O apologista católico argumentou
que São Jerônimo empregou a expressão “ESTÁ ESCRITO” aos livros bíblicos,
somente a eles, tanto aos protocanônicos quanto aos deuterocanônicos. Para
isso, mostrou a diferença das citações que o próprio autor faz em relação a
outras obras, e comparou com as citações que o apóstolo São Paulo utilizou dos
escritores pagãos. A exposição do apologista foi bastante clara, pois provou
que nem a expressão (que de certa forma já havia ganhado um sentido técnico)
foi usada para outros livros, nem os escritos profanos foram citados juntos ou
entremeados de citações bíblicas. Essa realidade é muito convincente.
Mas, o apologista protestante
entendeu, e continuará entendendo, certamente, que São Jerônimo, apenas estava dizendo,
nesse caso em relação aos deuterocanônicos, que o “está escrito”
refere-se a estar escrito em algum lugar, a algo que foi posto por escrito,
nada mais nada menos: “estas citações estavam "escritas", nada mais e nada menos”.
São Jerônimo tratou diretamente
da questão da inspiração dos deuterocanônicos diversas vezes, e mostrou suas
dúvidas e opiniões pessoais quanto a esses livros, categorizando-os segundo o que
tinha aprendido do seu contato com os judeus, mas nunca desaprovou esses livros
em suas obras, na sua prática, nem entrou em conflito com as decisões
eclesiásticas, quando teve conhecimento delas. Certamente, São Jerônimo relutou
em aceitar a canonicidade dos deuterocanônicos depois que adotou a veritas hebraica, onde a argumentação
girava em torno da inspiração do Antigo Testamento somente através da língua
hebraica, um princípio que estava em voga nos círculos judaicos, e que agradou
e convenceu São Jerônimo por muito tempo, pelo menos.
Para quem usa o princípio de que
as afirmações diretas de São Jerônimo sobre os livros deuterocanônicos é que
devem substanciar sua posição quanto a esses livros, como fazem os
protestantes, então dirão, não importa qual seja o uso que fez o santo padre
desses escritos durante sua vida, dirão que apenas usou-os quando foi
necessário em seus debates, e lia-os apenas para edificação, e não para provar
alguma doutrina cristã, etc.
Não adianta argumentar mais nada
para quem favorece essa linha de intepretação para entender a posição de são
Jerônimo, pois não há contextualização a ser feita, a fim de negar isso, nem
observações nas obras segundo o aspecto cronológico, etc., pois basta saber o
que São Jerônimo escreveu diretamente sobre o caso. E se nessas passagens ele
adotou os 22 ou 24 livros do cânon judaico, então está pronto, caso encerrado. Esse
é o resultado que vemos no link 2.
Agora, se quisermos olhar os
escritos de São Jerônimo em sua totalidade, acompanhar o desenvolvimento de seu
pensamento, a influências que o autor sofreu, as afirmações que fez, as
circunstâncias em que foram feitas, o que dizem cada uma das afirmações em si
mesmas, e dentro do contexto em que aparecerem, quais os sinais de mudança
existem em relação ao avanço do tempo, que afirmações diretas são feitas a
respeito da posição dos judeus e da Igreja em geral quanto aos escritos, como
foram usados os livros bíblicos - protos e deuteros – em relação à doutrina, à argumentação cristã, e
etc., enfim, numa verdadeira exegese textual de São Jerônimo, então deveremos notar coisas
que estão de acordo com a realidade: 1) São Jerônimo nos primeiros anos usou os
livros bíblicos, os 73, de forma igual, sem qualificações. 2) Após seu contato
com os judeus e o texto massorético as suas críticas ao texto grego, e
diretamente aos deuterocanônicos, tornam-se explícitas e aparecerem em várias
obras num período de alguns anos. 3) Depois das decisões conciliares, que
clareavam muito na questão do cânon, no mínimo, São Jerônimo foi deixando de
considerar os deuterocanônicos de forma depreciativa. Sua prática mostra que os
deuterocanônicos foram usados como os protocanônicos. Talvez as dúvidas e reservas
de São Jerônimo não foram nunca capazes de fazê-lo abandonar o cânon usado na
Igreja, e que no final da sua vida essas dúvidas já haviam sido sanadas, os 73
livros foram formalmente aceitos por ele, como mostra sua prática constante.
O erudito protestante J. N. D.
Kelly afirma que São Jerônimo disputava com judeus usando os livros
deuterocanônicos, o que gerava certo desconforto, já que os judeus NÃO ACEITAVAM
a canonicidade desses escritos, e os reputavam, pelo menos quanto a certas
passagens, pelo que podemos notar da afirmação de Kelly, os reputavam como
ridículos. Desse modo, o uso de São Jerônimo é ainda mais notório de que o
mesmo tinha os deuterocanônicos como realmente Palavra de Deus. Antes, vejamos
o que diz J. N. D. Kelly: “De novo o que o moveu foi principalmente o embaraço
que sentia ao ter que argumentar com Judeus com base em livros que eles
rejeitaram, ou mesmo (por exemplo, as histórias de Susana, ou de Bel e o
Dragão) que achava francamente ridículos.”
Foi explicado pelo apologista católico esse fato
mencionado por Kelly, da forma usual de São Jerônimo em tratar os
deuterocanônicos como Escritura. Mas, um apologista protestante fez a seguinte
elucidação: “Se eu
estiver a discutir com um católico romano, eu posso citar um livro apócrifo
como se fosse Escritura contra ele, porque sei que ele aceita estes livros como
Escritura fortalecendo assim o meu argumento, mas isso não significa que eu
reconheço tal livro como Escritura. Ora, é isto que Jerónimo faz “na prática”. Quando
o seu oponente tinha estes livros como Escritura então “na prática” ele cita-os
como se fossem Escritura por uma razão táctica mas isso não implica que os
reconhecesse como Escritura.”
O apologista pensou rápido, lançou seu argumento supostamente
acertado, e que funcionaria para devastar com a argumentação da apologética
católica, se não fosse por um motivo óbvio: São Jerônimo usou os
deuterocanônicos para argumentar não
com quem “tinha este livros como Escritura”,
mas, no sentido OPOSTO, pois aplicou-os no debate com quem NÃO os tinha como
Escritura: “ao ter que argumentar com Judeus com base em livros que eles rejeitaram”
(grifo acrescentado), o que causava embaraço na exposição.
É o mesmo que citar o livro de 2 Macabeus aos
protestantes para provar o purgatório, quando os protestantes não aceitam a autoridade
canônica, a inspiração, do livro de 2 Macabeus. Isso causa embaraço para nós,
como acontecia com São Jerônimo. Deve o protestante encontrar outro argumento, pois
esse caiu.
Gledson Meireles.