valor espiritual diante de Deus, tal afirmação não teria maior repercussão. Mas, quanto a dizer que tudo o que faz merece o inferno, não há qualquer fundamento escriturístico para isso.

Dessa forma, a natureza humana foi radicalmente corrompida, de modo que o homem não pode por suas próprias forças fazer algo agradável a Deus. A concupiscência corrompeu toda a natureza humana. É como afirmar que toda a natureza humana está corrompida, mas não está corrompida completamente.        De fato, podemos compreender as verdades religiosas, saber das verdades da fé. Também podemos fazer atos moralmente bons.

Da mesma forma, podemos conhecer a Deus com certeza pela razão. Por isso, não é correto afirmar que a natureza foi totalmente corrompida. O Catecismo, no parágrafo 405, ensina que a natureza humana “não é totalmente corrompida”.

Se assim fosse, a natureza do homem teria uma essência de pecado, e não uma natureza manchada pelo pecado. Já vimos que o mesmo Calvino vislumbrou isso e concordou que tal coisa não é o ensino bíblico.

Para a teologia reformada a razão e o entendimento estão cegos, e os sentimentos pervertidos. Charles Hodge afirma que Adão foi “inteiramente e absolutamente arruinado”. No sentido já esclarecido antes, tais afirmações são comportadas na doutrina católica.

No entanto, a questão não é fácil de ser resolvida, visto que as explicações católicas são sempre negadas pelas teologias não católicas. Alguns chegaram a pensar que a Igreja Católica negasse o pecado original, por afirmar que a concupiscência não constitui o pecado. Então, o silogismo seria que (1) a concupiscência não é pecado no homem nascido de novo, e (2) a regeneração não muda a natureza humana. Então, a concupiscência não é pecado nos não regenerados.

Contudo, o que foi dito acima desfaz essa confusão, porque a sã doutrina ensina que a concupiscência é consequência do pecado, e não o próprio pecado. Dessa forma, a (1) concupiscência não é o pecado em si, mas resultado do pecado original, e (2) o pecado original é perdoado por Cristo. Então, os regenerados não têm o pecado original (mas possuem concupiscência). Tudo faz sentido, e está conforme a doutrina bíblica. Pelo menos uma das dificuldades está resolvida, o que doutro modo seria mostrada como inconsistência doutrinal.

Voltando às Escrituras, lemos Romanos 14, 23: “Mas, aquele que come apesar de suas dúvidas, condena-se, por não se guiar pela convicção. Tudo o que não procede da convicção é pecado.

O que não “é de fé” é pecado, diz a Escritura. Ou seja, seria pecado tudo o que não provem da fé. É fazer errar aqui, considerando que os que não têm fé cometem pecado em tudo que fazem, até quando tratam bem seus filhos, por exemplo, porque não possuem fé. É uma leitura desastrosa. De fato, Jesus fala que os maus não dariam uma pedra quando os filhos pedem pão (cf. Lucas 11,11).

Isso mostra que os maus não pecam em tudo, mas fazem o bem. Já está elucidado acima, mas precisamos sempre voltar a essas exemplificações. E diz nosso Senhor: “Se vós, pois, sendo maus, sabeis dar boas coisas a vossos filhos, quando mais vosso Pai celestial dará o Espírito Santo aos que lho pedirem.” Os maus fazem o bem, e o bem não é pecado.

Se o bem feito pelo coração mau não faz do ímpio alguém agradável a Deus, o que é verdade, isso não significa, porém, que a obra que faz seja sempre pecaminosa, mas que ainda que em estado de pecado nem tudo o que o ímpio faz é desagradável aos olhos de Deus.

Outra passagem que mostra o pecado original, naqueles que já estão no uso da razão e pecam voluntariamente, é Efésios 2, 1-4. O texto sagrado fala dos mortos em ofensas e pecados, mostrando que isso é praticado pelos que estão mortos espiritualmente, vivendo conforme o mundo, nos desejos da carne, seguindo a concupiscência, sendo, “como os outros, por natureza, verdadeiros objetos da ira (divina)”.

Essa comparação “como os outros também”, como está na tradução Almeida Corrigida Fiel, mostra que se trata dos que praticam o mal, e não dos que estão apenas com o pecado original, como são os recém-nascidos, que ainda não praticaram o bem e o mal, e por isso não estão ainda na categoria de objetos da ira, no sentido de que estão a caminho do inferno antes que estejam aptos a fazer e pensar por si mesmos.

É por isso que a graça de Deus é ofertada a todos, pois os que por natureza são filhos da ira, nascendo nesse estado, serão de alguma forma iluminados para poderem responder ao chamado de Deus.

Ainda sobre a depravação total

O pecado original é o pecado cometido por Adão e Eva, e também significa a consequência desse pecado para o ser humano. É uma “mancha hereditária”, é o estado de pecado que foi transmitido a todos os descendentes de Adão.

Santo Tomás afirma que tudo tira sua espécie da sua forma. A espécie do pecado original é tirada da sua causa. Toda a vontade do homem deve estar sujeita a Deus. A vontade é a primeira e principal parte da sujeição a Deus, pois é a vontade que leva as outras partes da alma a submeter-se a Deus. Se a vontade é desviada de Deus, todas as outras partes ficam desordenadas.

Assim, “A privação da justiça original” é o elemento formal do pecado original. Toda outra desordem é o elemento material. Desviar-se para o bem mutável é a concupiscência. Portanto, a concupiscência é materialmente o pecado original, que é formalmente a privação da justiça original. O pecado original afeta todas as partes da alma. Por exemplo, Santo Tomás fala da remoção da sujeição da mente do homem a Deus como pecado original.

Dessa forma, a justiça original consiste em que o homem está todo voltado para Deus, na sua vontade em obedecer a Deus, na sua inteligência em querer conhecer a Deus, e em todas as suas partes interiores. Uma vez perdida essa justiça original, todas as partes da alma são desordenadas, a começar pela vontade, passando pela mente e as paixões, todas sendo desviadas do fim que é Deus.

Portanto, estar sem a justiça de Deus causa a desordem das paixões humanas, a começar pela principal, a concupiscência, levando todas as demais. Assim, a concupiscência é também materialmente o pecado original (ST, Q. 82, art. 2; art. 3, r. 3), o que está conforme a Sagrada Escritura.

O bem da natureza consiste nos (a) princípios da constituição da alma, nas propriedades e potências da alma, (b) homem tem inclinação da natureza para o bem, e (c) a justiça original.

O pecado diminui o bem da natureza. No primeiro tópico não há o que mudar com o pecado original, pois a constituição da alma permanece a mesma.

No terceiro tópico há uma destruição total, pois o homem perdeu a justiça original. Perdeu a justiça completamente.

No segundo tópico há uma diminuição radical, pois a inclinação para o bem foi desordenada.

Essa é em termos gerais a explicação de Santo Tomás para o efeito do pecado original na diminuição do bem na natureza do homem.

Ele trata também da fraqueza, da ignorância, da malícia e da concupiscência. A razão tem em si a prudência, a vontade tem a justiça, o irascível a fortaleza, o concupiscível a temperança.

Com a desordem na razão vem a ignorância, na vontade vem malícia, no irascível vem a fraqueza, no concupiscível vem a concupiscência (Sum Theol. Q. 85, art. 3).

Esclarecendo sobre a depravação total

Embora a total inabilidade da natureza humana seja dita como objeto da ira, inadequada para a graça, inclinada ao mal, morta em pecados, escrava do pecado, como está no artigo 3 do Sínodo de Dort, afirma também, no artigo 4, que há certa luz de natureza, mesmo após a queda. Isso foi também expresso por Michael Horton. Com visto, esse ensino está igualmente na doutrina católica acima referida.

Então, o homem tem noções sobre Deus, sobre as coisas naturais, sobre a diferença entre bem e mal, e possui o desejo para o bem, embora isso não seja suficiente para chegar à salvação. Porém, a teologia reformada nega o livre-arbítrio, que teria sido extinto no pecado original.

No entanto, mesmo que não afirmando que a liberdade do homem seja forçada ou determinada ao bem ou ao mal, mas que o homem faz o mal livremente, e que na salvação pela graça o homem é libertado do pecado, mas continua nele a corrupção do pecado, é preciso entender mais, para conhecer a doutrina reformada ou calvinista. Isso se deve ao fato de que essas afirmações também estão na doutrina católica, mas possuem significados diferentes.

Isso pode ser feito pelo contraste com alguns pontos da doutrina católica. Aliás, é certo afirmar que os reformados creem que o homem e a mulher são determinados a fazer tudo o que fazem.

Afirmando esse tipo de liberdade, o cristão reformado tenta livrar-se da acusação de determinismo moral e de fatalismo. No entanto, no seu debate com o arminianismo a doutrina reformada nega a habilidade do homem de recusar a graça. Como visto, nega até mesmo a cooperação com a graça.

O silogismo arminiano seria que o homem pode aceitar e recusar a graça. Assim, se ele cooperar será salvo e se não cooperar será condenado.

Para o reformado, então, o homem pode afirmar que é mais justo que o seu próximo por ter feito a coisa certa, e tem algo para gloriar-se.

E como a Sagrada Escritura afirma que somos salvos gratuitamente pela graça, e ninguém pode gloriar-se (cf. Ef 2,8-9), o reformado rejeita essa doutrina arminiana.

Por isso, a doutrina reformada ensina que o homem não pode recusar a graça e que Deus põe a fé no coração, liberta e inclina o homem para Cristo. Dessa, o homem é eficazmente salvo, e não pode gloriar-se, pois o ato é somente de Deus. Essa doutrina será analisada mais adiante.

Antes, porém, pode ser dito que o eleito, caso quisesse gloriar-se, à moda do que aparece nas críticas aos arminianos, ele poderia afirmar que foi salvo por pura graça, não teria nada a oferecer para alcançar a salvação, mas ainda assim jactar-se-ia por ter sido um dos perdidos que foi eleito, e agora podia para sempre experimentar a graça de Deus, enquanto outros pecadores iguais a ele não o foram.

Até o momento ficou claro que a base para a recusa reformada da resposta livre ao chamado salvífico está na gratuidade da salvação, expressa em Ef 2, e que a aceitação livre seria algo que serviria para a glória do homem. Tais afirmações serão analisadas mais detidamente. Mas, podemos já perceber que essa objeção não procede.

A ideia de que o homem vai a Cristo, livremente, mas deve ser compelido a ele, do contrário não irá, e que Deus deve atrair, no sentido de arrastar o homem a Cristo, é algo que pode ser entendido como contra a vontade, embora o calvinismo afirme que Deus muda a vontade do homem de modo que ele queira ir.

A vontade livre de coerção seria escrava do pecado. Então, Deus efetivaria algo na vontade. Deus venceria nos eleitos a resistência à graça. Desse modo, torna-se impossível resistir à graça finalmente, pois ela sempre vence e é eficaz. O homem pode resistir, e frequentemente resiste, até que eficazmente é transformado e levado a Jesus.

Por isso, Charles Spurgeon afirma que a liberdade é auto-determinada. Ninguém exerce coerção sobre a vontade do homem, mas ele mesmo faz o que quer fazer. Estando o homem morto em pecado, sua escolha é sempre contra Deus e a graça divina.

Será que o homem pode ou não recusar a graça? Poder aceitar livremente constitui fundamento para gloriar-se? São essas perguntas que devem ser feitas, mas com frequência reformados não são convencidos pelas respostas: o homem pode recusar a graça, e o simples gesto de receber um presente não é fundamento de mérito! Ninguém pode jactar-se de ter sido salvo gratuitamente. E isso faz sentido. Mas, não é só por isso que a doutrina reformada é refutada.

O reformado não pode afirmar que um mendigo estendendo a mão para pegar um prato de comida possa gloriar-se diante daquele que recusou o alimento. A base da questão está estabelecida. Doutro modo, deveria aceitar que o eleito poderia cair nessa jactância.

Pelo contrário, sabemos que o homem pode agir livremente porque não perdeu o livre-arbítrio. Se ele não o perdeu, está no dever de responder à graça de Deus, afirmando e aceitando ou negando e recusando. A graça vivifica, atrai, liberta, capacita o homem para que responda ao chamado. Essa graça é suficiente, e uma vez que é aceita pode tornar-se eficaz. Ainda assim, o homem continua livre, cooperando com a graça.

Spurgeon afirma que antes da conversão somos livres para pecar, e após a conversão somos livres para pecar e obedecer a Deus. Agora, como pode o ser humano ser livre para pecar e ser impossibilitado de pecar a ponto de cancelar a relação com Deus?

Como o pecado é possível após a regeneração, justificação e salvação quando não há possibilidade de cair da graça? De fato, afirmar que o homem não pode recusar a graça revela a premissa errada. Então, todo o edifício cai. Portanto, o homem tem livre-arbítrio.

Se a liberdade de coerção é a única que o homem possui, segundo Charles Spurgeon, então deve-se responder com Santo Afonso, que essa liberdade até as bestas possuem. Os animais fazem o que querem, segundo seus instintos, não sendo levadas a nada senão sua própria inclinação.

O livre-arbítrio é a condição de poder fazer e deixar de fazer, fazer qualquer coisa e também o oposto, o bem ou o mal. Só não pode escolher a Deus se não for auxiliado pela graça.

Outra verdade que deve ser bem entendida é que Deus é a causa primeira de tudo o que existe, e o homem é causa secundária. Assim, o homem pode produzir ações a partir de si mesmo, pois lhe foi dada por Deus essa liberdade.

No entanto, Deus é soberano absoluto de todas as coisas, e age em toda ação humana. Isso é profundo: Deus age em todos os atos humanos, mas não causando os atos humanos. Ele age no homem quando o homem faz o bem, aperfeiçoando e orientando sua bondade, que é efeito da graça e obediência.

Mas, quando o homem peca Deus age usando seu próprio pecado para punir e também para transformar sua maldade em um bem. As duas ações, a de Deus e a do homem, coexistem. Deu pode efetuar o bem, não interferindo no livre-arbítrio humano.

No entanto, Deus não efetua a ação má no homem, pois isso é impossível por causa da Sua santidade. Nem determina atos morais maus. Ele pode agir no homem enquanto esse faz um ato mal, sendo responsabilidade única do homem, enquanto a parte de Deus é punir e fazer do mal um bem.

Desse modo, quando os irmãos de José venderam-no para os ismaelitas, Deus agiu ao mesmo tempo orientado aquela maldade para um bem, levando José ao Egito para que futuramente salvasse seu povo. Deus não foi o determinante da ação de vender José. Foram os atos livres, partindo dos irmãos de José. Deus agiu ali para determinar o resultado segundo Seu plano. As ações de Deus são sempre para o bem.

Quando o Faraó endureceu o coração, Deus agiu ali também fazendo com que aquele pecado, endurecendo o coração como punição, pois o Faraó já era um homem de duro coração, para que servisse para a libertação do povo. E assim aconteceu. Deus não proibiu a conversão do Faraó, já que esse não queria aceitar a graça. Ele apenas deferiu o que o Faraó já estava praticando.

Em 2 Timóteo 2, 25-26 está escrito: “É com brandura que deve corrigir os adversários, na esperança de que Deus lhes conceda o arrependimento e o conhecimento da verdade, e voltem a si, uma vez livres dos laços do demônio, que os mantém cativos e submetidos aos seus caprichos.

Primeiro vem a correção. Depois, esperar que Deus conceda a graça do arrependimento e o conhecimento da verdade. Então, assim libertado, o homem poderá responder. Tudo isso supõe o livre-arbítrio (possibilidade de correção) e a graça (esperança em Deus). É possível também ler essa passagem sob a ótica reformada. A correção é usada como instrumento da graça de Deus. Assim, o ato soberano da graça liberta o homem.

Essa leitura reformada concorda com a doutrina católica de que o homem sozinho, pelas próprias forças, não sai dos laços e do cativeiro do Maligno. Concorda que o homem responde livremente. Concorda que uma vez liberto poderá servir a Deus, mas ainda poderá cometer pecados. Discorda, porém, que poderá perder a graça.

Negando o livre-arbítrio essa é a consequência: de escravo do Demônio o homem passa a ser escravo de Deus, não no sentido cristão católico, mas como escravo que não pode, ainda que pecando gravemente, sair da comunhão com Deus, pois o ato soberano divino teria determinado essa condição de eleito e salvo para sempre, e garantiria a conversão, a reabilitação do pecador antes da morte.

Mas, o livre-arbítrio é expresso em 1 Coríntios 7, 37,  afirmando “sem nenhum constrangimento e com perfeita liberdade de escolha”, e também em  1 Cor 15, 10. São Paulo fala do “seu” trabalho, e o atribui à “graça”, mas volta a esclarecer novamente que é “a graça de Deus comigo”. A graça de Deus e o apostólico trabalhando juntos.

Além de falar da ação humana e da graça, cooperando, sinergisticamente, afirma a possibilidade da graça ser vã: “a graça que ele me deu não tem sido inútil”. Essa noção só é possível reconhecendo o livre-arbítrio. Como ensina Santo Afonso de Ligório, Deus quer que trabalhemos um pouco. No artigo que trata da eleição incondicional o livre-arbítrio será mais uma vez comentado.

Da mesma forma, 2 Coríntios 6, 1 exorta a não deixar a graça de Deus em vão, o que só é possível se o homem pode de alguma forma oferecer resistência à graça e não praticar o que seus efeitos o inclina a praticar: “Na qualidade de colaboradores seus, exortamo-vos a que não recebais a graça de Deus em vão, referindo-se à salvação, com “o tempo favorável” e “o dia da salvação”, pois “agora, é o dia da salvação”. O contexto é soteriológico. O mesmo em 1 Coríntios 5, 20 onde a reconciliação com Deus é pedida ao homem: “Em nome de Cristo vos rogamos: reconciliai-vos com Deus!”.

Para realçar e provar ainda mais essa verdade, façamos a exegese de uma passagem do livro de Hebreus, capítulo 10, onde temos um grande ensinamento sobre o sacerdócio de Cristo, o sacrifício salvífico, a nova aliança. Nesse ensino todo, há uma verdade que os cristãos católicos creem e anunciam, e que tem a ver com a salvação e o perigo de perdê-la pela recusa de continuar seguindo a Cristo, pela deserção da Igreja, pelo pecado mortal.

Isso está claramente ensinado nos versículos 26 a 39, um grande contexto sobre essa verdade.  “Se abandonarmos voluntariamente, já não haverá sacrifício para expiar este pecado”. Eis uma admoestação ao Povo de Deus. Se alguém abandona por sua própria vontade o convívio com Cristo, já não há fora da Igreja nenhum sacrifício capaz de dar o perdão dos pecados. A passagem é cristalina ao afirmar que há possibilidade de sair do convívio com Deus pelo voluntário abandono. É o fiel que pode decidir isso, e não Deus que o afasta.

Continuando essa verdade, o versículo 27 fala do “juízo tremendo e o fogo ardente que há de devorar os rebeldes”. A recusa em continuar é uma rebeldia. Somente por vontade própria, por um coração rebelde, o fiel pode negar a graça. Ainda, o autor compara a transgressão da Lei de Moisés, que era punida com a morte, e afirma que existe pior castigo para quem “calcar aos pés o Filho de Deus”.

Assim, o abandono voluntário, a rebeldia, o calcar o Filho de Deus, significam a mesma coisa, e o castigo é pior que a morte. Com essa afirmação sagrada refuta-se a doutrina que nega o fogo do inferno, afirmando o aniquilamento dos ímpios, pois se o castigo é pior que a pena de morte, infere-se que esse fogo devorador é um castigo espiritual tremendo, e não parece ser temporário. Mas não é o lugar de tratar desse pormenor.

Ainda, o mesmo verso 29 afirma o pecado de “profanar o sangue da aliança, em que foi santificado”. É o cristão que foi santificado pelo sangue de Cristo e volta atrás. “E ultrajar o Espírito Santo, autor da graça”. Calcar os pés a Cristo, profanar Seu sangue, ultrajar o Espírito Santo, é o mesmo pecado mortal. É importante notar que a Escritura afirma que o sangue “em que foi santificado”, no qual foi santificado. Trata-se de verdadeiros cristãos que receberam a salvação, o perdão dos pecados pelo sangue de Jesus, e foram iluminados pelo Espírito Santo, com a graça que dom de Deus.

A passagem inteira mostra que o afastamento dessa bênção salvífica é possível. Continuando, o texto esclarece ainda mais quando diz que “o Senhor julgará o Seu povo”. Não está falando do mundo, dos ímpios, dos incrédulos, dos infiéis, mas do Seu povo.

Aqui é refutada a doutrina dispensacionalista de que há a Igreja e o Povo de Deus, como se fossem distintos, que seria somente o judaísmo, como já foi refutado em outra parte ao estudar uma passagem da epístola aos Romanos, pois existe somente um Povo de Deus.

Também não é correto afirmar que nesse tempo a salvação será pelas obras, e por isso há possibilidade de perder a graça salvífica e ser condenado, pois a Escritura fala somente de uma nova aliança, definitiva, sem qualquer mudança de plano salvador.

Essas são tentativas de fugir das implicações do texto, já que ele é claro ao afirmar que é possível perder a salvação.

O verso 32 diz: “Lembrai-vos dos dias de outros, logo que fostes iluminados”, o que evidencia a salvação, e o verso 35 fala da necessidade da perseverança “para fazerdes a vontade de Deus e alcançardes os bens prometidos”.

Trata-se de bens eternos, da salvação. Não há lugar para duas leituras, com se fossem oferecidos bens temporais para um plano, e bens eternos para outro, como quer uma interpretação dispensacionalista.

Nem significa somente galardão pelas obras, distinto da salvação. O contexto mostra que é da salvação que o autor sagrado está falando. E continua, deixando muito claro para o que deixa a fé, e que perde o agrado de Deus, pois contrasta-se a ruína e a salvação. Perder o ânimo, desistir, deixar a fé e ir para a ruína, ou manter a fé para a salvação. Não poderia afirmar que os que caem na ruína estão salvos como os outros, pois não é uma leitura possível, como quer o dispensacionalismo.

Também não significa uma mera aparência de fé, de falsos cristãos, que apostataram aparentemente, pois nada disso é dito no contexto. A passagem é claramente uma admoestação da possibilidade de perder a graça da salvação.

O reformado dirá que a possibilidade apresentada no início é apenas um artifício retórico, e que o “se a abandonarmos voluntariamente” não pode jamais existir, porque o eleito não abandona nunca, ou se abandona ele volta e persevera.

Essa interpretação vem de outra fonte e não do texto sagrado, vem das inferências reformadas de passagens já comentadas acima, que serão estudadas mais adiante, e contradiz todo o contexto, que é claro por si, com foi mostrado acima. Não há nada na passagem que afirme isso, e as intepretações refutadas surgiram certamente, em parte, para livrar-se desses ensinos claros sobre a apostasia e o pecado mortal.

Com essa verdade, não se nega o dom da perseverança final, não se nega a eleição e a predestinação para a salvação, mas ensina-se que há livre-arbítrio, há possibilidade de cair da graça e perder a maior das bênçãos, que é a salvação, e, portanto, pode haver verdadeiros crentes que voltam atrás e negam a fé.

 O livre-arbítrio e a explicação de R. C. Sproul

Uma afirmação calvinista é que a expiação ilimitada leva ao universalismo. Assim, se (1) Cristo morreu por todos (2) a salvação é eficazmente dada na cruz, então (3) todos serão salvos. O problema é que a premissa 2 não é correta, pois a salvação é aplicada no momento em que o homem crê. Algo importante, que Olson trata no livro Contra o Calvinismo.

O correto é afirmar que (1) Cristo morreu por todos e (2) a salvação será dada a todo o que crê, então, todo o que crê será salvo, posto de forma bastante simples.

Esses raciocínios mostram como o calvinismo está sempre ajustando os dados bíblicos num sistema lógico e coerente, como de fato é o modo correto de proceder, de forma que, quando a crítica ao sistema for feita pelo mesmo meio, ninguém possa alegar que a razão não seja instrumento capaz de demonstrar um erro que está sendo ensinado, ainda mais quando feita por meio dos dados da revelação da Bíblia e com as luzes do Espírito Santo que todos devemos pedir.

O teólogo R. C. Sproul explica o que é contradição, paradoxo e mistério. Portanto, o calvinismo entende bem o que é a lei da lógica, o que é contradição aparente e o que é mistério. Por isso, quando se trata de mostrar qualquer inconsistência na teologia reformada é esperado que o leitor não ache que são métodos alheios à doutrina reformada ou que não possa ser aplicados, porque é o que a própria doutrina aplica, aliás, é o que o ser humano tem para entender tudo o que existe, a saber, a razão e a fé.

Uma afirmação de Sproul, de que Deus não deve a salvação a ninguém e que a misericórdia de Deus é voluntária podem ser julgadas. É verdade que Deus não deve nada a ninguém. É verdade que a misericórdia de Deus é voluntária. Como isso é aplicado em casos reais também é esperado que esteja de acordo com o Ser de Deus, com Sua santidade e Sua justiça. Caso isso não ocorra, a doutrina é falsa. Assim, terminemos esse exemplo com a questão profunda da predestinação e do livre-arbítrio, conforme mostrada por Sproul, porém de forma resumidíssima.

O autor afirma que a soberania de Deus e a liberdade do homem não são contraditórias. E no capítulo seguinte trata da questão de perto.

Primeiro, a definição de livre-arbítrio dada é que “é a capacidade de fazer escolhas sem nenhum preconceito, inclinação ou disposição anteriores”. Pode-se afirmar que autor julga a questão assim: se o homem faz (1) escolhas sem nenhuma razão e (2) são totalmente espontâneas, então suas escolhas não têm significado moral.

Sproul vai buscar as definições dos pensadores cristãos. Começa com Edwards com “a escolha da mente”, o que não oferece resolução para Sproul, depois “a capacidade de escolher o que queremos”, o livre-arbítrio sem liberdade de Santo Agostinho. Resume que “é a capacidade de fazer escolhas de acordo com os nossos desejos”. Esse tema já foi tratado em artigos sobre a doutrina reformada.

A realidade de livre-arbítrio é inegável. Todos a podem experimentar e constatar, pois é um fato evidente. No entanto, há aqueles que preferem usar de outros termos para falar dessa realidade, como visto antes sob a forma da livre agência. Esses afirmam que de fato o homem tem a livre escolha, e faz constantemente escolhas morais sem coerções. No entanto, esses mesmos afirmam que a vontade livre é determinada, ou seja, que os motivos que se apresentam à vontade sempre estão a determinar-lhe a escolha. Assim é que Robert Charles Sproul, teólogo calvinista de renome e grande influência, ensina que a liberdade é determinada. Em outras palavras, ele ensina que as escolhas que o homem faz são determinadas por seus desejos, pois, pelos desejos mais fortes, ou as inclinações mais fortes do momento, é que faria a vontade escolher.

Dessa forma, se o homem escolhe o que quer, ele é livre, mas se as escolhas são determinadas pelos seus desejos mais fortes, trata-se de uma liberdade determinada. A vontade neutra é algo irracional, frisa o teólogo, pois sem motivos não haveria ação. Afirma também que é algo anti-bíblico. Sproul afirmou que se o livre-arbítrio limita a soberania, essa ideia torna o homem soberano. Ao invés, afirma que é a soberania que limita a liberdade do homem.

Por tudo isso, os reformados estão sempre afirmando que o livre-arbítrio é uma ilusão, algo perdido, um mero nome, como ensinaram os reformadores do século dezesseis. Essa doutrina é algo que está sendo preservado com toda a força na tradição reformada.

A doutrina católica, por sua vez, prova o livre-arbítrio, mas mostra que aquilo que os deterministas estão afirmando como razões deterministas têm na verdade outra natureza. Eles erram ao considerar fatores que limitam ou até destroem, às vezes, o livre-arbítrio como se esses fossem prova da inexistência do livre-arbítrio.

A liberdade pode ser condicionada, pode ser perdida em momentos vários, pois há fatores inumeráveis que influem nela. A inteligência necessita de estado propício para poder refletir livremente, e há tantos momentos em que isso não pode ser alcançado, impedindo a liberdade. No entanto, essa existe. O que acontece nesses casos é algo que a atrapalha, a previne, a impede, a torna impotente. Mas ela existe. Não são essas circunstâncias algo que provam a inexistência da liberdade, mas, pelo contrário, mostram a sua realidade, e explicam porque ele está impedida de ser exercida.

A sensibilidade também precisa de meios adequados para exercer a liberdade, e pode sofrer com tantas situações onde essa liberdade é diminuída ou mesmo impedida. No entanto, isso não é provar que o livre-arbítrio não exista, mas reconhecer que há fatores que o prejudicam. Casos de grande gravidade e força que se irrompem sobre o homem neutralizando seu livre-arbítrio são exemplos extremos e não a normalidade da vida. São vários fatores que influem no exercício do livre-arbítrio, mas nenhum o destrói por completo, nenhum pode ser apresentado como prova da sua inexistência. Certamente é isso que faz Robert Sproul. Ele apresenta, em outras palavras, o exemplo do sorvete e de querer continuar com uma dieta. O que for maior na hora da decisão é que determinará a escolha. E afirma: “É simples assim”. Isso é determinismo. Ele negou a liberdade de escolha por colocar o poder no desejo mais forte para determiná-la. Se tomou o sorvete é porque o seu desejo maior naquela ocasião foi pelo sorvete. Se não o tomou foi devido ao seu desejo de ser magro ter sido maior que sua atração pelo sorvete!

Mas, o que isso demostra é que o homem está fazendo escolhas livres, e que os motivos que aparecem na sua mente são passíveis de deliberação, e que ele faz escolhas sem coerções, usando seu livre-arbítrio. Não está provando o determinismo, porque o desejo mais forte foi atendido, mas está provando a escolha que o homem fez livremente. Tudo o que for escolhido será dito que foi o desejo mais forte. Talvez isso seja um petittio principi. Porém, isso não está de acordo com a realidade. É muito comum que uma escolha voluntária seja feita contra os desejos, causando sentimento de descontentamento, sendo feito por motivos de consciência, sem quaisquer outros fatores determinantes, onde o indivíduo vê-se no uso de sua liberdade para aquela escolha que, ainda assim, não o agrada.

De fato, o sorvete poderá ser escolhido uma vez, porque o desejo de tomá-lo venceu, porque foi escolhido, outra vez porque não houve desejo de tomá-lo por estar indisposto, ou por qualquer outro motivo. Mas, ainda assim poderia ser tomado mesmo com indisposição.

Outra vez poderá estar muito ocupado, e ainda que o sorvete esteja à sua frente ele pode não querer tomá-lo, por querer continuar com seus afazeres, ou pode tomar o sorvete enquanto faz os seus afazeres, etc. Em todos os exemplos o motivo não determinou a escolha, o desejo maior foi o que o homem quis escolher, porque quis assim, e não o que impôs-se a ele para que a escolha fosse feita. Os motivos e desejos não impõem as escolhas. É a vontade que, por meio da deliberação dos motivos, escolhe. É por isso que é possível negar os desejos! É por isso que os motivos podem ser inúmeros, e as ações indeterminadas! De fato, o que Sproul mostrou não prova a liberdade determinada. Pelo contrário, prova o livre-arbítrio. O livre-arbítrio age por motivos, e em circunstâncias normais é livre para escolher o que mais lhe agrada, ou o que quiser, ainda que não lhe agrade, ou deixar de escolher.

Na conversão, Deus dá a graça para habilitar o homem a responder, para poder escolher livremente, e assim ser justificado. A graça atual vem para preparar o homem para a justificação, santificação e regeneração.

Continuando, ainda pode-se usar de mais tempo para esclarecer esse tema tão controverso. Antes de uma ação, o homem pode deliberar entre diferentes escolhas possíveis, e fazer a escolha que julgar que deve fazer, ou decidir por uma das que vieram à sua consciência por qualquer motivo que julgar mais apropriado, de forma que ele realiza o ato segundo o que for da sua vontade. Faltando isso, ele não foi livre. Se o motivo o determinou não houve liberdade.

Dessa forma, o fato somente é determinado quando ocorrido. Assim, ele já não muda mais. Entre uma escolha ou outra é o sujeito que decide, e não há no objeto apresentado nada que determine sua escolha, nem seus desejos e inclinações interiores podem levar ao ato de forma determinante.

Afirmar que o homem sempre escolhe agir segundo a inclinação mais forte do momento é um petitio principii, como dito acima, pois é o mesmo que afirmar que a inclinação é a mais forte porque ele a escolheu e a tornou um ato, pois ele sempre escolhe a inclinação mais forte. O raciocínio não prova nada. Se ao fazer qualquer escolha livre o homem age sem coerção interna e externa, e escolhe livremente aquilo que mais o interessou no momento for um argumento para negação do livre-arbítrio, então tudo isso não passa de jogo de palavras, já que nada mudou na realidade.

Ainda, mesmo em Deus, o Senhor absoluto da história, se usado essa argumentação de que Deus escolhe o que vem à sua inteligência com maior força, necessariamente, então estaria com isso negando a liberdade de Deus, o que é um absurdo.

Do mesmo modo, com tal argumento estaria também negando não só o livre-arbítrio em relação à coisas santas de Deus, à salvação, à união com Deus, mas não haveria livre-arbítrio para absolutamente nada. O homem seria o escravo mais feliz, pois está sempre escravizado por suas inclinações, e não vê nada forçando-o a fazer suas escolhas que, na maioria das vezes, lhe trazem bem-estar. É uma forma de argumento que volta-se contra tudo o que a teologia reformada propõe quando fala da resistência à graça.

O homem poderia agir livremente ao fazer escolhas morais, nas coisas referentes às suas atividades terrenas, e não poderia responder à graça. Mas, como visto, mesmo às atividades mais corriqueiras estaria escravizado pelas suas inclinações mais fortes a cada momento. Por isso, quando a graça tocasse o homem ela apenas apresentaria uma força maior dentre as demais inclinações que ele tinha então, e por isso ele o estaria respondendo “livremente” como responde a tudo o que existe, sendo a única diferença que nesse caso estaria escolhendo o que foi apresentado a ele por Deus. Seria escravo antes e depois. Da mesma natureza seria a escolha de um sorvete de morango com a escolha da graça. Essa doutrina não se encontra na Bíblia Sagrada. A Bíblia mostra o homem como ser racional que se dirige com motivos, com razões, e justamente nisso consiste o livre-arbítrio.

Na verdade, o apelo da graça é um motivo apresentado ao pecador para que ele escolha livremente, podendo de alguma forma rejeitá-lo, fazendo escolhas erradas. O livre-arbítrio não é confundido com os gostos pessoais. Ninguém é livre para gostar de maçã, mas há liberdade para comer maçã. Quem gosta de maçã não consegue não gostar, mas ele pode comê-la ou não, ainda que tenha vontade para isso. Ou pode também comê-la ou não ainda que sem vontade no momento. Parece que às vezes há exemplos que identificam liberdade com gostos, o que é algo errôneo.

Ainda, é da experiência humana que é possível alguém que não goste de maçã passe a gostar depois de algum tempo comendo maçã. Isso não é garantido, mas existe a possibilidade, o que prova que os gostos podem mudar. O livre-arbítrio é de outra natureza, e faz parte do ser racional.

Para mais um exemplo, animais podem aprender a gostar de alimentos que naturalmente não comeriam. Cachorros podem beber sucos, refrigerantes, comer doces, frutas, etc., embora não seja esperado que naturalmente gostem de tais coisas. Para dizer o mínimo, dificilmente deixarão de gostar de carne. E cachorros não são livres, mas seguem os seus instintos. A discussão da liberdade não pode estar no campo das preferências individuais ou da espécie. Por exemplo, o cão não está livre de gostar de carne, pois é da natureza canina ser carnívoro. No entanto, ele prefere a carne livremente no sentido de não ser coagido a tal escolha. Isso é afirmado somente para fins de reflexão, visto que o estudo aqui trata as objeções a partir da Palavra de Deus, a Bíblia, e raciocina a partir dos dados inspirados.

Gledson Meireles.