Le Goff inicia sua obra aludindo às controvérsias surgidas no
tempo da Reforma a respeito do purgatório, e introduz as palavras de Lutero que
chama o purgatório de o terceiro lugar, o que seria, como mostra Le Goff, o
lugar “inventado” [com aspas no original]. Prestemos atenção: o historiador usa
de ênfase para falar da suposta invenção do purgatório.
Para começar, o historiador faz sua pesquisa desde as raízes:
“Proponho-me seguir a formação desse terceiro lugar desde a antiga fé
judaico-cristã, (...)”. (p. 15) Essas raízes, portanto, estão na fé de Israel e
na fé da Igreja. Lá começa a formação da doutrina.
Muitos querem vê-la brotar do paganismo, da imaginação, da
criação tardia. Mas não. Está radicada na fé judaico-cristã. E o lugar que essa
doutrina tem com as culturas do paganismo não tem a ver com sua substância, mas
antes, através apenas de matizes pálidas e acidentais. Isso significa que há
semelhanças, podendo haver até pontos de contato, mas não está enraizada no
paganismo, não nasceu de doutrina pagã.
É importante saber que Le Goff mostra o aparecimento do
purgatório na Igreja oficial, afirmando que essa doutrina foi negada pelos hereges
do seu tempo: “Tentarei por fim explicar por que razão ele está intimamente
ligado a esse grande momento da história da cristandade e como contribuiu de
maneira decisiva para ser aceite - ou, entre os hereges, recusado - no seio da
nova sociedade saída do desenvolvimento prodigioso dos dois séculos e meio que
se seguiram ao ano mil.” E a recusa de aceitar o purgatório é uma constante
entre as heresias. Alguns dirão que os cristãos que estavam à margem da Igreja
oficial é que seriam os cristãos “bíblicos”, e que negando o purgatório
estariam certos em sua posição. Essa tese não é respaldada pela história, e Le
Goff não entra nesse âmbito para tratar do pensamento herético sobre a questão.
Porém, vemos as heresias serem o lugar onde o purgatório foi negado. Isso é
importante frisar.
A obra trata da estrutura mental do espaço e do tempo com
relação à formação da doutrina do purgatório durante séculos, até sua expressão
definitiva, a qual chama o “nascimento”, que dá-se entre 1150 a 1200. Ali teria
acontecido “o aparecimento de uma tal crença” (p.16) Escreve Jacques Le Goff: “Foi
como «terceiro lugar» que o Purgatório se impôs.”
Depois, Le Goff afirma que o Cristianismo escolheu o modelo
dualista para entender o mundo do além. E entre os que temiam o inferno estão
também os judeus: “Apesar das belas aspirações ao Céu, os Antigos - Babilônios
e Egípcios, Judeus e Gregos, Romanos e Bárbaros pagãos - haviam temido as
profundezas da terra mais do que ansiado pelos infinitos celestes, aliás muitas
vezes habitados por deuses coléricos.”
O Cristianismo “elevou a sociedade em direção ao céu” e
privilegiou o pensamento do sistema “alto-baixo” para simbolizar e apresentar o
céu e o inferno. (p. 17)
“Na Idade Média, este sistema irá orientar, através da
«espacialização: do pensamento, a dialéctica essencial dos valores cristãos.”
Parece que Le Goff está afirmando o seguinte: aquilo que a
Igreja ensinava no primeiro momento de sua existência será expresso sob uma
forma diversa, a de um espaço, no período medieval. É uma maneira diferente de
expor o que já estava sendo apresentado no início, sob moldes diversos.
Entre o “segundo e o quarto séculos” houve a elaboração
mental dessa doutrina. Tem-se assim que os elementos bíblicos foram formulados
e deram maior entendimento ao fato da purgação pós-morte: “Quando, entre o
segundo e o quarto séculos, o cristianismo, menos fascinado pelos horizontes
escatológicos, se pôs a reflectir na situação das almas entre a morte
individual e o Julgamento Final e quando os cristãos pensaram - é, com os
cambiantes que se verão, a opinião dos grandes Padres da Igreja do século IV,
Ambrósio, Jerónimo e Agostinho - que as almas de certos pecadores poderiam
talvez ser salvas durante esse período, sofrendo provavelmente uma provação, a
crença que assim surgia e faria aparecer o Purgatório no século XII não
conseguiu localizar com precisão essa situação e essa provação.”
A ênfase então é que nesse momento da história da Igreja não
aparece o “lugar” para essa possível purificação da alma individual antes do
juízo final, não localizando essa situação nem essa provação. A crença surgiu
aí, entre os séculos segundo e quarto, elaborada pelos cristãos a partir de
elementos bíblicos, pois Le Goff afirma que nesse tempo o cristianismo estava
menos interessado nos acontecimentos escatológicos. É preciso essa compreensão
para entender o empreendimento de Jacques Le Goff, pois o mesmo vê a fé no
purgatório já nos primórdios do Cristianismo, ainda que proponha a maior
exatidão dessa crença no século 12. Então afirma: “Até ao fim do século XII, a
palavra purgatorium não existe como
substantivo. O Purgatório não existe".”
Está tratando do termo purgatório, e não da doutrina.
A crença no purgatório foi um fenômeno lento, que durou
séculos para em um determinado momento, “repentinamente ou quase”, emergir e
efetuar sua expressão: “para emergir e para dar testemunho.” (p. 17) É o estudo
sobre o aparecimento do substantivo, tratando do “processo de espacialização do pensamento”.
Ao falar do “espaço” ele afirma sobre sua noção: “É sobretudo
no plano simbólico que ela manifesta a sua eficácia.” (p. 18) E sobre a
organização do espaço, no sentido de compreensão e maior exatidão desse dogma,
feito pela Igreja Católica, afirma: “Organizar o espaço do seu além foi uma
operação de grande alcance para a sociedade cristã.”
Acima, eu aludi aos elementos bíblicos, sobretudo da era
apostólica, que formam a doutrina do purgatório, e foram utilizados nas
reflexões teológicas imediatamente no período sub-apostólico, a começar do
século seguinte, o segundo século. Estamos em um tempo não muito distante, ou
em outras palavras, um tempo bastante próximo do período apostólico, e é
possível conversar com pessoas que tiveram contato pessoal com os apóstolos do
Senhor.
Como já notei em outro lugar, a partir das minhas pesquisas e
reflexões bíblicas, e com a ajuda do pensamento de notáveis teólogos, o mesmo Le
Goff diz: “A crença no Purgatório implica antes de mais a crença na
imortalidade e na ressurreição, em que algo de novo para um ser humano pode
acontecer entre a sua morte e a sua ressurreição.”
continua...
Gostaria de dá uma sugestão de artigo, talvez sobre a expiação de Jesus,se foi limitada ou ilimitada,se foi de substituição penal ou de satisfação,se puder citar os pais da igreja seria legal.
ResponderExcluirÓtima sugestão, pois o tema é de extrema importância. Irei preparar um artigo sobre o assunto.
ResponderExcluirOlá Gledson Meireles
ResponderExcluirBom dia
Este assunto do Purgatório é interessante pois até mesmo em uma compreensão mortalista poderia se aceitar o Purgatório pois o mesmo poderia acontecer no futuro (I Cor. 3 1:15), sem uma necessidade de ser após a morte ou seja as almas da crença mortalista ressucitariam e antes de irem para o Céu ou até mesmo na Terra transformada como creem alguns, ficariam por um tempo purgando em um lugar de purgação. Parabéns para a compreensão Católica Apostólica Romana sobre o Purgatório pois nos leva a refletir sobre tal possibilidade.
Um abraço
Luiz
Boa observação, Luiz, pois o purgatório acontece até o dia do juízo. E, como você apontou, poderia ocorrer mesmo na teoria do mortalismo, pois poderia ser quando da ressurreição dos justos. O fato é que existe uma purificação.
ExcluirAté mais.
Olá Gledson
ResponderExcluirParabéns por defender a Fé Católica Apostólica Romana.
Na 1ª ressurreição os santos que recebem galardões estarão no céu, com Deus, salvos, com os irmãos e com os santos anjos da mesma forma os que não receberão galardões também estarão no céu, com Deus, salvos , com os irmãos e com os santos anjos então está tudo bem, então para os anti-purgatorianos essa questão se resume simplesmente em receber ou não receber galardões porém a mensagem do capitulo 15 é muito mais forte e grave pois de acordo com a expressão proverbial “ escaparem por um triz” indicando que quase, quase foram alcançadas pelo fogo e isso significa que aquelas almas por negligência quase,quase perderam a salvação , MAS embora as obras fossem queimadas eles seriam salvas( verbo no futuro) , e observe que a frase que foi colocada na Bíblia não diz que escaparem por um triz mas que como que passando pelo fogo ou seja através do fogo. É mais lógico pensar que aquelas almas ao morreram comparecerem perante Deus e manifestam as obras e elas receberam a notícia que seriam salvas porém teriam que passar pelo lugar de purgação e aí no futuro ou seja no dia da ressurreição seria declarado que elas não receberiam galardão. Na visão anti-purgatoriana por ocasião da ressurreição alguns crentes receberão galardões e outros não receberão e não vejo neste entendimento uma obrigatoriedade de Deus dizer que os que não vão receber que eles escaparam por um triz ou que eles quase não seriam salvos. O versículo 15 traz consigo o entendimento que é o da “quase perda da salvação” e a visão de apenas pura e simplesmente “não receber galardões “ não contempla de forma satisfatória o que o versículo 15 aborda. A ênfase na expressão “mas será salvo” pede necessariamente algo e observemos que o fogo do Purgatório não serve para salvar os crentes pois os mesmos já estão salvos mas prescisam se purgar. Então a visão de apenas “ não receber galardões” perde muito, muito a força tendo por base o que está escrito no versículo 15 ao passo que na visão purgatoriana a alma por ocasião da morte comparece perante Deus apresenta as obras ou seja manifesta e é informado que vai para o Purgatório pois agiu com negligência e descaso em praticar as boas obras. A fé gera boas obras então deixar de fazer boas obras significa que a fé não estava produzindo boas obras e tal descaso e negligência poderia ocasionar a condenação i.e perda da salvação por isso apenas “não receber os galardões” seria muito pouco pois mesmo sem galardão o crente está muito bem com Deus ao passo que ir se purgar é algo mais consistente com a gravidade de não praticar boas obras.
continua...
continuando
ResponderExcluirGeralmente se argumenta que a passagem é uma comparação pois se usa a palavra "como" e isso corrobora com a explicação de que o "fogo" do Purgatório não salva e se compara com as obras dos crentes que forma reprovadas é como se estivesse escapado "por um triz" tendo por base a expressão proverbial da época e devemos entender o que significa escapar por um triz ora se escapou por um triz é que quase, quase foi alcançada e pelo contexto é bastante plausível que seria pelo fogo e se fosse alcançado pelo fogo seguindo o raciocínio morreria queimado e isso em sentido bíblico-espiritual seria a morte no sentido de separação de Deus que culminaria com a condenação eterna então o fato de um determinado número de crentes terem tido sua sobras reprovadas por Deus fez com que quase, quase, por um triz percam a salvação. E observemos também que a passagem fala da palavra fogo em relação as obras, pegou um expressão proverbial da época que quando foi passada para a Bíblia se escreveu como "será salvo como alguém que escapa através do fogo" de acordo com a NVI ou seja a palavra fogo foi utilizada, indica também que se a pessoa for condenada seguindo o raciocínio anterior será pelo fogo da Geena e a ideia do Purgatório lembra um fogo que purga.
E a palavra " através" parece indicar a alma passaria por dentro do fogo e isso indica a ideia do Purgatório para purgar mas não para salvar pois o crente já está salvo. Então o fato de receber ou não receber galardões não exclui o entendimento da Doutrina do Purgatório.
Um grande abraço
Luiz