O que a doutrina reformada ensina sobre a depravação total? O livre-arbítrio foi perdido? A Bíblia ensina isso?
Abaixo está o capítulo, com texto melhorado, sobre a depravação total.
Capítulo 1
A
DEPRAVAÇÃO TOTAL
O teólogo protestante
reformado Michael Horton tenta defender o Calvinismo apelando para o paradoxo, apresentado
como exemplos algumas fundamentais da fé cristã, como a trindade, a divindade e
humanidade de Cristo, a soberania e a responsabilidade humana.
Devemos compreender bem
o que realmente é um paradoxo e o que é uma contradição. Essas duas realidades
não são a mesma coisa, não se trata de sinônimos. Há uma grande diferença. Do
mesmo modo tenhamos em mente o que devemos compreender pelo termo mistério. Ao
longo do estudo essas noções serão melhor elaboradas.
A primeira doutrina
citada é verdadeiramente um mistério. A fé católica ensina que os mistérios são
doutrinas não totalmente compreendidas, o que não significa que são
incompreensíveis, mas que a sua totalidade não é conhecida. Assim, na Trindade,
Deus é um só, mas subsiste em três pessoas, iguais e realmente distintas.
Não são três deuses, e
por isso não se diz que três deuses é um Deus. Se assim fosse, tal afirmação
seria uma contradição, pois três não pode ser um ao mesmo tempo e do mesmo
modo, pela mesma perspectiva e no mesmo sentido. Isso não é possível. Portanto,
não se pode dizer que Deus é um e três ao mesmo tempo, pois isso é absurdo.
A definição ensina que
Deus é Um em sua natureza, na Sua
divindade, e esse único Deus apresenta-se em Três Pessoas, que são as pessoas do Pai, do Filho e do Espírito
Santo. As três Pessoas são um só Deus. Não se diz que três pessoas são uma só!
Nem que três pessoas são três deuses! A primeira seria uma contradição, a
segunda uma heresia. Por isso, em Deus há três Pessoas com a mesma natureza
divina, o que ultrapassa a compreensão humana, mas não a contradiz, não
quebrando nenhuma lei racional.
A divindade e
humanidade de Cristo também podem ser compreendidas em parte, pois Jesus é uma
pessoa que assumiu uma natureza. Isso não quer dizer que Jesus criou um outro
ser humano junto ao Seu ser divino, mas que continuou única pessoa e formou
para si um corpo e alma humanos, de forma que foi homem igual a nós. A
divindade permaneceu e a humanidade foi adicionada. A Divindade do Filho começou
também a ter unido a Seu ser uma pessoa com natureza e todas as características
próprias do ser humano. Nenhum problema com isso. Não há contradição, mas um
sublime mistério.
Agora, tratando da
soberania e da responsabilidade, e não da liberdade, a coisa é outra. A
doutrina reformada afirma que a soberania divina é total e controla
exaustivamente todas as coisas, até os pecados dos homens e mulheres, mas os
homens e mulheres continuam responsáveis pelo que fazem. Não haveria espaço
para o agir humano, principalmente em relação à salvação, no que diz respeito
ao livre-arbítrio.
Por exemplo, Judas
teria sido criado para trair Jesus, sendo a traição algo preordenado,
determinada para ocorrer, e não poderia ser diferente do que estava
determinado. Enquanto isso, Judas permanece responsável. Ele fez o que estava
preordenado e foi culpado pelo que fez, pois o reformado entende que ele traiu
livremente o Senhor. O reformado dirá que isso é um paradoxo, mas inegavelmente
a melhor explicação é que trata-se de uma contradição. Não há como ser
determinado a fazer algo e ser responsável por algo. Assim, essa doutrina não tem
comparação com as doutrinas da trindade e da divindade e humanidade de Jesus.
A trindade não encerra
contradição. Jesus como homem e Deus ao mesmo tempo também não. Mas, o homem sem
livre-arbítrio e determinado pelo decreto divino e ao mesmo tempo responsável
não pode existir. A não ser que afirme-se contra a revelação que a ação de Deus
seja qual for justifica-se por si mesma porque Deus poderia fazer mesmo o que
contrariamente sabemos ser bom que seria assim mesmo bom por definição. Tal
noção não é ensinada pelos reformados, pelas confissões reformadas, mas alguns
chegaram a tal coisa por causa do erro apontado acima.
Mais adiante será feita
a observação quanto ao uso do conceito de responsabilidade, muito preferido
pelos reformados, quando o assunto principal é o de livre-arbítrio. É comum ao
se falar de liberdade o teólogo reformado referir-se ao tema através do conceito
de responsabilidade.
A atividade do fiel na
salvação, e a garantia da salvação como dom seria outro paradoxo. Mas, isso é
também muito bem compreendido, porque tudo o que recebemos é gratuitamente, mas
devemos receber e cooperar, com a graça que está disponível e que pode nos levar
à salvação. Quando se entende, como na teologia reformada, que a atividade do
homem está determinada, e que na salvação ele é passivo totalmente, não se pode
ir logicamente além do que está exposto nas premissas, de que não há liberdade
e não há verdadeiras obras que servem para a salvação. Operai a vossa salvação,
diz a Escritura. Isso não e possível, afirma de alguma forma a teologia
reformada.
É uma afirmação lógica,
mas saibamos que os reformados entendem que a ação do salvo na salvação é
verdadeira e livre, embora determinada. Isso não é concebível, mas é o que os
reformados afirmam juntamente com os católicos.
Também o reino de
Cristo já presente e ainda não inaugurado, são outros exemplos de tensões que o
autor lembra para fazer apresentação da doutrina reformada, como se a mesma
fosse igual ao mistério que essas outras doutrinas citadas demonstram. Veremos
novamente que esse caso não é assim.
Por exemplo, o reino
está espiritualmente já presente, mas não está completo ainda, não foi levado à
sua realização plena. Já foi inaugurado e já funciona, mas terá sua consumação.
Não há nada que seja absurdo e contraditório. Nós entendemos os mistérios. As
contradições nos são contrárias.
Portanto, quando se
nega o livre-arbítrio não se pode afirmar que o homem é responsável, e apenas
afirmar que isso é um mistério, como se essa fosse uma explicação suficiente,
pois de fato essa tensão não pode ser encontrada em nenhuma passagem bíblica e
infringe leis da razão humana.
Aliás, muitas
afirmações que surgem desse cenário são irracionais. Por exemplo, afirmar o
amor de Deus aos que são reprovados, quando ao mesmo tempo afirma que Deus
decretou eternamente a perdição deles. Então, afirma-se que o amor com que Deus
os ama é outro, é um amor diferente, não é salvador.
Mas, o problema é que a
Escritura trata diretamente do amor salvífico de Deus pelos pecadores. Quando
afirma que Deus amou o mundo de tal maneira que entregou o Seu Filho para
salvar o que crê (cf. João 3, 16), o contexto é salvífico. Se o mundo significa
todas as pessoas, há o amor salvífico de Deus disponível para todos. Assim, há
de se entender que a doutrina reformada afirma que Deus não ama todos os
pecadores, mas apenas os eleitos. E a passagem citada é uma das muitas que essa
teologia tente de muitas formas explicar.
O que pensar de um pai
que ordena ao filho certo trabalho que o filho não consegue realizar. Depois o
pai proíbe o filho de fazer o trabalho. No final, o pai castiga o filho por não
ter feito o trabalho e diz que a punição é porque o trabalho que estava na
responsabilidade do filho não foi realizado.
Qualquer pessoa verá a
contradição que está na questão acima. Qualquer um percebe que existe injustiça
aí. Ela é insuficiente para entender o que será tratado nesta obra. Também,
antes de qualquer crítica, trata-se de uma comparação imperfeita, como são
praticamente todas as comparações. Mas, ela está apenas mostrando que é fácil
detectar contradições, como também é fácil saber que essas ideias que estão no
parágrafo acima não podem ser conciliadas, e que o resultado é injusto. Mas,
isso não é tudo.
Durante o longo
percurso da leitura do livro será possível avaliar questões como essas, não
pela inteligência simplesmente, mas a partir da revelação bíblica, daquilo que
a Bíblia realmente ensina. Tenha já em mente a passagem de João 3, 16, citada
acima, e que é emblemática para o que estamos estudando.
A
dignidade da natureza humana
Michael Horton afirma
que a natureza humana é basicamente boa, dotada de livre-arbítrio, beleza,
razão, e excelência moral. Quem conhece o calvinismo em sua sistemática
afirmação da pecaminosidade humana fica surpreso com essa constatação de que a
doutrina reformada afirma que nossa natureza é boa originalmente e em sua
estrutura mais profunda. Em outras palavras, está tratando da natureza humana
como criada por Deus e antes da queda no pecado original.
Isso tornará possível
entendermos o que é a chamada doutrina da depravação total. O que o calvinismo
ensina quando afirma essa radical pecaminosidade que afetou a natureza humana.
Assim, entendendo bem
esse ponto, comparando com a doutrina católica, será uma caminhada longa e
prazerosa na doutrina do evangelho, resolvendo problemas, esclarecendo
dificuldades, afastando erros.
Para o reformado, o
pecado não é a fraqueza da natureza humana, mas o pecado infectou a natureza e
a fez assim.
Interessante o fato da
teologia reformada vir em defesa da natureza humana contra a ideia que poderia
localizar um defeito intrínseco nela. No entanto, se tal erro é de origem
platônica, deve-se afirmar que isso não atinge a fé católica, pois como explica
Santo Tomás, foi o pecado que introduziu a desordem entre as faculdades
humanas, a fraqueza nas suas operações, atingindo de certo modo todas as suas
partes.
Assim, a bondade da
natureza humana na criação é salvaguardada e o pecado original corretamente
ensinado. A crítica reformada não atinge a doutrina católica. Certamente, o
teólogo reformado pensa que isso afeta a doutrina católica, quando na verdade
não.
Ao que parece, todos os
teólogos reformados possuem a ideia de que o pecado original como ensinado na
Igreja Católica afirma que a razão não foi atingida, o que não é verdade. Todas
as partes da natureza humana foram afetadas pelo pecado original, a inteligência,
a vontade e os afetos. Se é com essa afirmação que se diz da depravação total, onde o total fala de
todas as partes, não excluindo nenhuma, então a doutrina católica ensina o
mesmo.
Se por outro lado a
depravação total quiser afirmar que nada no homem, em nenhuma parte, manteve qualquer
resquício de bem, então essa totalidade do pecado é rejeitada, pois não é
bíblica.
Se a razão fosse
totalmente corrompida não haveria possibilidade de ação livre e responsável,
nem mesmo qualquer relação com Deus, e a natureza humana estaria totalmente
destruída. Não é isso, certamente, que os reformados querem ensinar. Portanto,
tanto católicos quanto reformados entendem que a natureza humana não foi
totalmente afetada pelo pecado original, no que concerte à intensidade do poder
do pecado.
Prossigamos com a
apresentação de Michael Horton para ver o que pode estar em contato com a fé
católica e o que não pode ser conciliado.
A ferida mortal não vem
da natureza, mas da queda, afirma o teólogo. Nada há a objetar, pois é
justamente isso que a doutrina católica ensina. Não foi, portanto, a queda
natural, mas a moral. Não foi a natureza fraca que causou o pecado, mas o
pecado fez a natureza fraca, pode-se assim dizer.
Calvino ensina que o
apetite baixo seduz o homem, mas também a impiedade ocupa a mente e o orgulho
penetrou as profundidades do coração.
Quando lemos São Tomás
aprendemos que tanto os apetites arrastam a razão como também o pecado atingiu
todas as partes do homem.
Por isso, pode-se
afirmar, certamente, que o que Calvino descobriu não está em oposição ao já
ensinado por São Tomás.
Então, Calvino rejeita
o dualismo que põe o pecado no corpo e não na alma, que ensina que a alma e não
também o corpo é imagem de Deus. Então, Michael Horton fala da alta visão da
natureza humana que a fé reformada tem. Pode-se afirmar que esse resultado não
é diferente da doutrina católica.
Em Ef 4, 23-24 está
escrito: “Renovai sem cessar o sentimento
da vossa alma, e revesti-vos do homem novo, criado à imagem de Deus, em
verdadeira justiça e santidade”.
Parece haver aqui uma
divergência entre o pensamento tomista e o calvinista, pois Santo Tomás ensina
que a imagem de Deus está na alma, enquanto Calvino afirma que está na alma e
no corpo. Mais adiante veremos sobre a imagem de Deus segundo Santo Tomás.
A
imagem de Deus está na alma ou na alma e no corpo?
A doutrina reformada
ensina que a escravidão do homem é ao pecado e não à soberania de Deus. O
coração escolhe o que aprova e deseja. O homem mantem somente pequenos restos
dos dons que Deus deu, suficiente para não deixá-lo sem desculpa.
Certamente, esses
restos que sobram são os mesmos que santo Tomás apontou como os que
permaneceram após a queda, e que não podia deixar de existir a não ser que a
natureza humana fosse totalmente destruída.
Afirma o teólogo
Michael que onde o ensino luterano e reformado diverge do Catolicismo é quanto
à profundidade e extensão da corrupção do pecado original. Em outras palavras,
ao que parece, ele afirma que o catolicismo não ensina que o pecado atingiu
todas as partes do ser humano e que não foi tão profundo quanto foi. Mas, se
isso for o pensamento reformado, já está refutado na seção anterior.
Afirma, ainda, que na
teologia reformada a própria inclinação má incorre em juízo de Deus e não
apenas enfraquece a natureza, mas a aprisiona a pessoa inteira. O
livre-arbítrio não vence isso, nem a cooperação com a graça pode ajudar a curar
a alma, e da condição pecaminosa procedem os pecados, ensina o teólogo.
Nesse ponto há
divergência com a doutrina católica, no que diz respeito à afirmação de que o
livre-arbítrio foi perdido e nem a graça pode cooperar com ele para vencer o
pecado. Essa total inabilidade e incapacidade não pode ser aceita, a não ser
com grandes problemas teológicos, que serão enfrentado no decorrer do estudo.
Afirma também que a
doutrina católica ensina a imputação do pecado a todos, mas nega que a culpa
inclui a inclinação pecaminosa que corrompeu a mente e a vontade de forma a
impossibilitar a cooperação com a graça, pois nada no homem está aberto à
graça. É a negação da cooperação da graça na doutrina reformada.
Esse é um dos momentos
marcantes que mostram as diferenças entre a doutrina católica e a doutrina
reformada quanto aos efeitos do pecado original. Enquanto cremos que o homem
recebe a graça que o auxilia a fazer o bem que agrada a Deus, e que pode cooperar
com a graça, a fé reformada afirma que o homem não tem nenhum aspecto em seu
ser que esteja aberto à graça e não pode fazer nada em relação a Deus mesmo
cooperando com o auxílio da graça. Onde estão as passagens bíblicas que ensinam
isso? Certamente não existem, mas são inferências de passagens bíblicas que
ultrapassam-nas no sentido.
Quando à imagem de Deus
após o pecado, enquanto Lutero ensinou que a essa foi perdida e somente a
redenção pode restaurá-la, Calvino afirmou que essa imagem não foi totalmente
destruída.
Ele fez a distinção de
liberdade como livre da compulsão, do pecado e da miséria. Somos livres da
compulsão, mas não do pecado e da miséria. Não há compulsão externa. Outras
distinções dos calvinistas mais tardios referem-se à habilidade natural, mas
não à habilidade moral em direção a Deus.
Naturalmente o homem
pensa, quer e sente o bem, pois tem suas faculdades, que não foram perdidas. O
homem não consegue sozinho decidir a fazer a vontade de Deus, se não for pela
graça. Com isso, aproxima-se muito da doutrina católica novamente. Pode-se
perceber afastamentos e aproximações da doutrina reformada em relação à
doutrina católica.
Esse é um dado
importante da teologia reformada, pois Calvino distingue a necessidade e a
compulsão, enquanto os teólogos mais tardios fizeram a distinção entre a
habilidade natural contra a habilidade moral.
Quando Santo Tomás fala
do que permanece no homem após a queda, Calvino também admite que algo ficou, mas
é cuidadoso em afirmar que isso não é uma obediência piedosa, mas o sensus divinitatis. Outra distinção, que
ainda é um pouco diferente daquela de Lutero, é a liberdade em relação a Deus e
em relação a outras pessoas.
Enfim, a teologia
reformada ensina que o homem é o autor do pecado. Quanto à determinação de tudo
o que existe e a responsabilidade do homem, Michael afirma que esse paradoxo,
como chama, continuará na glória. Diferentemente, outros teólogos reformados esperam
que na glória isso será compreendido. Acima, já vimos que tal coisa não é
paradoxo, mas contradição, e que na glória compreendemos tudo o que for
necessário, certamente, pois veremos Deus como Ele é.
Ao que parece os
reformados não reclamam da exposição sobre a depravação total feita por Roger
Olson. Ele faz isso objetivamente, e não há o que objetar.
A objeção de que a
imagem de Deus não está somente na mente do homem, com referência a 1 Coríntios
11, 7 e Gênesis 1, 27, e na consideração e que a imagem é relativa à forma, o
que incluiria o corpo, Santo Tomás ensina que como a nossa renovação espiritual
consiste em revestir-se do homem novo, então nossa imagem de Deus está na
mente, conforme Efésios 4, 23-24.
A renovação que é o
revestimento do homem novo está atrelada à imagem de Deus. Na mente está a
imagem de Deus, e nas outras partes do homem há traços de Deus. A imagem de
Deus está no homem e na mulher, pois está na mente, onde não há distinção de
gêneros. Eis a explicação tomista (Summ. Theol. Prima Part, Q. 93, A. 6).
Desse modo, o cristão
católico deve crer na doutrina entregue pelo Senhor aos santos “” (Jd 3). Com
relação ao pecado original, esse assunto foi definido, com grande precisão, no
século dezesseis, quando a Reforma Protestante ensinava algo diverso sobre esse
ponto importante da fé cristã. Neste capítulo, continuaremos a ver o que é o
pecado original e em que sentido afetou a natureza do homem, considerando mais
argumentos.
A doutrina católica
ensina que pelo pecado original Adão perdeu a santidade e a justiça que vinha
de Deus, morreu espiritualmente, ficou sob o império do Demônio, e pela ofensa
de prevaricação sua natureza foi mudada no corpo e na alma para o pior. Esse
pecado é propagado a todo ser humano, pois pecamos em Adão. Todos pecaram (Rm
3, 23). O pecado original causou desordem na natureza, criando a
concupiscência.
A concupiscência é a
inclinação para o pecado, e é na Escritura algumas vezes chamada de pecado, não
porque seja um pecado como falta pessoal presente na natureza, mas porque é nascida
do pecado e leva ao pecado.
No nascido de novo não
há pecado original, apenas concupiscência. A concupiscência não poder ser
confundida com o pecado original. Ela provém do pecado original, é uma
consequência dele, e está sempre na natureza humana decaída. O pecado original,
por sua vez, é perdoado por Jesus Cristo, enquanto a concupiscência permanece.
Pelo pecado original o
livre-arbítrio não foi perdido. Entretanto, o livre-arbítrio foi atenuado,
enfraquecido, e escravizado pelo Maligno. Isso não significa que foi extinto. O
sistema reformado afirma a escravidão da vontade, no sentido de que o
livre-arbítrio é apenas um nome sem significado, como havia ensinado Lutero.
Afirma ainda, que a libertação da vontade a torna livre para obedecer a Deus,
mas não no sentido de que o livre-arbítrio tenha sido elevado a poder
contribuir com a graça.
Também não é verdade
que todas as obras que o homem faz, antes de ser salvo, sejam pecados. O que
Romanos 14, 23 afirma, por exemplo, é que tudo o que não é feito na fé é
pecado, entendo com isso que as obras que são feitas contrárias à fé, sem a fé
e em oposição a ela. Isso não significa que todos os atos dos não justificados
são pecados, mas que todos os atos feitos contra a fé, que não estão de acordo
com a consciência, são pecados.
Quem não discerne o que
está fazendo, peca. Existiu até mesmo a ideia de que as boas obras feitas pelos
justificados são pecados. Essas heresias foram condenadas no Concílio de
Trento.
Caso o leitor ainda
tenha dificuldade com essa noção acima referida, procure nas Escrituras alguma
passagem que afirme que tudo o que o ímpio faz é pecado. Imagine um ímpio
ajudando o próximo e fazendo-lhe o bem necessário para aquele momento. Depois,
pense que nessa ocasião o ímpio está pecando como se tivesse assassinado o
próximo. Não há razão que conceba tal coisa. E mais ainda, não há na Escritura
nenhum texto que ensine essa doutrina.
Alguns podem tentar
incutir essa ideia ao afirmar que sendo mau o coração do ímpio, todas as coisas
que dele fluem só podem ser más. O problema é que tal parecer não tem sua
expressão no sentido acima exposto, pois todos sabem os maus também podem fazer
social, cultural e humanamente boas obras. Não podem ser salvos por essas
obras, nem podem elevar-se para encontrar Deus por si mesmos, e não são capazes
de mudar o próprio coração sem a graça de Deus. Essa doutrina é bíblica, a
outra não.
Se com a afirmação de
que tudo o que o ímpio faz é pecado no sentido de que não tem valor espiritual
diante de Deus, tal afirmação não teria maior repercussão. Mas, quanto a dizer
que tudo o que faz merece o inferno, não há qualquer fundamento escriturístico
para isso.
Dessa forma, a natureza
humana foi radicalmente corrompida, de modo que o homem não pode por suas
próprias forças fazer algo agradável a Deus. A concupiscência corrompeu toda a
natureza humana. É como afirmar que toda a natureza humana está corrompida, mas
não está corrompida completamente.
De fato, podemos compreender as verdades religiosas, saber das verdades da fé. Também
podemos fazer atos moralmente bons.
Da mesma forma, podemos
conhecer a Deus com certeza pela razão. Por isso, não é correto afirmar que a
natureza foi totalmente corrompida. O Catecismo, no parágrafo 405, ensina que a
natureza humana “não é totalmente corrompida”.
Se assim fosse, a
natureza do homem teria uma essência de pecado, e não uma natureza manchada
pelo pecado. Já vimos que o mesmo Calvino vislumbrou isso e concordou que tal
coisa não é o ensino bíblico.
Para a teologia
reformada a razão e o entendimento estão cegos, e os sentimentos pervertidos.
Charles Hodge afirma que Adão foi “inteiramente e absolutamente arruinado”. No
sentido já esclarecido antes, tais afirmações são comportadas na doutrina
católica.
No entanto, a questão
não é fácil de ser resolvida, visto que as explicações católicas são sempre
negadas pelas teologias não católicas. Alguns chegaram a pensar que a Igreja
Católica negasse o pecado original, por afirmar que a concupiscência não
constitui o pecado. Então, o silogismo seria que (1) a concupiscência não é pecado
no homem nascido de novo, e (2) a regeneração não muda a natureza humana. Então,
a concupiscência não é pecado nos não regenerados.
Contudo, o que foi dito
acima desfaz essa confusão, porque a sã doutrina ensina que a concupiscência é
consequência do pecado, e não o próprio pecado. Dessa forma, a (1) concupiscência
não é o pecado em si, mas resultado do pecado original, e (2) o pecado original
é perdoado por Cristo. Então, os regenerados não têm o pecado original (mas
possuem concupiscência). Tudo faz sentido, e está conforme a doutrina bíblica. Pelo
menos uma das dificuldades está resolvida, o que doutro modo seria mostrada
como inconsistência doutrinal.
Voltando às Escrituras,
lemos Romanos 14, 23: “Mas, aquele que
come apesar de suas dúvidas, condena-se, por não se guiar pela convicção. Tudo
o que não procede da convicção é pecado.”
O que não “é de fé” é
pecado, diz a Escritura. Ou seja, seria pecado tudo o que não provem da fé. É
fazer errar aqui, considerando que os que não têm fé cometem pecado em tudo que
fazem, até quando tratam bem seus filhos, por exemplo, porque não possuem fé. É
uma leitura desastrosa. De fato, Jesus fala que os maus não dariam uma pedra
quando os filhos pedem pão (cf. Lucas 11,11).
Isso mostra que os maus
não pecam em tudo, mas fazem o bem. Já está elucidado acima, mas precisamos
sempre voltar a essas exemplificações. E diz nosso Senhor: “Se vós, pois, sendo maus, sabeis dar boas
coisas a vossos filhos, quando mais vosso Pai celestial dará o Espírito Santo
aos que lho pedirem.” Os maus fazem o bem, e o bem não é pecado.
Se o bem feito pelo
coração mau não faz do ímpio alguém agradável a Deus, o que é verdade, isso não
significa, porém, que a obra que faz seja sempre pecaminosa, mas que ainda que
em estado de pecado nem tudo o que o ímpio faz é desagradável aos olhos de
Deus.
Outra passagem que
mostra o pecado original, naqueles que já estão no uso da razão e pecam
voluntariamente, é Efésios 2, 1-4. O texto sagrado fala dos mortos em ofensas e
pecados, mostrando que isso é praticado pelos que estão mortos espiritualmente,
vivendo conforme o mundo, nos desejos da carne, seguindo a concupiscência,
sendo, “como os outros, por natureza,
verdadeiros objetos da ira (divina)”.
Essa comparação “como
os outros também”, como está na tradução Almeida Corrigida Fiel, mostra que se
trata dos que praticam o mal, e não dos que estão apenas com o pecado original,
como são os recém-nascidos, que ainda não praticaram o bem e o mal, e por isso
não estão ainda na categoria de objetos da ira, no sentido de que estão a
caminho do inferno antes que estejam aptos a fazer e pensar por si mesmos.
É por isso que a graça
de Deus é ofertada a todos, pois os que por natureza são filhos da ira,
nascendo nesse estado, serão de alguma forma iluminados para poderem responder
ao chamado de Deus.
Ainda
sobre a depravação total
O pecado original é o
pecado cometido por Adão e Eva, e também significa a consequência desse pecado
para o ser humano. É uma “mancha hereditária”, é o estado de pecado que foi
transmitido a todos os descendentes de Adão.
Santo Tomás afirma que
tudo tira sua espécie da sua forma. A espécie do pecado original é tirada da
sua causa. Toda a vontade do homem deve estar sujeita a Deus. A vontade é a
primeira e principal parte da sujeição a Deus, pois é a vontade que leva as
outras partes da alma a submeter-se a Deus. Se a vontade é desviada de Deus,
todas as outras partes ficam desordenadas.
Assim, “A privação da
justiça original” é o elemento formal do pecado original. Toda outra desordem é
o elemento material. Desviar-se para o bem mutável é a concupiscência.
Portanto, a concupiscência é materialmente o pecado original, que é formalmente
a privação da justiça original. O pecado original afeta todas as partes da
alma. Por exemplo, Santo Tomás fala da remoção da sujeição da mente do homem a
Deus como pecado original.
Dessa forma, a justiça
original consiste em que o homem está todo voltado para Deus, na sua vontade em
obedecer a Deus, na sua inteligência em querer conhecer a Deus, e em todas as
suas partes interiores. Uma vez perdida essa justiça original, todas as partes
da alma são desordenadas, a começar pela vontade, passando pela mente e as
paixões, todas sendo desviadas do fim que é Deus.
Portanto, estar sem a
justiça de Deus causa a desordem das paixões humanas, a começar pela principal,
a concupiscência, levando todas as demais. Assim, a concupiscência é também materialmente
o pecado original (ST, Q. 82, art. 2; art. 3, r. 3), o que está conforme a
Sagrada Escritura.
O bem da natureza
consiste nos (a) princípios da constituição da alma, nas propriedades e potências
da alma, (b) homem tem inclinação da natureza para o bem, e (c) a justiça
original.
O pecado diminui o bem
da natureza. No primeiro tópico não há o que mudar com o pecado original, pois
a constituição da alma permanece a mesma.
No terceiro tópico há
uma destruição total, pois o homem perdeu a justiça original. Perdeu a justiça
completamente.
No segundo tópico há
uma diminuição radical, pois a inclinação para o bem foi desordenada.
Essa é em termos gerais
a explicação de Santo Tomás para o efeito do pecado original na diminuição do
bem na natureza do homem.
Ele trata também da
fraqueza, da ignorância, da malícia e da concupiscência. A razão tem em si a
prudência, a vontade tem a justiça, o irascível a fortaleza, o concupiscível a
temperança.
Com a desordem na razão
vem a ignorância, na vontade vem malícia, no irascível vem a fraqueza, no
concupiscível vem a concupiscência (Sum Theol. Q. 85, art. 3).
Esclarecendo
sobre a depravação total
Embora a total inabilidade
da natureza humana seja dita como objeto da ira, inadequada para a graça,
inclinada ao mal, morta em pecados, escrava do pecado, como está no artigo 3 do
Sínodo de Dort, afirma também, no artigo 4, que há certa luz de natureza, mesmo
após a queda. Isso foi também expresso por Michael Horton. Com visto, esse
ensino está igualmente na doutrina católica acima referida.
Então, o homem tem
noções sobre Deus, sobre as coisas naturais, sobre a diferença entre bem e mal,
e possui o desejo para o bem, embora isso não seja suficiente para chegar à
salvação. Porém, a teologia reformada nega o livre-arbítrio, que teria sido
extinto no pecado original.
No entanto, mesmo que
não afirmando que a liberdade do homem seja forçada ou determinada ao bem ou ao
mal, mas que o homem faz o mal livremente, e que na salvação pela graça o homem
é libertado do pecado, mas continua nele a corrupção do pecado, é preciso
entender mais, para conhecer a doutrina reformada ou calvinista. Isso se deve
ao fato de que essas afirmações também estão na doutrina católica, mas possuem
significados diferentes.
Isso pode ser feito
pelo contraste com alguns pontos da doutrina católica. Aliás, é certo afirmar
que os reformados creem que o homem e a mulher são determinados a fazer tudo o
que fazem.
Afirmando esse tipo de
liberdade, o cristão reformado tenta livrar-se da acusação de determinismo
moral e de fatalismo. No entanto, no seu debate com o arminianismo a doutrina
reformada nega a habilidade do homem de recusar a graça. Como visto, nega até mesmo
a cooperação com a graça.
O silogismo arminiano
seria que o homem pode aceitar e recusar a graça. Assim, se ele cooperar será
salvo e se não cooperar será condenado.
Para o reformado,
então, o homem pode afirmar que é mais justo que o seu próximo por ter feito a
coisa certa, e tem algo para gloriar-se.
E como a Sagrada
Escritura afirma que somos salvos gratuitamente pela graça, e ninguém pode
gloriar-se (cf. Ef 2,8-9), o reformado rejeita essa doutrina arminiana.
Por isso, a doutrina
reformada ensina que o homem não pode recusar a graça e que Deus põe a fé no
coração, liberta e inclina o homem para Cristo. Dessa, o homem é eficazmente
salvo, e não pode gloriar-se, pois o ato é somente de Deus. Essa doutrina será
analisada mais adiante.
Antes, porém, pode ser
dito que o eleito, caso quisesse gloriar-se, à moda do que aparece nas críticas
aos arminianos, ele poderia afirmar que foi salvo por pura graça, não teria
nada a oferecer para alcançar a salvação, mas ainda assim jactar-se-ia por ter
sido um dos perdidos que foi eleito, e agora podia para sempre experimentar a
graça de Deus, enquanto outros pecadores iguais a ele não o foram.
Até o momento ficou
claro que a base para a recusa reformada da resposta livre ao chamado salvífico
está na gratuidade da salvação, expressa em Ef 2, e que a aceitação livre seria
algo que serviria para a glória do homem. Tais afirmações serão analisadas mais
detidamente. Mas, podemos já perceber que essa objeção não procede.
A ideia de que o homem
vai a Cristo, livremente, mas deve ser compelido a ele, do contrário não irá, e
que Deus deve atrair, no sentido de arrastar o homem a Cristo, é algo que pode
ser entendido como contra a vontade, embora o calvinismo afirme que Deus muda a
vontade do homem de modo que ele queira ir.
A vontade livre de
coerção seria escrava do pecado. Então, Deus efetivaria algo na vontade. Deus
venceria nos eleitos a resistência à graça. Desse modo, torna-se impossível
resistir à graça finalmente, pois ela sempre vence e é eficaz. O homem pode
resistir, e frequentemente resiste, até que eficazmente é transformado e levado
a Jesus.
Por isso, Charles
Spurgeon afirma que a liberdade é auto-determinada. Ninguém exerce coerção
sobre a vontade do homem, mas ele mesmo faz o que quer fazer. Estando o homem
morto em pecado, sua escolha é sempre contra Deus e a graça divina.
Será que o homem pode
ou não recusar a graça? Poder aceitar livremente constitui fundamento para
gloriar-se? São essas perguntas que devem ser feitas, mas com frequência
reformados não são convencidos pelas respostas: o homem pode recusar a graça, e
o simples gesto de receber um presente não é fundamento de mérito! Ninguém pode
jactar-se de ter sido salvo gratuitamente. E isso faz sentido. Mas, não é só
por isso que a doutrina reformada é refutada.
O reformado não pode
afirmar que um mendigo estendendo a mão para pegar um prato de comida possa
gloriar-se diante daquele que recusou o alimento. A base da questão está
estabelecida. Doutro modo, deveria aceitar que o eleito poderia cair nessa
jactância.
Pelo contrário, sabemos
que o homem pode agir livremente porque não perdeu o livre-arbítrio. Se ele não
o perdeu, está no dever de responder à graça de Deus, afirmando e aceitando ou
negando e recusando. A graça vivifica, atrai, liberta, capacita o homem para
que responda ao chamado. Essa graça é suficiente, e uma vez que é aceita pode
tornar-se eficaz. Ainda assim, o homem continua livre, cooperando com a graça.
Spurgeon afirma que
antes da conversão somos livres para pecar, e após a conversão somos livres
para pecar e obedecer a Deus. Agora, como pode o ser humano ser livre para
pecar e ser impossibilitado de pecar a ponto de cancelar a relação com Deus?
Como o pecado é
possível após a regeneração, justificação e salvação quando não há
possibilidade de cair da graça? De fato, afirmar que o homem não pode recusar a
graça revela a premissa errada. Então, todo o edifício cai. Portanto, o homem
tem livre-arbítrio.
Se a liberdade de
coerção é a única que o homem possui, segundo Charles Spurgeon, então deve-se
responder com Santo Afonso, que essa liberdade até as bestas possuem. Os
animais fazem o que querem, segundo seus instintos, não sendo levadas a nada
senão sua própria inclinação.
O livre-arbítrio é a
condição de poder fazer e deixar de fazer, fazer qualquer coisa e também o
oposto, o bem ou o mal. Só não pode escolher a Deus se não for auxiliado pela
graça.
Outra verdade que deve
ser bem entendida é que Deus é a causa primeira de tudo o que existe, e o homem
é causa secundária. Assim, o homem pode produzir ações a partir de si mesmo,
pois lhe foi dada por Deus essa liberdade.
No entanto, Deus é
soberano absoluto de todas as coisas, e age em toda ação humana. Isso é
profundo: Deus age em todos os atos humanos, mas não causando os atos humanos.
Ele age no homem quando o homem faz o bem, aperfeiçoando e orientando sua
bondade, que é efeito da graça e obediência.
Mas, quando o homem
peca Deus age usando seu próprio pecado para punir e também para transformar
sua maldade em um bem. As duas ações, a de Deus e a do homem, coexistem. Deu
pode efetuar o bem, não interferindo no livre-arbítrio humano.
No entanto, Deus não
efetua a ação má no homem, pois isso é impossível por causa da Sua santidade.
Nem determina atos morais maus. Ele pode agir no homem enquanto esse faz um ato
mal, sendo responsabilidade única do homem, enquanto a parte de Deus é punir e
fazer do mal um bem.
Desse modo, quando os
irmãos de José venderam-no para os ismaelitas, Deus agiu ao mesmo tempo
orientado aquela maldade para um bem, levando José ao Egito para que
futuramente salvasse seu povo. Deus não foi o determinante da ação de vender
José. Foram os atos livres, partindo dos irmãos de José. Deus agiu ali para
determinar o resultado segundo Seu plano. As ações de Deus são sempre para o
bem.
Quando o Faraó
endureceu o coração, Deus agiu ali também fazendo com que aquele pecado,
endurecendo o coração como punição, pois o Faraó já era um homem de duro
coração, para que servisse para a libertação do povo. E assim aconteceu. Deus
não proibiu a conversão do Faraó, já que esse não queria aceitar a graça. Ele
apenas deferiu o que o Faraó já estava praticando.
Em 2 Timóteo 2, 25-26
está escrito: “É com brandura que deve
corrigir os adversários, na esperança de que Deus lhes conceda o arrependimento
e o conhecimento da verdade, e voltem a si, uma vez livres dos laços do
demônio, que os mantém cativos e submetidos aos seus caprichos.”
Primeiro vem a
correção. Depois, esperar que Deus conceda a graça do arrependimento e o
conhecimento da verdade. Então, assim libertado, o homem poderá responder. Tudo
isso supõe o livre-arbítrio (possibilidade de correção) e a graça (esperança em
Deus). É possível também ler essa passagem sob a ótica reformada. A correção é
usada como instrumento da graça de Deus. Assim, o ato soberano da graça liberta
o homem.
Essa leitura reformada concorda
com a doutrina católica de que o homem sozinho, pelas próprias forças, não sai
dos laços e do cativeiro do Maligno. Concorda que o homem responde livremente.
Concorda que uma vez liberto poderá servir a Deus, mas ainda poderá cometer
pecados. Discorda, porém, que poderá perder a graça.
Negando o
livre-arbítrio essa é a consequência: de escravo do Demônio o homem passa a ser
escravo de Deus, não no sentido cristão católico, mas como escravo que não pode,
ainda que pecando gravemente, sair da comunhão com Deus, pois o ato soberano
divino teria determinado essa condição de eleito e salvo para sempre, e
garantiria a conversão, a reabilitação do pecador antes da morte.
Mas, o livre-arbítrio é
expresso em 1 Coríntios 7, 37, afirmando
“sem nenhum constrangimento e com
perfeita liberdade de escolha”, e também em
1 Cor 15, 10. São Paulo fala do “seu” trabalho, e o atribui à “graça”,
mas volta a esclarecer novamente que é “a graça de Deus comigo”. A graça de Deus e o apostólico trabalhando juntos.
Além de falar da ação
humana e da graça, cooperando, sinergisticamente, afirma a possibilidade da
graça ser vã: “a graça que ele me deu não
tem sido inútil”. Essa noção só é possível reconhecendo o livre-arbítrio.
Como ensina Santo Afonso de Ligório, Deus quer que trabalhemos um pouco. No
artigo que trata da eleição incondicional o livre-arbítrio será mais uma vez
comentado.
Da mesma forma, 2
Coríntios 6, 1 exorta a não deixar a graça de Deus em vão, o que só é possível
se o homem pode de alguma forma oferecer resistência à graça e não praticar o
que seus efeitos o inclina a praticar: “Na
qualidade de colaboradores seus, exortamo-vos a que não recebais a graça de
Deus em vão, referindo-se à salvação, com “o tempo favorável” e “o dia
da salvação”, pois “agora, é o dia da
salvação”. O contexto é soteriológico. O mesmo em 1 Coríntios 5, 20 onde a
reconciliação com Deus é pedida ao homem: “Em
nome de Cristo vos rogamos: reconciliai-vos com Deus!”.
Para realçar e provar
ainda mais essa verdade, façamos a exegese de uma passagem do livro de Hebreus,
capítulo 10, onde temos um grande ensinamento sobre o sacerdócio de Cristo, o
sacrifício salvífico, a nova aliança. Nesse ensino todo, há uma verdade que os
cristãos católicos creem e anunciam, e que tem a ver com a salvação e o perigo
de perdê-la pela recusa de continuar seguindo a Cristo, pela deserção da
Igreja, pelo pecado mortal.
Isso está claramente
ensinado nos versículos 26 a 39, um grande contexto sobre essa verdade. “Se
abandonarmos voluntariamente, já não haverá sacrifício para expiar este pecado”.
Eis uma admoestação ao Povo de Deus. Se alguém abandona por sua própria vontade
o convívio com Cristo, já não há fora da Igreja nenhum sacrifício capaz de dar
o perdão dos pecados. A passagem é cristalina ao afirmar que há possibilidade
de sair do convívio com Deus pelo voluntário abandono. É o fiel que pode
decidir isso, e não Deus que o afasta.
Continuando essa
verdade, o versículo 27 fala do “juízo
tremendo e o fogo ardente que há de devorar os rebeldes”. A recusa em
continuar é uma rebeldia. Somente por vontade própria, por um coração rebelde,
o fiel pode negar a graça. Ainda, o autor compara a transgressão da Lei de
Moisés, que era punida com a morte, e afirma que existe pior castigo para quem “calcar aos pés o Filho de Deus”.
Assim, o abandono
voluntário, a rebeldia, o calcar o Filho de Deus, significam a mesma coisa, e o
castigo é pior que a morte. Com essa afirmação sagrada refuta-se a doutrina que
nega o fogo do inferno, afirmando o aniquilamento dos ímpios, pois se o castigo
é pior que a pena de morte, infere-se que esse fogo devorador é um castigo
espiritual tremendo, e não parece ser temporário. Mas não é o lugar de tratar desse
pormenor.
Ainda, o mesmo verso 29
afirma o pecado de “profanar o sangue da aliança, em que foi santificado”. É o
cristão que foi santificado pelo sangue de Cristo e volta atrás. “E ultrajar o
Espírito Santo, autor da graça”. Calcar os pés a Cristo, profanar Seu sangue,
ultrajar o Espírito Santo, é o mesmo pecado mortal. É importante notar que a
Escritura afirma que o sangue “em que foi santificado”, no qual foi
santificado. Trata-se de verdadeiros cristãos que receberam a salvação, o
perdão dos pecados pelo sangue de Jesus, e foram iluminados pelo Espírito
Santo, com a graça que dom de Deus.
A passagem inteira
mostra que o afastamento dessa bênção salvífica é possível. Continuando, o
texto esclarece ainda mais quando diz que “o Senhor julgará o Seu povo”. Não
está falando do mundo, dos ímpios, dos incrédulos, dos infiéis, mas do Seu
povo.
Aqui é refutada a
doutrina dispensacionalista de que há a Igreja e o Povo de Deus, como se fossem
distintos, que seria somente o judaísmo, como já foi refutado em outra parte ao
estudar uma passagem da epístola aos Romanos, pois existe somente um Povo de
Deus.
Também não é correto
afirmar que nesse tempo a salvação será pelas obras, e por isso há
possibilidade de perder a graça salvífica e ser condenado, pois a Escritura
fala somente de uma nova aliança, definitiva, sem qualquer mudança de plano
salvador.
Essas são tentativas de
fugir das implicações do texto, já que ele é claro ao afirmar que é possível
perder a salvação.
O verso 32 diz:
“Lembrai-vos dos dias de outros, logo que fostes iluminados”, o que evidencia a
salvação, e o verso 35 fala da necessidade da perseverança “para fazerdes a
vontade de Deus e alcançardes os bens prometidos”.
Trata-se de bens
eternos, da salvação. Não há lugar para duas leituras, com se fossem oferecidos
bens temporais para um plano, e bens eternos para outro, como quer uma
interpretação dispensacionalista.
Nem significa somente
galardão pelas obras, distinto da salvação. O contexto mostra que é da salvação
que o autor sagrado está falando. E continua, deixando muito claro para o que
deixa a fé, e que perde o agrado de Deus, pois contrasta-se a ruína e a
salvação. Perder o ânimo, desistir, deixar a fé e ir para a ruína, ou manter a
fé para a salvação. Não poderia afirmar que os que caem na ruína estão salvos
como os outros, pois não é uma leitura possível, como quer o
dispensacionalismo.
Também não significa
uma mera aparência de fé, de falsos cristãos, que apostataram aparentemente,
pois nada disso é dito no contexto. A passagem é claramente uma admoestação da
possibilidade de perder a graça da salvação.
O reformado dirá que a
possibilidade apresentada no início é apenas um artifício retórico, e que o “se a abandonarmos voluntariamente” não
pode jamais existir, porque o eleito não abandona nunca, ou se abandona ele
volta e persevera.
Essa interpretação vem
de outra fonte e não do texto sagrado, vem das inferências reformadas de
passagens já comentadas acima, que serão estudadas mais adiante, e contradiz
todo o contexto, que é claro por si, com foi mostrado acima. Não há nada na
passagem que afirme isso, e as intepretações refutadas surgiram certamente, em
parte, para livrar-se desses ensinos claros sobre a apostasia e o pecado
mortal.
Com essa verdade, não
se nega o dom da perseverança final, não se nega a eleição e a predestinação
para a salvação, mas ensina-se que há livre-arbítrio, há possibilidade de cair
da graça e perder a maior das bênçãos, que é a salvação, e, portanto, pode
haver verdadeiros crentes que voltam atrás e negam a fé.
O
livre-arbítrio e a explicação de R. C. Sproul
Uma afirmação
calvinista é que a expiação ilimitada leva ao universalismo. Assim, se (1)
Cristo morreu por todos (2) a salvação é eficazmente dada na cruz, então (3)
todos serão salvos. O problema é que a premissa 2 não é correta, pois a
salvação é aplicada no momento em que o homem crê. Algo importante, que Olson
trata no livro Contra o Calvinismo.
O correto é afirmar que
(1) Cristo morreu por todos e (2) a salvação será dada a todo o que crê, então,
todo o que crê será salvo, posto de forma bastante simples.
Esses raciocínios
mostram como o calvinismo está sempre ajustando os dados bíblicos num sistema
lógico e coerente, como de fato é o modo correto de proceder, de forma que,
quando a crítica ao sistema for feita pelo mesmo meio, ninguém possa alegar que
a razão não seja instrumento capaz de demonstrar um erro que está sendo
ensinado, ainda mais quando feita por meio dos dados da revelação da Bíblia e
com as luzes do Espírito Santo que todos devemos pedir.
O teólogo R. C. Sproul
explica o que é contradição, paradoxo e mistério. Portanto, o calvinismo
entende bem o que é a lei da lógica, o que é contradição aparente e o que é
mistério. Por isso, quando se trata de mostrar qualquer inconsistência na
teologia reformada é esperado que o leitor não ache que são métodos alheios à
doutrina reformada ou que não possa ser aplicados, porque é o que a própria doutrina
aplica, aliás, é o que o ser humano tem para entender tudo o que existe, a
saber, a razão e a fé.
Uma afirmação de
Sproul, de que Deus não deve a salvação a ninguém e que a misericórdia de Deus
é voluntária podem ser julgadas. É verdade que Deus não deve nada a ninguém. É
verdade que a misericórdia de Deus é voluntária. Como isso é aplicado em casos
reais também é esperado que esteja de acordo com o Ser de Deus, com Sua
santidade e Sua justiça. Caso isso não ocorra, a doutrina é falsa. Assim,
terminemos esse exemplo com a questão profunda da predestinação e do
livre-arbítrio, conforme mostrada por Sproul, porém de forma resumidíssima.
O autor afirma que a
soberania de Deus e a liberdade do homem não são contraditórias. E no capítulo
seguinte trata da questão de perto.
Primeiro, a definição
de livre-arbítrio dada é que “é a capacidade de fazer escolhas sem nenhum
preconceito, inclinação ou disposição anteriores”. Pode-se afirmar que autor
julga a questão assim: se o homem faz (1) escolhas sem nenhuma razão e (2) são
totalmente espontâneas, então suas escolhas não têm significado moral.
Sproul vai buscar as
definições dos pensadores cristãos. Começa com Edwards com “a escolha da
mente”, o que não oferece resolução para Sproul, depois “a capacidade de escolher
o que queremos”, o livre-arbítrio sem liberdade de Santo Agostinho. Resume que “é a capacidade de fazer escolhas de
acordo com os nossos desejos”. Esse tema já foi tratado em artigos sobre a
doutrina reformada.
A realidade de
livre-arbítrio é inegável. Todos a podem experimentar e constatar, pois é um
fato evidente. No entanto, há aqueles que preferem usar de outros termos para
falar dessa realidade, como visto antes sob a forma da livre agência. Esses
afirmam que de fato o homem tem a livre escolha, e faz constantemente escolhas
morais sem coerções. No entanto, esses mesmos afirmam que a vontade livre é
determinada, ou seja, que os motivos que se apresentam à vontade sempre estão a
determinar-lhe a escolha. Assim é que Robert Charles Sproul, teólogo calvinista
de renome e grande influência, ensina que a liberdade é determinada. Em outras
palavras, ele ensina que as escolhas que o homem faz são determinadas por seus
desejos, pois, pelos desejos mais fortes, ou as inclinações mais fortes do
momento, é que faria a vontade escolher.
Dessa forma, se o homem
escolhe o que quer, ele é livre, mas se as escolhas são determinadas pelos seus
desejos mais fortes, trata-se de uma liberdade determinada. A vontade neutra é
algo irracional, frisa o teólogo, pois sem motivos não haveria ação. Afirma
também que é algo anti-bíblico. Sproul afirmou que se o livre-arbítrio limita a
soberania, essa ideia torna o homem soberano. Ao invés, afirma que é a
soberania que limita a liberdade do homem.
Por tudo isso, os
reformados estão sempre afirmando que o livre-arbítrio é uma ilusão, algo
perdido, um mero nome, como ensinaram os reformadores do século dezesseis. Essa
doutrina é algo que está sendo preservado com toda a força na tradição
reformada.
A doutrina católica,
por sua vez, prova o livre-arbítrio, mas mostra que aquilo que os deterministas
estão afirmando como razões deterministas têm na verdade outra natureza. Eles
erram ao considerar fatores que limitam ou até destroem, às vezes, o
livre-arbítrio como se esses fossem prova da inexistência do livre-arbítrio.
A liberdade pode ser
condicionada, pode ser perdida em momentos vários, pois há fatores inumeráveis
que influem nela. A inteligência necessita de estado propício para poder
refletir livremente, e há tantos momentos em que isso não pode ser alcançado,
impedindo a liberdade. No entanto, essa existe. O que acontece nesses casos é
algo que a atrapalha, a previne, a impede, a torna impotente. Mas ela existe.
Não são essas circunstâncias algo que provam a inexistência da liberdade, mas,
pelo contrário, mostram a sua realidade, e explicam porque ele está impedida de
ser exercida.
A sensibilidade também
precisa de meios adequados para exercer a liberdade, e pode sofrer com tantas
situações onde essa liberdade é diminuída ou mesmo impedida. No entanto, isso
não é provar que o livre-arbítrio não exista, mas reconhecer que há fatores que
o prejudicam. Casos de grande gravidade e força que se irrompem sobre o homem
neutralizando seu livre-arbítrio são exemplos extremos e não a normalidade da
vida. São vários fatores que influem no exercício do livre-arbítrio, mas nenhum
o destrói por completo, nenhum pode ser apresentado como prova da sua
inexistência. Certamente é isso que faz Robert Sproul. Ele apresenta, em outras
palavras, o exemplo do sorvete e de querer continuar com uma dieta. O que for
maior na hora da decisão é que determinará a escolha. E afirma: “É simples
assim”. Isso é determinismo. Ele negou a liberdade de escolha por colocar o
poder no desejo mais forte para determiná-la. Se tomou o sorvete é porque o seu
desejo maior naquela ocasião foi pelo sorvete. Se não o tomou foi devido ao seu
desejo de ser magro ter sido maior que sua atração pelo sorvete!
Mas, o que isso
demostra é que o homem está fazendo escolhas livres, e que os motivos que
aparecem na sua mente são passíveis de deliberação, e que ele faz escolhas sem
coerções, usando seu livre-arbítrio. Não está provando o determinismo, porque o
desejo mais forte foi atendido, mas está provando a escolha que o homem fez
livremente. Tudo o que for escolhido será dito que foi o desejo mais forte.
Talvez isso seja um petittio principi.
Porém, isso não está de acordo com a realidade. É muito comum que uma escolha
voluntária seja feita contra os desejos, causando sentimento de descontentamento,
sendo feito por motivos de consciência, sem quaisquer outros fatores
determinantes, onde o indivíduo vê-se no uso de sua liberdade para aquela
escolha que, ainda assim, não o agrada.
De fato, o sorvete
poderá ser escolhido uma vez, porque o desejo de tomá-lo venceu, porque foi
escolhido, outra vez porque não houve desejo de tomá-lo por estar indisposto,
ou por qualquer outro motivo. Mas, ainda assim poderia ser tomado mesmo com
indisposição.
Outra vez poderá estar
muito ocupado, e ainda que o sorvete esteja à sua frente ele pode não querer
tomá-lo, por querer continuar com seus afazeres, ou pode tomar o sorvete
enquanto faz os seus afazeres, etc. Em todos os exemplos o motivo não
determinou a escolha, o desejo maior foi o que o homem quis escolher, porque
quis assim, e não o que impôs-se a ele para que a escolha fosse feita. Os
motivos e desejos não impõem as escolhas. É a vontade que, por meio da
deliberação dos motivos, escolhe. É por isso que é possível negar os desejos! É
por isso que os motivos podem ser inúmeros, e as ações indeterminadas! De fato,
o que Sproul mostrou não prova a liberdade determinada. Pelo contrário, prova o
livre-arbítrio. O livre-arbítrio age por motivos, e em circunstâncias normais é
livre para escolher o que mais lhe agrada, ou o que quiser, ainda que não lhe
agrade, ou deixar de escolher.
Na conversão, Deus dá a
graça para habilitar o homem a responder, para poder escolher livremente, e
assim ser justificado. A graça atual vem para preparar o homem para a
justificação, santificação e regeneração.
Continuando, ainda
pode-se usar de mais tempo para esclarecer esse tema tão controverso. Antes de
uma ação, o homem pode deliberar entre diferentes escolhas possíveis, e fazer a
escolha que julgar que deve fazer, ou decidir por uma das que vieram à sua
consciência por qualquer motivo que julgar mais apropriado, de forma que ele
realiza o ato segundo o que for da sua vontade. Faltando isso, ele não foi
livre. Se o motivo o determinou não houve liberdade.
Dessa forma, o fato
somente é determinado quando ocorrido. Assim, ele já não muda mais. Entre uma
escolha ou outra é o sujeito que decide, e não há no objeto apresentado nada
que determine sua escolha, nem seus desejos e inclinações interiores podem
levar ao ato de forma determinante.
Afirmar que o homem
sempre escolhe agir segundo a inclinação mais forte do momento é um petitio principii, como dito acima, pois
é o mesmo que afirmar que a inclinação é a mais forte porque ele a escolheu e a
tornou um ato, pois ele sempre escolhe a inclinação mais forte. O raciocínio
não prova nada. Se ao fazer qualquer escolha livre o homem age sem coerção
interna e externa, e escolhe livremente aquilo que mais o interessou no momento
for um argumento para negação do livre-arbítrio, então tudo isso não passa de
jogo de palavras, já que nada mudou na realidade.
Ainda, mesmo em Deus, o
Senhor absoluto da história, se usado essa argumentação de que Deus escolhe o
que vem à sua inteligência com maior força, necessariamente, então estaria com
isso negando a liberdade de Deus, o que é um absurdo.
Do mesmo modo, com tal
argumento estaria também negando não só o livre-arbítrio em relação à coisas
santas de Deus, à salvação, à união com Deus, mas não haveria livre-arbítrio
para absolutamente nada. O homem seria o escravo mais feliz, pois está sempre
escravizado por suas inclinações, e não vê nada forçando-o a fazer suas
escolhas que, na maioria das vezes, lhe trazem bem-estar. É uma forma de
argumento que volta-se contra tudo o que a teologia reformada propõe quando
fala da resistência à graça.
O homem poderia agir
livremente ao fazer escolhas morais, nas coisas referentes às suas atividades
terrenas, e não poderia responder à graça. Mas, como visto, mesmo às atividades
mais corriqueiras estaria escravizado pelas suas inclinações mais fortes a cada
momento. Por isso, quando a graça tocasse o homem ela apenas apresentaria uma
força maior dentre as demais inclinações que ele tinha então, e por isso ele o
estaria respondendo “livremente” como responde a tudo o que existe, sendo a
única diferença que nesse caso estaria escolhendo o que foi apresentado a ele
por Deus. Seria escravo antes e depois. Da mesma natureza seria a escolha de um
sorvete de morango com a escolha da graça. Essa doutrina não se encontra na
Bíblia Sagrada. A Bíblia mostra o homem como ser racional que se dirige com
motivos, com razões, e justamente nisso consiste o livre-arbítrio.
Na verdade, o apelo da
graça é um motivo apresentado ao pecador para que ele escolha livremente,
podendo de alguma forma rejeitá-lo, fazendo escolhas erradas. O livre-arbítrio
não é confundido com os gostos pessoais. Ninguém é livre para gostar de maçã,
mas há liberdade para comer maçã. Quem gosta de maçã não consegue não gostar,
mas ele pode comê-la ou não, ainda que tenha vontade para isso. Ou pode também
comê-la ou não ainda que sem vontade no momento. Parece que às vezes há
exemplos que identificam liberdade com gostos, o que é algo errôneo.
Ainda, é da experiência
humana que é possível alguém que não goste de maçã passe a gostar depois de
algum tempo comendo maçã. Isso não é garantido, mas existe a possibilidade, o
que prova que os gostos podem mudar. O livre-arbítrio é de outra natureza, e
faz parte do ser racional.
Para mais um exemplo,
animais podem aprender a gostar de alimentos que naturalmente não comeriam.
Cachorros podem beber sucos, refrigerantes, comer doces, frutas, etc., embora
não seja esperado que naturalmente gostem de tais coisas. Para dizer o mínimo,
dificilmente deixarão de gostar de carne. E cachorros não são livres, mas
seguem os seus instintos. A discussão da liberdade não pode estar no campo das
preferências individuais ou da espécie. Por exemplo, o cão não está livre de
gostar de carne, pois é da natureza canina ser carnívoro. No entanto, ele
prefere a carne livremente no sentido de não ser coagido a tal escolha. Isso é
afirmado somente para fins de reflexão, visto que o estudo aqui trata as
objeções a partir da Palavra de Deus, a Bíblia, e raciocina a partir dos dados
inspirados.
Gledson Meireles.